Justiça Tributária

Portaria que limita valor de compensações de créditos tributários é inconstitucional

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8 de abril de 2024, 15h22

Desde que foi publicada, a Medida Provisória (MP) nº 1.202/23 vem sofrendo, com razão, diversas críticas por parte dos contribuintes, especialmente por veicular diversas propostas com finalidade exclusivamente arrecadatória que afetaram, de um dia para o outro, todo o planejamento financeiro das empresas para o ano de 2024.

Dentre as alterações promovidas pela MP, encontra-se aquela veiculada em seu artigo 4º, que autoriza o Poder Executivo a editar medida visando a limitar o valor mensal de compensações transmitidas pelos contribuintes e que tenham como objeto créditos oriundos de decisões judiciais transitadas em julgado.

Apesar da justificativa para a criação da inovadora limitação ser ainda o julgamento da “tese do século”, fato é que o seu alcance vai muito além dos créditos decorrentes dessas ações, uma vez que afetarão os créditos originados de todo e qualquer processo que ainda esteja em curso perante o judiciário.

Após a publicação da limitação, diversos doutrinadores se posicionaram de forma contrária à medida instituída pelo Poder Executivo, ocorrendo, ainda, uma enxurrada de medidas judiciais visando a afastar os efeitos do artigo 4º da MP nº 1.202/23.

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Os argumentos ventilados até então, que vão desde a interpretação da orientação firmada no julgamento do Tema nº 345 dos recursos repetitivos até a necessidade de observância ao princípio da anterioridade, são de manifesta razão jurídica, porém não é sobre eles que pretendemos nos debruçar no presente estudo.

Aqui, tentaremos demonstrar de forma mais objetiva que, mesmo que se considere a MP como constitucional e legal (posição da qual, ressaltamos, não compartilhamos), a sua regulamentação pela Portaria MF nº 14/24 extrapolou o poder regulamentar que lhe foi conferido, violando, assim, o princípio da reserva legal.

Conforme se depreende do § 1º do artigo 1º da Portaria MF nº 14/24, o valor de cada parcela mensal está limitado ao valor total do crédito, dividido pela quantidade de meses, senão vejamos:

1º Quando se tratar de créditos decorrentes de decisão judicial transitada em julgado, o valor mensal a ser compensado fica limitado ao valor do crédito atualizado até a data da primeira declaração de compensação dividido pela quantidade de meses conforme os incisos abaixo:

Com isso, na prática, o contribuinte que possuir, por exemplo, um crédito de R$ 12 milhões para compensar contra a Fazenda Nacional, poderá utilizar a cada mês uma parcela de R$ 1 milhão, independentemente da existência de débitos contra os quais ele deseja utilizar tais créditos.

A sistemática, no entanto, é evidentemente prejudicial aos contribuintes, uma vez que, em alguns meses o sujeito passivo poderá ter débitos equivalentes a R$ 500 mil e, em outros, de R$ 2 milhões, não lhe sendo possível, no entanto, utilizar o saldo “credor” do mês em que pagou menos de R$ 1 milhão em tributos para quitar os débitos superiores a R$ 1 milhão no mês seguinte.

Considerando que diversos tributos federais não são apurados mensalmente (como é o caso do IRPJ e da CSLL — apuração trimestral), por óbvio que tal situação ocorrerá rotineiramente, causando um grande impacto financeiro ao contribuinte, conforme quadro demonstrativo abaixo, o qual considera o exemplo anterior:

Como se vê, a criativa sistemática instituída pela Portaria MF nº 14/24, para resguardar uma maior arrecadação, impede que o contribuinte, mesmo detendo um crédito de R$ 12 milhões para utilização dentro de um exercício financeiro, escoe integralmente seu crédito naquele exercício, uma vez que não lhe é autorizado escolher o valor que será utilizado dentro de um mês ou, então, carregar o saldo credor de um mês para o outro.

A impossibilidade ora demonstrada fica muito clara a partir da leitura do próprio “Perguntas e Respostas” disponibilizado recentemente pela Receita Federal. A propósito:

7. Caso a compensação, em determinado mês, tenha sido inferior ao limite, é possível somar a parte não compensada para aumentar o limite de meses subsequentes?
Essa possibilidade não foi prevista pela legislação e, portanto, o que ocorre em um mês não interfere nos meses subsequentes.”

A injustiça cometida, ressaltamos, é tão evidente que a própria Receita Federal não parece se sentir muito confortável com seu posicionamento, respondendo à pergunta de forma pouquíssimo categórica e apoiada em interpretação extremamente literal da legislação.

Em que pese a nobre tentativa de se aumentar a arrecadação tributária federal, entendemos que não há qualquer motivo para que o contribuinte não possa escolher a forma de utilização do seu crédito dentro de um ano, desde que respeitado o limite global anual, nos termos disciplinados pelo próprio artigo 4º da MP nº 1.202/23.

Aliás, a leitura atenta do artigo 74-A da Lei nº 9.430/96, introduzido pelo artigo 4º da MP nº 1.202/23, em nenhum momento autoriza a interpretação de que os valores não utilizados em um mês não sejam carregados para os subsequentes, desde que respeitado o valor global anual do crédito a ser compensado.

A única limitação disciplinada na MP se refere ao valor mínimo da parcela — ou seja, determina apenas que o Ministério de Estado da Fazenda não poderá estipular parcelas inferiores a 1/60 (um sessenta avos) do valor total do crédito. Mas, em nenhum momento, tal ato normativo determinou que o valor em um mês não pudesse superar o 1/60.

Na verdade, ao estipular a sistemática de impossibilidade de cumulação do crédito não utilizado num mês passado com o crédito detido no mês posterior, a Portaria acabou por diminuir de forma global o quantum compensável pelo contribuinte em patamares inferiores a 1/60.

Retomemos o exemplo anterior

A parcela de 1/60 calculada pelo contribuinte lhe autoriza a utilização de R$ 1 milhão por mês durante o primeiro ano do crédito, o que, ao final, teoricamente resultaria na compensação de R$ 12 milhões em créditos no ano.

Porém, mesmo possuindo R$ 12 milhões em débitos compensáveis em um ano, o contribuinte apenas conseguiu utilizar R$ 9 milhões de seus créditos, o que, em parcelas proporcionais mensais, resultaria em parcelas de R$ 750 mil (ou seja, 1/80 — um oitenta avos — do crédito total).

Ora, se o artigo 4º da MP nº 1.202/23 determina que o contribuinte deverá utilizar, no mínimo, 1/60 (um sessenta avos) por mês do seu crédito e a sistemática imposta pela Portaria MF nº 14/24 resulta em uma parcela global menor do que 1/60, por óbvio que esse ato infralegal está extrapolando o próprio texto daquela norma que lhe dá origem, violando, assim, o princípio da reserva legal, previsto nos artigos 5º, II, e 150, I, da Constituição.

Sobre a violação ao princípio da reserva de lei por atos regulamentares editados em extrapolação à norma instituidora, valemo-nos das sempre inesgotáveis lições do ministro Celso de Mello, quando ainda compunha o Supremo Tribunal Federal:

– O princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal. – O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua “contra legem” ou “praeter legem”, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, inciso V, da Constituição da República e que lhe permite “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (…)”. Doutrina. Precedentes (RE 318.873-AgR/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Plausibilidade jurídica da impugnação à validade constitucional da Instrução Normativa STN nº 01/2005. [1]

Portanto, ao limitar o valor a ser utilizado pelos contribuintes a parcela menor do que 1/60 (um sessenta avos) do seu crédito, a Portaria MF nº 24/14 acabou por violar o princípio da reserva de lei, devendo, portanto, ser considerada inconstitucional.

 

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[1] AC 1033 AgR-QO, Rel.: Celso de Mello, Tribunal Pleno, J.: 25/05/2006

 

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