Opinião

A 'creontagem' e a indenização por compensação no esporte de combate

Autor

  • Elthon Costa

    é advogado trabalhista e desportivo membro da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho do TST no Grau Oficial especialista em Direito Desportivo (Cers) pós-graduado em Direito Processual Civil (Unileya) mestrando em International Sports Law (Isde) diretor jurídico do CNB (Conselho Nacional de Boxe) diretor do Departamento Jurídico da CBKB (Confederação Brasileira de Kickboxing) diretor do Departamento Jurídico da Wako Panam (World Association of Kickboxing Comissions Región Panamericana) e da CBMMAD (Confederação Brasileira de MMA Desportivo) membro do núcleo de estudos O Trabalho além do Direito do Trabalho: Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral (NTADT) da Faculdade de Direito da USP auditor do TJDU-DF e membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB-DF.

13 de fevereiro de 2024, 13h16

Discussão recorrente no mundo dos esportes de combate é a da mudança corriqueira de academias por parte dos atletas sem haver qualquer contrapartida em relação à equipe/academia formadora do lutador, prática que gerou um termo popular na luta, a “creontagem”.

Na mitologia grega, Creonte foi um rei, mas o grande mestre Carlson Gracie, incomparável criador de frases e jargões, popularizou esse nome atrelado à um significado nada digno — o de traidor —, inspirado em um personagem com esse nome interpretado por Gracindo Júnior e Marcos Palmeira na novela Mandala, de 1987. A partir desse momento, no mundo do jiu-jitsu, traidores deixaram de ser “traíras” e passaram a ser “creontes” [1].

Tal comportamento tem gerado questionamento por muito tempo no mundo da luta. Afinal, o atleta deveria indenizar de alguma forma a equipe, a academia ou mesmo o mestre que o formou?

Devemos ter em mente que, a despeito das competições de esportes de combate no Brasil não serem recentes, o profissionalismo caminha a curtos passos nesse segmento, portanto os contratos entre atletas e academias/mestres são raros ou mesmo inexistentes.

Essa visão profissional um tanto restrita de não se preferir o registro via instrumento jurídico deriva justamente do fato de que, como se trata de luta, muitos mestres e mesmos os atletas vislumbram a situação pelos olhos da arte marcial, onde a palavra valeria mais que um simples contrato.

Lado outro, é inegável que já temos situações que se tornaram públicas de atletas que, formados por determinados mestres, ao serem contratados por grandes eventos, abandonam seus formadores e fazem grandes contratos com academias de maior renome, deixando de pagar qualquer indenização para quem o projetou no cenário desportivo.

Destarte, temos a seguinte pergunta: o mestre/técnico/professor formador teria direito a uma indenização pela formação desportiva do atleta?

Cumpre primeiramente esclarecer que o direito de formação esportiva consiste no direito de uma determinada entidade exigir de outra entidade um valor monetário para compensar o trabalho de treinamento esportivo que a entidade de origem realizou com o atleta, cujos resultados a entidade que recebeu o atleta pretende se beneficiar.

No entanto, para que a entidade de prática formadora tenha direito a indenização de formação, deverá manter o atleta registrado na respectiva federação, ter um organograma formal das despesas efetuadas na formação esportiva do atleta e demonstrar comprovadamente a realização de todos os requisitos relacionados no §2º do artigo 29 da Lei 9.615/98 (Lei Pelé), in verbis:

Lei 9.615/98 (Lei Pelé)

Art. 29:

§ 2º É considerada formadora de atleta a entidade de prática desportiva que:

I – forneça aos atletas programas de treinamento nas categorias de base e complementação educacional; e

II – satisfaça cumulativamente os seguintes requisitos:

a) estar o atleta em formação inscrito por ela na respectiva entidade regional de administração do desporto há, pelo menos, 1 (um) ano;

b) comprovar que, efetivamente, o atleta em formação está inscrito em competições oficiais;

c) garantir assistência educacional, psicológica, médica e odontológica, assim como alimentação, transporte e convivência familiar;

d) manter alojamento e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, segurança e salubridade;

e) manter corpo de profissionais especializados em formação técnico-desportiva;

f) ajustar o tempo destinado à efetiva atividade de formação do atleta, não superior a 4 (quatro) horas por dia, aos horários do currículo escolar ou de curso profissionalizante, além de propiciar-lhe a matrícula escolar, com exigência de frequência e satisfatório aproveitamento;

g) ser a formação do atleta gratuita e a expensas da entidade de prática desportiva;

h) comprovar que participa anualmente de competições organizadas por entidade de administração do desporto em, pelo menos, 2 (duas) categorias da respectiva modalidade desportiva; e

i) garantir que o período de seleção não coincida com os horários escolares.

Importante também trazer à discussão o texto legal da nova Lei Geral do Esporte, sobre a questão, se não, vejamos[2]:

Seção VII

Do Contrato de Formação Esportiva

Subseção I

Das Características do Contrato de Formação Esportiva

Art. 98. A organização esportiva formadora de atleta terá o direito de assinar com ele, a partir de 16 (dezesseis) anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho esportivo, cujo prazo não poderá ser superior a 3 (três) anos para a prática do futebol e a 5 (cinco) anos para outros esportes.

§ 1º Considera-se formadora de atleta a organização esportiva que:

I – forneça aos atletas programas de treinamento nas categorias de base e complementação educacional; e

II – satisfaça cumulativamente os seguintes requisitos:

a) tenha inscrito o atleta em formação na respectiva organização esportiva que administra e regula a modalidade há, pelo menos, 1 (um) ano;

b) comprove que, efetivamente, o atleta em formação está inscrito em competições oficiais;

c) garanta ao atleta assistência educacional, psicológica, médica, fisioterapêutica e odontológica, bem como alimentação, transporte e convivência familiar;

d) mantenha, quando tiver alojamento de atletas, instalações de moradia adequadas, sobretudo quanto a alimentação, higiene, segurança e salubridade;

e) mantenha corpo de profissionais especializados em formação técnico-esportiva;

f) ajuste o tempo destinado à efetiva atividade de formação do atleta, não superior a 4 (quatro) horas por dia, aos horários do currículo escolar ou de curso profissionalizante e propicie a ele a matrícula escolar, com exigência de frequência e de satisfatório aproveitamento;

g) assegure a formação gratuita do atleta, a expensas da organização esportiva contratante;

h) comprove que participa anualmente de competições organizadas por organização esportiva que administra e regula o esporte em, pelo menos, 2 (duas) categorias da respectiva modalidade esportiva;

i) garanta que o período de seleção não coincida com os horários escolares;

j) realize exames médicos admissionais e periódicos, com resultados arquivados em prontuário médico;

k) proporcione ao atleta em formação convivência familiar, com visitas regulares à sua família;

l) ofereça programa contínuo de orientação e suporte contra o abuso e a exploração sexual;

m) qualifique os profissionais que atuam no treinamento esportivo para a atuação preventiva e de proteção aos direitos de crianças e adolescentes;

n) institua ouvidoria para receber denúncia de maus-tratos em crianças e adolescentes e de exploração sexual deles;

o) propicie ao atleta a participação em atividades culturais e de lazer, nos horários livres; e

p) apresente ao Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal, anualmente, os laudos técnicos expedidos pelos órgãos e pelas autoridades competentes pela vistoria das condições de segurança dos alojamentos que mantenha para atletas em formação.

§ 2º A organização esportiva nacional que administra e regula o esporte certificará como organização esportiva formadora aquela que, comprovadamente, por meio de laudos de vistoria e de documentos, preencha os requisitos estabelecidos nesta Lei.

§ 3º O atleta não profissional em formação maior de 14 (quatorze) e menor de 21 (vinte e um) anos de idade poderá receber auxílio financeiro da organização esportiva formadora, sob a forma de bolsa de aprendizagem livremente pactuada mediante contrato formal, sem que seja gerado vínculo empregatício entre as partes.

§ 4º A organização esportiva formadora fará jus a valor indenizatório se ficar impossibilitada de assinar o primeiro contrato especial de trabalho esportivo por oposição do atleta, ou quando ele se vincular, sob qualquer forma, a outra organização esportiva, sem autorização expressa da organização esportiva formadora, observado o seguinte:

I – o atleta deverá estar regularmente registrado e não poderá ter sido desligado da organização esportiva formadora;

II – a indenização será limitada ao montante correspondente a 200 (duzentas) vezes os gastos comprovadamente efetuados com a formação do atleta, especificados no contrato de que trata o § 3º deste artigo;

III – o pagamento do valor indenizatório somente poderá ser efetuado por outra organização esportiva e deverá ser efetivado diretamente à organização esportiva formadora no prazo máximo de 15 (quinze) dias, contado da data da vinculação do atleta à nova organização esportiva, para efeito de permitir novo registro em organização esportiva que administra e regula o esporte;

IV – o atleta, no caso de profissionalização ocorrida com entidade de prática esportiva internacional, que não proceder ao pagamento à entidade formadora, não poderá voltar

a ser registrado desportivamente perante a entidade nacional de administração do desporto até o efetivo adimplemento da obrigação de pagamento da indenização.

§ 5º O contrato de formação esportiva a que se refere o § 3º deste artigo sempre será firmado na forma escrita e deverá obrigatoriamente incluir:

I – identificação das partes e dos seus representantes legais;

II – duração do contrato;

III – direitos e deveres das partes contratantes, inclusive garantia de seguro de vida e de acidentes pessoais para cobrir as atividades do atleta contratado; e

IV – especificação da natureza das despesas individuais ou coletivas com o atleta em formação, para fins de cálculo da indenização com a formação esportiva.

§ 6º A organização esportiva formadora e detentora do primeiro contrato especial de trabalho esportivo com o atleta por ela profissionalizado terá o direito de preferência para a primeira renovação desse contrato, cujo prazo não poderá ser superior a 3 (três) anos, salvo para equiparação de proposta de terceiro.

§ 7º Para assegurar seu direito de preferência, a entidade de prática esportiva formadora e detentora do primeiro contrato especial de trabalho esportivo deverá apresentar, até 45 (quarenta e cinco) dias antes do término do contrato em curso, proposta ao atleta, de cujo teor deverá ser cientificada a correspondente entidade nacional de administração do desporto, a qual deverá, para eficácia da preferência, publicar em seu sítio eletrônico a proposta, com indicação das novas condições contratuais e dos salários ofertados, e o atleta deverá apresentar resposta à entidade de prática esportiva formadora, de cujo teor deverá ser notificada a referida entidade de administração, no prazo de 15 (quinze) dias, contado da data do recebimento da proposta, sob pena de aceitação tácita.

§ 8º Na hipótese de outra organização esportiva oferecer proposta mais vantajosa a atleta vinculado à organização esportiva que o formou, dever-se-á observar o seguinte:

I – a organização proponente deverá apresentar à organização esportiva formadora proposta, da qual deverão constar todas as condições remuneratórias;

II – a organização proponente deverá dar conhecimento da proposta à correspondente entidade nacional de administração do desporto;

III – a organização esportiva formadora poderá, no prazo máximo de 15 (quinze) dias, contado do recebimento da proposta, comunicar se exercerá o direito de preferência de que trata o § 7º deste artigo, nas mesmas condições oferecidas; e

IV – a preferência assegurada deverá seguir o disposto neste parágrafo, independentemente da vigência ou não do vínculo federativo do atleta com a entidade de prática esportiva formadora.

§ 9º A organização que regula o esporte deverá publicar o recebimento das propostas de que tratam os §§ 7º e 8º deste artigo nos seus meios oficiais de divulgação no prazo de 5 (cinco) dias, contado da data do recebimento.

§ 10. Caso a organização esportiva formadora oferte as mesmas condições e, mesmo assim, o atleta se opuser à renovação do primeiro contrato especial de trabalho esportivo, ela poderá exigir da nova organização esportiva contratante o valor indenizatório correspondente a 200 (duzentas) vezes o valor do salário mensal constante da proposta.

§ 11. A contratação do atleta em formação será feita diretamente pela organização esportiva formadora, vedada a realização por meio de terceiros.

§ 12. A organização esportiva formadora deverá registrar o contrato de formação esportiva do atleta em formação na organização esportiva que administra e regula a respectiva modalidade.

§ 13. Somente poderá manter alojamento para os atletas em formação a organização esportiva formadora certificada na forma do § 2º deste artigo.

§ 14. O atleta em formação será considerado aprendiz, para o cômputo da quota prevista no art. 429 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.

§ 15. O disposto nas alíneas a, b, c, g, h, i, j, k, l, m, n, o e p do inciso II do § 1º deste artigo será obrigatório exclusivamente para atletas e entidades de prática profissional da modalidade de futebol.

Como vimos, há muitos pontos legais a serem cumpridos e alguns (em destaque) não são aplicáveis a algumas modalidades do desporto de combate, vez em que, para alguns desses esportes, não há entidade regional de administração do desporto reconhecida oficialmente no Brasil, sendo também praticamente inexistente assinatura de contrato de trabalho entre atleta e entidade de prática.

Obter licença de qualificação é uma saída para os treinadores
Importante ressaltar é que a exploração da mão-de-obra do atleta, in casu, vem por intermédio de atuação em eventos que firmam com ele contratos de prestação de serviço, nos quais, muitas das vezes, não há previsão de repasse para a entidade que forma o atleta.

Esta situação sui generis coloca os técnicos/mestres/professores em situação de necessidade de firmarem contratos onde possam aferir parte dos ganhos do atleta como forma de compensação, de maneira a não serem prejudicados depois de longo trabalho de treinamento.

Embora a lei estabeleça que os titulares dos direitos de formação sejam as entidades reguladoras da modalidade, seria mais apropriado e adequado à realidade da luta garanti-lo conjunta ou exclusivamente aos treinadores ou técnicos com os quais o lutador foi formado durante o período de treinamento, uma vez que são eles que acabam fornecendo seus conhecimentos e preparando-os para a competição.

Para reivindicar o direito ao treinamento, o correto seria que o treinador e/ou técnico tivesse a licença de qualificação[3] emitida pela entidade, federação e/ou associação do local onde o lutador treinou durante o período de formação.

Dessa forma, todos os técnicos de luta seriam incentivados a fazer o curso pertinente para obter a licença de qualificação, que será o primeiro requisito a ser cumprido para poder reivindicar o direito de formação no futuro.

A maneira de provar os anos em que um treinador formou um atleta seria por qualquer meio de prova de que, durante o período de treinamento, o lutador estava sob as ordens do treinador. Para tais fins, licenças, vídeos, fotografias, etc., podem ser usados, e a palavra do lutador sempre pode ser usada para dissipar qualquer dúvida ou controvérsia que possa surgir nesse processo.

No entanto, a prova mais confiável será a inscrição em um registro da federação e/ou associação do local onde o lutador e o técnico estão sediados, por meio do qual fica registrado que, durante determinados anos, o lutador foi treinado por esse técnico[4].

Tais sugestões poderiam ser capazes de solucionar a polêmica questão do atleta “creonte”, que parte em busca de outro mestre mais “badalado” (e, na maioria das vezes, melhor relacionado para efeitos de ser conseguir lutas em bons eventos) e abandona seu mestre formador, que, como ocorre muitas vezes, o treinou sem pedir qualquer contrapartida e agora fica sem compensação alguma.

A “creontagem” hoje é vista com melhores olhos pela comunidade da luta, pois há a necessidade do atleta buscar o aperfeiçoamento em treino diverso algumas vezes, mas tal comportamento, à guisa de servir para ajudar o lutador, não pode prejudicar à quem ele deve sua formação no desporto de combate.


[1] SANTIAGO, Andrei. Creonte: traidor e oportunista, ou alguém que só quer o melhor para si mesmo? Higa Jiu-Jitsu Clube, Site, 17 dez. 2015. Disponível em: https://higajiujitsuclube.wordpress.com/2015/12/17/creonte-traidor-e-oportunista-ou-alguem-que-so-quer-o-melhor-para-si-mesmo/. Acesso em: 6 maio 2023.

[2] BRASIL. Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023. Institui a Lei Geral do Esporte. 14 jun. 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14597.htm. Acesso em: 6 fev. 2024.

[3] COSTA, Elthon José Gusmão da. O treinador esportivo de combate à luz do artigo 75 da Nova Lei Geral do Esporte. Consultor Jurídico, 16 jan. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-16/o-treinador-esportivo-de-combate-a-luz-do-artigo-75-da-nova-lei-geral-do-esporte/. Acesso em: 6 fev. 2024.

[4] GRAGLIA, Nicolás Grassi. Proyecto derecho de formación en el Boxeo Argentino. Revista de Derecho del Deporte, n. 19, 30 dez. 2021. Disponível em: https://ar.ijeditores.com/pop.php?option=articulo&Hash=7f7a36416f3b2164abc9b901019862df. Acesso em: 6 fev. 2024.

Autores

  • é advogado trabalhista e desportivo e diretor jurídico do Conselho Nacional de Boxe (CNB), da Confederação Brasileira de Kickboxing (CBKB), da World Association of Kickboxing Organizations Región Panamericana (Wako Panam) e da Confederação Brasileira de MMA Desportivo (CBMMad) .

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