Opinião

Tutela de urgência satisfativa: via crucis para ser deferida pelo Juízo

Autor

  • Renato Otávio da Gama Ferraz

    é advogado formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF) professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e Administração Pública além de autor do livro 'Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana)' e outras obras.

12 de abril de 2024, 16h19

Eu o quero falar de tutela de urgência satisfativa. O desafio: ampliar a percepção do instituto e apurar a reflexão de algumas decisões da toga no cotidiano forense, em Pindorama.

É um diálogo necessário. Está em jogo o processo civil democrático. Logo, é importante trazer essa discussão à mesa.

E eu pergunto: será que todos os direitos das pessoas estão garantidos pelo Poder Judiciário?

E que, às vezes, o direito sai de férias…

Da constitucionalidade do artigo 9º do novo CPC

Deixando a ironia de lado. Consoante artigo 9º do NCPC:

Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida:

Parágrafo único.  O disposto no caput não se aplica:

I – à tutela provisória de urgência;

Ocorre que, no artigo 9º do novo CPC, I, o legislador usa a técnica do contraditório diferido. Não abole o seu exercício. Porém, adia para logo após ao deferimento da medida liminar. Além do que, vale lembrar que a decisão pode ser agravada.

Em consequência, não há dúvida a respeito da sua constitucionalidade!

À vista disso, é preciso ter claro que: entre o acesso à justiça (artigo 5º, inc. XXXV) e o contraditório (artigo 5º LV), quando há perigo iminente de lesão ao direito, é evidente que deve prevalecer o acesso à proteção judicial.  Simples assim.

Alguma dúvida? O problema é que muitos têm horror à Constituição…

Caiu em minhas mãos a obra do mestre e desembargador Alexandre Freitas Câmara, que, com sua autoridade, ensina que:  [1]

“Tem-se, aqui, uma limitação inerente ao contraditório, o qual não pode ser transformado em um mecanismo obstativo de pleno acesso à justiça. Pois é exatamente por isto que o CPC prevê expressamente a possibilidade de concessão de tutela provisório de urgência sem previa oitiva da parte contra quem a decisão será proferida (art.9º, parágrafo único, I) (…)”

Decisões judiciais equivocadas

Mas vejamos como os causídicos são feridos no mundo real:

“A tutela de urgência será apreciada após a formação do contraditório (…).”

“Necessário a formação do contraditório para melhor análise dos elementos carreados aos autos”. Mantenho fl.41.”

É a velha ladainha desgastada: aguarda-se o contraditório…

Spacca

Pois então. O direito ficou uma questão de opinião?!  Será que o direito é o que o juiz acha que é? Vale a praga do “decisionismo”?

Adiar a análise da tutela de urgência, para formação do contraditório, afronta escancaradamente o direito da lei.

Será, então, o “governo dos juízes”? É o superjuiz? As leis não valem? Incrível: a lei diz X e o juiz diz Y.

Uma coisa simples: cada um na sua!

Ora, se você não aceita a decisão do legislador que mude o Congresso ou exerça a jurisdição constitucional.

Bem fácil: é só cumprir a lei sem acrobacias jurídicas.

Requisitos da tutela de urgência satisfativa (tutela antecipada)

A tutela de urgência, prevista no artigo 300 do NCPC, estabelece os requisitos para sua concessão: a probabilidade do direito, o perigo de dano ou risco de inutilidade do resultado do processo.

O primeiro desses requisitos é a probabilidade de existência do direito material deduzido no processo (fumus boni iuris). É fundamental que o demandante demostre ser provável a existência do seu direito.

Pense-se, por exemplo, no pedido de revisão de pensão por morte, tendo as autoras direito à integralidade e paridade, e juntam aos autos documento de atualização de pensão (DAP) e contracheques.

Onde verifica-se a defasagem existente entre o valor que elas vêm recebendo e o da remuneração dos servidores ativos ocupantes do mesmo cargo exercido pelo ex-servidor, da qual são dependentes.

Isso já basta, na cognição sumária, levar à formação do juízo de forte probabilidade.

Outro requisito que se exige é o perigo de dano (perigo in mora) iminente, grave, de difícil ou impossível reparação. O direito substancial está em risco.

Ou seja, há o perigo da morosidade que poderá causar dano grave.

Dito de outro modo, há o perigo de dano iminente para o próprio direito material que deve ser efetivado de imediato.

No exemplo de revisão de pensão citado, o perigo de dano (perigo de morosidade) decorre da natureza alimentar da demanda. Está ligado a dignidade da pessoa humana, que é princípio fundamental da República.

O perigo de dano é certo!

Há, sim, dano irreparável justificando o deferimento da medida, para não prejudicar a sobrevivência das autoras.

Há ainda o terceiro requisito para o deferimento da tutela de urgência, que é chamado de requisito de conteúdo negativo ou periculum in mora inverso: quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão (artigo 300, § 3º do NCPC)

Recorta e cola

Dias desse, li uma decisão do Fórum Regional Barra da Tijuca/RJ.  Tenho o dever de forma acadêmica de colocar isso à luz. Não dá para ficar quieto:

“No caso sob exame, torna-se necessário prestigiar o contraditório e a dilação probatória. Por outro lado, não se verifica que a espera pela tutela definitiva resulte em grave prejuízo ao direito a ser tutelado ou ao resultado útil do processo em razão do decurso do tempo.”

É, sim, uma decisão genérica! Não há fundamentação. Ela vale para todos os processos!

Pode isso, meritíssimo?!

Mas eu e você, leitor, e as pedras da rua sabemos que fundamentar uma decisão, não é copiar e colar.  Envolve explicar por a + b, o porquê; mostrando como o magistrado chegou àquela conclusão.

Há escancarada violação ao disposto no artigo 5º, LIV e LV e no artigo 93, IX, CF c/c artigo 11 e 489, § 1º, IV, do NCPC.

É um faz-de-conta de que essa decisão é fundamentada!  É evidente que é nula!

O curioso é que o autor pediu reconsideração da decisão. Anexou um áudio da funcionária do banco dizendo que, realmente, ele não tinha feito o empréstimo.

Qual foi a resposta do juízo? Foi recortado e colado a decisão anterior que indeferiu a tutela!

Fantástico, não é?

E há mais: a decisão diz que “não se verifica que a espera pela tutela definitiva resulte em grave prejuízo ao direito a ser tutelado”.

O que é isso, doutor?

Misericórdia!  O perigo de dano irreparável (perigo da morosidade) consiste no desconto mensal, de R$ 406,00, na aposentadoria do demandante que recebe, R$ 4.022,98, a qual tem natureza alimentar!

Com isso, gerando dificuldades nos compromissos financeiros assumidos, por um mútuo não autorizado e que não lhe foi benéfico, comprometendo, dessa maneira, verbas destinadas à subsistência, violando, assim, à sua dignidade.

Pior de tudo: a decisão de indeferimento da tutela de urgência privilegia o andar de cima (banco), ou seja, o super-rico, em detrimento do andar de baixo, vale dizer, o coitado do aposentado do INSS…

Pode essa maldade jurídica?

Aponta Eduardo Galeano: “A justiça é como uma serpente, só morde os pés descalços”.

Outra triste decisão indeferindo tutela de urgência

Por fim, um caso no TRF-2. A demandante requereu o deferimento de tutela de urgência recursal para que fosse determinado o pagamento do valor integral da sua pensão por morte equivalente a 100% da aposentadoria recebida pelo finado marido, por ser inválida.

Juntou os laudos médicos que atestavam e elucidavam que tinha nefropatia renal crônica (IRC), ou seja, nefropatia grave, em estado terminal e várias comorbidades.

A resposta do Juízo federal foi: “não vislumbro o fumus bonis iuris, de modo que, por ora, impõe-se aguardar o contraditório”. A decisão foi agravada.  O causídico pensou: agora, vai! Vejamos o que disse o tribunal:

“Se faz necessária a oitiva dos agravados para que a decisão seja proferida sob o crivo do contraditório.”

Foi marcada a perícia.  Mas a triste notícia:  a autora foi a óbito no dia que ia fazer o exame. Pois é. É o perigo da morosidade! O deus tempo não espera por ninguém…

Na perícia indireta, pelos laudos já acostados, o perito foi categórico, ao afirmar, que a invalidez preexistia ao óbito do instituidor da pensão.

Mas agora é tarde! Inês é morta…

Ca pra nós: não havia fumus bonis iuris com os laudos dizendo que a autora tinha nefropatia renal crônica (IRC), em estado terminal?!

Necessária a oitiva dos agravados como disse o TRF-2 …!?

Conclusão

Enquanto isso, a prestação jurisdicional vai mal.  Infelizmente, essas decisões não-fundamentadas vão se multiplicando no mundo forense com um simples copiar e colar. O que robustece o arbítrio judicial e, inviabilizada, na prática, o instituto da tutela de urgência satisfativa.

Temos que, sim, fazer o enfrentamento desses abusos. Isso tem de ter fim. Está cada vez mais difícil advogar. Andamos aflitos. Idas e vindas ao cartório. Cansativo. Muito cansativo.

É uma via crucis conseguir o deferimento de uma tutela de urgência satisfativa.

Senhor, tende piedade das partes e dos causídicos!

Resta-nos resistir! Já é tempo de fazer justiça!

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Referências

[1] CÂMARA, Alexandre Freitas, Manual de Direito Processual Civil, 2ª ed, p.317, 2023)

Autores

  • é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais e Direito e Administração Pública e autor do livro Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana) e de outras obras.

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