Opinião

Revisão de arquivamento de inquérito policial sobre vítima menor e genitor

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7 de abril de 2024, 6h35

A Lei nº 13.964/2019, comumente referida como pacote “anticrime”, modificou o artigo 28 do Código de Processo Penal (CPP), incluindo outros procedimentos de revisão de arquivamento de inquéritos policiais.

A atualização no procedimento de arquivamento de inquéritos, louvavelmente, implementou um sistema de supervisão e transparência da investigação para as vítimas de crimes sujeitos à ação penal pública.

Por conseguinte, em decorrência das alterações no artigo 28 do CPP pelo pacote “anticrime”, tornou-se obrigatório notificar a decisão de arquivamento à vítima (ou, nos casos de crimes sem autor identificado, aos procuradores e representantes legais dos órgãos prejudicados), bem como ao investigado e à autoridade policial, antes de ser incluída nos autos, para sua homologação e posterior revisão ministerial.

Julgamento da ADI 6.298/DF e casos envolvendo vítima menor e genitor investigado

Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 6.298/DF, interpretou o artigo 28 do CPP [1] conforme a Constituição, estabelecendo que, além da vítima ou de seu representante legal, a autoridade judicial competente também poderá submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, caso verifique patente ilegalidade ou teratologia no ato do arquivamento.

Entretanto, existem numerosos crimes no Código Penal e na legislação penal especial nos quais as vítimas são crianças e adolescentes e os investigados são seus genitores.

Nessa hipótese, indaga-se: para fins de submissão da matéria à revisão ministerial, quem seriam os legitimados, tendo em vista que os próprios representantes são os investigados e a vítima é menor de idade?

Desse modo, considere-se a situação em que os pais de uma criança estão sendo investigados por crime de maus-tratos (artigo 136 do Código Penal) e, ao final das investigações, o membro do Ministério Público conclui não haver elementos de justa causa para a ação penal.

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Como proceder diante deste caso?

Primeiramente, é mister afastar a hipótese de que nestes eventos não deve haver um controle do arquivamento do inquérito policial, uma vez que a Constituição, em seu artigo 226, estabelece que é dever do Estado proteger crianças e adolescentes de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Além disso, a vítima não pode estar diante de uma proteção deficiente, já que lhe foi conferido o direito de revisão administrativa de arquivamento com o qual não teve o direito de opinar.

Por sua vez, o Código de Processo Penal não oferece uma resposta clara, embora, por analogia (artigo 3º do CPP [2]), seja possível recorrer ao artigo 33 [3] e nomear um curador especial.

Contudo, acreditamos não ser está a abordagem mais adequada, uma vez que a priori deve-se percorrer todo o sistema, em referência à interpretação sistemática, para encontrar uma resposta mais adequada (à Constituição), conforme a normatização do aludido artigo 226 da Carta Constitucional.

Hipótese de manifestação do Conselho Tutelar

Como se sabe, as normas jurídicas não surgem de forma individualizada, isolada; pelo contrário, estão integradas em um sistema normativo que, por sua própria natureza, engloba uma vasta quantidade de legislações.

Nesse passo, Ricardo Maurício Freire Soares (Elementos de Teoria Geral do Direito, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 325) esclarece que “a interpretação sistemática revela-se como a busca do sentido global da norma em um conjunto abarcante, envolvendo sempre uma teleologia, visto que a percepção dos fins não é imanente a cada norma isoladamente, mas exige uma visão ampliada da norma dentro do Ordenamento Jurídico”.

Neste sentido, como há uma criança ou um adolescente sendo vítimas de um crime, sustentamos – amparado pela interpretação sistemática — que o órgão responsável para dar início a revisão ministerial seria o Conselho Tutelar, pois incumbido de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente (artigo 131 do Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA [4]).

Além disso, com as recentes modificações do ECA, por meio da Lei nº 14.344, de 2022, o artigo 136, inciso XVI, dispõe ser atribuição do Conselho Tutelar, “representar à autoridade judicial para requerer a concessão de medida protetiva de urgência à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência doméstica e familiar, bem como a revisão das já concedidas”.

O Conselho Tutelar detém liberdade para tomar suas próprias decisões de forma independente, sem ser influenciado por outros organismos em sua função, contudo, tem o dever de estar alinhado com a legislação e orientado pelos princípios da doutrina da proteção integral.

Sendo assim, seria controverso sustentar que o Conselho Tutelar pode representar perante a autoridade judiciária e até mesmo militar para revisão de medida protetivas, e ser impedido de “representar” perante o órgão superior do Ministério Público para fins de revisão do arquivamento.

Portanto, para os crimes que figuram como vítimas crianças ou adolescentes e os genitores são os investigados, sustentamos ser a resposta mais adequada (à Constituição), a intimação do Conselho Tutelar [5] para manifestação acerca da promoção de arquivamento do inquérito policial, atuando o órgão municipal, como representante legal (artigo 28, §1 do CPP).

 

 


[1] Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência) (Vide ADI 6.298) (Vide ADI 6.300) (Vide ADI 6.305)

§1º. Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

§2º. Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) (Vigência)

[2] Art. 3º  A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

[3] Art. 33.  Se o ofendido for menor de 18 anos, ou mentalmente enfermo, ou retardado mental, e não tiver representante legal, ou colidirem os interesses deste com os daquele, o direito de queixa poderá ser exercido por curador especial, nomeado, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, pelo juiz competente para o processo penal.

[4] Art. 131. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei.

[5] O conselheiro tutelar representa – ou ao menos deveria representar – o braço mais próximo do Estado em relação à realidade na qual a criança e ao adolescente estão inseridos.

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