Opinião

Perspectivas axiológicas e constitucionais do direito ao planejamento familiar

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10 de abril de 2024, 7h02

As inúmeras mudanças trazidas com a Constituição de 1988 decorreram de uma sequência de fatores sociais, históricos e culturais que se refletiram na movimentação gerada em torno da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), que trouxe uma série de pautas reivindicatórias dos mais diversos setores da sociedade.

Os reflexos do período militar, as autonomias conquistas pelos sujeitos na sociedade em meio a progressiva libertação das amarras da família patriarcal, o desenvolvimento das tecnologias e a luta pelas igualdades materiais contribuíram para a construção de um texto constitucional aberto e emancipador, com forte carga principiológica que permitiu a constante interatividade entre o texto e o desenvolvimento da sociedade.

É nesse contexto que a busca pelo reconhecimento de novas modalidades de família vai impor uma nova análise da agenda do estado constitucional, que passa a ampliar políticas públicas e rever suas próprias prioridades acerca de políticas de planejamento familiar.

Surge também uma rediscussão acerca do papel das Constituições, com o surgimento da força normativa da Constituição, com os novos métodos de interpretação, com a reaproximação entre o direito e a moral, além da constitucionalização da política e das relações sociais, com o sensível deslocamento do centro de decisão para o Poder Judiciário.

É nesse sentido, que o princípio da solidariedade e o da dignidade da pessoa humana mostram a superação da concepção arcaica do planejamento familiar, que visava unicamente ao controle do número de filhos.

Nesse caminhar, considerando sua extrema importância para a sociedade e para o ordenamento jurídico, a Constituição de 1988 abriu um inédito espaço para o planejamento familiar no Brasil, que agora passa a ser um direito constitucional subjetivo com ênfase expressa na dignidade da pessoa humana e na paternidade responsável, ao preconizar, em seu artigo 227, § 7º, que “o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”[1].

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Assim, ao tratar o planejamento familiar como um direito e elevá-lo à categoria de norma constitucional, o legislador constituinte originário reposicionou o instituto acima das normas do direito de família relativas ao tema, tornando o planejamento familiar passível de concretização judicial e irradiando seus efeitos para as leis e atos tomados pelo Poder Público referentes à temática.

Planejamento familiar

Com efeito, o planejamento familiar passou a fazer parte de toda a dogmática dos direitos fundamentais, ganhando força diante da legislação infraconstitucional e até mesmo diante da erosão corrosiva do legislador constitucional derivado. Ademais, ele vai ingressar no conjunto das normas que possuem um regime constitucional reforçado, tendo, inclusive, aplicabilidade imediata (artigo 5º, § 1º).

Assim, mesmo não estando expressamente elencados no rol dos direitos e garantias fundamentais da Constituição, é possível verificar a existência de outros direitos fundamentais elencados fora do Título II e até mesmo fora do texto constitucional.

Nesse prisma, Ingo Sarlet identifica alguns direitos fundamentais fora do catálogo e com status formal e material de norma constitucional, como o direito à saúde (artigo 196) e à educação (artigo 205), o direito de igual acesso aos cargos públicos (artigo 37, I), os direitos de associação sindical e de greves dos servidores públicos (artigos 37, VI e VII), direito à estabilidade do servidor público (artigo 41), legitimidade ativa para iniciativa popular de lei (artigo 61, § 2), garantia da publicidade e fundamentação das decisões judiciais (artigo 93, IX), as limitações constitucionais ao poder de tributar (artigo 150, incisos I a VI), o direito ao planejamento familiar incentivado pelo Estado (artigo 226, § 7), à proteção à entidade familiar (artigo 226), a igualdade de direitos e obrigações entre os cônjuges (artigo 226, § 5) e o direito dos filhos a tratamento igualitário (artigo 227, § 6), o direito à utilização gratuita dos transportes públicos coletivos para os maiores de 65 anos (artigo 230, § 3), direitos à previdência social e à aposentadoria (artigos 201 e 202) etc [2].

Böckenförde alertou para a existência, em todas as modernas teorias constitucionais, de uma perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, teoria que avançou com a Lei Fundamental de Bonn de 1949 [3]. O caso Lüth (decisão do tribunal constitucional alemão em 1958) [4] tem sido muito citado como marco referencial da teoria, que defende que a função dos direitos fundamentais não se limita a tratar de direitos subjetivos do indivíduo, mas também de um conjunto de valores de natureza jurídico-objetiva e que irradia seus efeitos em todo o ordenamento jurídico como fins diretivos de ação positiva, englobando, inclusive, as relações privadas.

É a eficácia irradiante dos direitos fundamentais, servindo também de diretriz para aplicação e interpretação da legislação infraconstitucional, bem como para a criação de instituições estatais e para o procedimento (organização e procedimento) [5].

Dessa forma, com a constitucionalização do direito ao planejamento familiar houve uma irradiação significativa do instituto não somente em todo o direito de família, mas também na vida social, política e até privada.

Agora, o Estado é convocado para atuar positivamente criando políticas públicas para atender a esse direito prestacional que atende ao direito fundamental ao planejamento familiar. Nesse contexto, pode haver a criação de programas para atender às pessoas no exercício desse direito, seja no sentido de controlar ou de gerar filhos, obedecendo, à livre decisão da pessoa.

Gomes Canotilho ressalta a importância de um direito para a sociedade para galgá-lo a posição de fundamental para a Constituição, realçando a sua vinculação ao projeto de realização dos ditames constitucionais, não bastando, logicamente, a mera constitucionalização, mas sim, o estabelecimento de meios para garantir sua efetividade [6].

Em verdade, a Constituição trouxe, em sua mensagem geral, um foco na pessoa humana, para colocá-la como objeto central de valoração acima das instituições coletivas como Estado e família. Assim, as relações familiares abandonam o foco no patrimônio com vistas à preservação da herança fundadas na filiação puramente genética, para dar lugar à família voltada para o ser humano e mais sintonizada com a realidade plural da sociedade e do planejamento familiar.

Nesse contexto, é de suma importância contextualizar o planejamento familiar com os mandamentos da Constituição e com as novas realidades da família contemporânea, que deve ser vislumbrada sem qualquer visão imposta por modelos pré-determinados.

Para nós, o planejamento familiar pode ser entendido como um direito fundamental de gerar, não gerar e de ter a quantidade de filhos que desejar, pautando-se pelos imperativos da autonomia e da dignidade da pessoa humana com o objetivo primordial de preencher o sentimento afetivo de maternidade e paternidade, seja pela vertente natural ou artificial.

Maria Cláudia Brauner relata o fortalecimento significativo que os direitos sexuais e reprodutivos receberam após a previsão constitucional do planejamento familiar, concedendo direitos para o casal planejar o número de filhos e a diferença de idade entre eles, além de receber informações necessárias para o desempenho da liberdade, face às interferências externas prejudiciais à autonomia [7].

A questão do planejamento familiar ganhou força significativa com sua ascensão constitucional, sendo que a qualidade de vida do casal, o intervalo entre os partos e a quantidade do número de filhos passaram a ser pauta inadiável de discussão do Estado, que somente em 2007, elaborou a Política Nacional do Planejamento Familiar, que ainda presta muita ênfase a esterilização e ao aspecto controlador da prole.

Avanços biogenéticos

De fato, uma das transformações sociais que vai causar grande impacto na estrutura tradicional da família trata-se dos avanços biogenéticos que oportunizam procriações sem a necessidade de relações sexuais. Com efeito, o planejamento familiar vai ser também vislumbrado e interpretado à luz dessa realidade e de todos os valores incorporados à cultura brasileira, o que resulta na liberdade de ter filhos, independente do modelo de formação familiar.

Portanto, todos esses avanços possibilitam evoluções substanciais na concepção do planejamento familiar, que passam a abranger interesses na reprodução humana independente da relação homem-mulher.

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Família no pôr do sol

Com a promulgação da Constituição de 1988, surge no Brasil o direito de constituição e planejamento familiar com um desenho normativo mais consistente e impregnado pelos novos institutos de hermenêutica constitucional, que amarram os postulados do planejamento familiar a toda uma lógica sistemática tendente à valorização da dignidade e da autonomia individual.

Nesse contexto, o instituto jurídico da família ganhou novos ares, inclusive com a elevação do planejamento familiar à categoria de direito subjetivo constitucional, fundado no princípio da paternidade responsável e na dignidade da pessoa humana, competindo ao Estado fornecer recursos educacionais e científicos para seu exercício (artigo 226, §7º da CF).

Dessa forma, a elevação do planejamento familiar à categoria de norma constitucional posiciona o instituto no sistema aberto de princípios e regras da constituição, sujeito aos influxos das mutações cambiantes da sociedade e a uma hermenêutica concretizadora, que parte de uma pré-compreensão do sentido da norma por meio do intérprete, para concretizá-la em meio a uma determinada situação histórica concreta, ou seja, a nova leitura do planejamento familiar, concretizada de forma prévia pelo intérprete, vai encontrar uma realidade social com pluralidade de famílias e avanços tecnológicos que ajudam pessoas inférteis a terem seus filhos naturais, oportunizando o surgimento de leis e de políticas públicas que busquem a efetividade dos preceitos constitucionais em harmonia com os avanços sociais.

Assim, o avanço da tecnologia, que possibilita pessoas inférteis terem seus filhos, insere uma nova visão cultural e constitucional acerca da procriação, fomentando esperanças de muitas pessoas e inserindo novas perspectivas na sociedade acerca do tema.

Com efeito, o planejamento familiar será visto sob um enfoque plural, a fim de abrigar diversas possibilidades encontradas na realidade social, alavancando as autonomias individuais nas mais diferentes formas de realização pessoal. E mais: convida o Estado a executar sua função prestacional para atender aos reclamos do direito ao planejamento familiar.

Outrossim, lembrando a linha de Peter Häberle, como a Constituição aborda aspectos da vida privada familiar, é natural que seus integrantes façam parte da realidade ativa desse processo interpretativo, para se levar em consideração suas esperanças, expectativas e anseios, alavancando o pluralismo como essência da interpretação dos preceitos inerentes ao planejamento familiar.

Nesse panorama de mutação social, evolução constitucional e, especialmente, valorização da dignidade humana, os institutos do direito de família irão sofrer profundas modificações em suas estruturas. Por isso, a família deve ser vista, não como um fim, mas sim, como um meio de promoção individual, visando à autonomia, à dignidade humana e à promoção da solidariedade entre os indivíduos.

Nesse prisma, fácil constatar que a família atual não mais gira em torno da propriedade, da herança, da filiação natural ou de todas as premissas que carreiam o paternalismo. Hoje, o que justifica a família é a dignidade humana e o sentimento afetivo, concedendo importância ao sujeito e à pluralidade social na formação da família.

Nessa esteira, ao democratizar o planejamento familiar, a Constituição vincula todos os poderes estatais no sentido de promover um planejamento inclusivo, que abarque as mais diversas autonomias presentes na sociedade e que preste ênfase à vontade individual de procurar escolher a quantidade de filhos naturais que, de forma responsável, deseja ter, em harmonia com um conceito plural de família.

 


[1] O texto completo do art. 226, § 7º da Constituição Federal de 1988 reza que “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.

[2] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 117-118.

[3] BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Trad. Juan Luis Requejo Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Aufi-Baden-Baden: Nomos Verl.Fes., 1993, p. 106-116.

[4] O caso Lüth derivou-se de um boicote ao filme “Amada Imortal” produzido pelo produtor de cinema Veit Harlan. A motivação do boicote, idealizado e propagado pelo judeu Eric Lüth, deu-se em razão do cineasta ter sido produtor de filmes de ideias nazista contra os judeus na época do auge do nazismo. O filme foi um fracasso de público. Diante disso, Veit Harlan ingressou com ação judicial contra Lüth, sendo vitorioso em todas as instâncias ordinárias. No entanto, com base na liberdade constitucional de manifestação de pensamento, que também traria efeitos nas relações privadas, Lüth recorreu ao Tribunal Constitucional Alemão, tendo sido vitorioso em sua tese.

[5] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 143.

[6] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999, p. 56.

[7] BRAUNER, Maria C. C. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 13-16.

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