Opinião

Uso da IA no sistema de Justiça é um dos grandes desafios do século

Autores

  • Marcela Bocayuva

    é advogada mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT) certificada em Liderança e Negociação pela Universidade de Harvard especialista em Direito e Economia pela Universidade de Chicago (Uchicago) estudante visitante na New York University (NYU) e coordenadora da Escola Nacional da Magistratura (ENM).

  • Rebecca de Souza Paiva

    é advogada e consultora em Direito Legislativo e Relações Governamentais. Bacharel em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) pós-graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT) em Ordem Jurídica e Ministério Público e pós-graduada em Direito Legislativo pelo IMP.

5 de abril de 2024, 20h54

O movimento de digitalização da Justiça é uma realidade da qual não se pode escapar. E o uso da inteligência artificial, na medida correta, em deferência aos princípios norteadores do ordenamento jurídico, traduz-se em potente ferramenta para amenizar a sobrecarga do Poder Judiciário. Também mostra-se uma ferramenta eficaz e célere para concretizar direitos fundamentais.

Há, contudo, que se impor limitações a sua abrangência, especialmente no que tange à atividade-fim de produzir decisões. Inclusive, em determinados casos, é indispensável que o desfecho de questões socialmente relevantes seja o resultado de processos hermenêuticos do julgador humano, preservando-se assim o compromisso inabalável com a justiça e a equidade.

No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), atento as essas preocupações, expediu a Resolução nº 332/2020, que fixou critérios de ética e transparência para condicionar e adequar o uso de inteligência artificial (IA) nos tribunais. Ademais, foi editada a Lei Geral de Proteção de Dados n. 13.709/18, a LGPD, para conformar o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade, de privacidade e o livre desenvolvimento dos cidadãos.

Tecnologia e o sistema de Justiça brasileiro

Um dos desafios do amplo acesso à justiça é atingir o equilíbrio e atender ao trinômio “qualidade-celeridade-efetividade”. Os órgãos jurisdicionais devem, então, mantida a qualidade e a eficiência, produzir sentenças em tempo hábil e razoável.

Para tanto, é importante prestigiar a universalização da tutela jurisdicional, no sentido de ampliar o número de pessoas capazes de ingressar em juízo ou de causas a serem objeto deste e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar internamente o sistema processual, que deve ser célere e produtor de soluções justas e efetivas.

Portanto, não se deve perder de vista o principal objetivo: promover a justiça substancial, a satisfação e a paz social, afastando-se da ideia de produção de decisões vazias e automáticas. É, nesse ponto, que a inteligência artificial e a tecnologia amparam as atividades desempenhadas no âmbito dos tribunais e deve ser utilizada na medida correta [1].

Assim, segundo a acepção clássica de acesso à justiça elaborada por Cappelletti e Garth, o sistema processual deve exprimir duas características, “primeiro o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos” [2].

Programas na Justiça

Não obstante, o Poder Judiciário, diante desse processo de expansão que o colocou em posição de destaque e do consequente aumento da judicialização de direitos, acabou por ficar sobrecarregado com a quantidade de demandas, o que passou, em certa medida, a comprometer sua celeridade e eficiência.

Spacca

De acordo com o relatório Justiça em Números 2023, do CNJ, em 2022 existia o equivalente a 81,4 milhões processos em tramitação. Desses, 31,5 milhões eram novos que ingressaram durante o ano, em face dos 2,9 milhões (10,9%) julgados. Assim, o estoque processual cresceu em 1,8 milhão de processos, finalizando o ano de 2022 com o maior número de processos em tramitação da série histórica.

A implementação pelo CNJ de programas de tecnologia e modernização no âmbito do Poder Judiciário foi uma das medidas adotadas para desafogá-lo e amenizar a sobrecarga, em observância à Emenda à Constituição nº 45/2004, que acrescentou o inciso LXXXVIII ao artigo 5º da Constituição Federal, para assegurar a razoável duração do processo e a celeridade da tramitação.

Essa mudança de paradigma foi intensificada de modo quase que inevitável em virtude dos desafios que vieram com a pandemia de Covid-19, que impôs o distanciamento social, tornando o mundo digital a opção mais acessível.

Ao movimento, deu-se o nome de Programa Justiça 4.0 – Inovação e Efetividade na Realização da Justiça para Todos, o qual foi responsável por criar plataformas como o domicílio eletrônico, o Juízo 100% Digital, o Balcão Virtual, a Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ) e permitiu a consolidação e qualificação do DataJud, a criação da Plataforma Codex, a Plataforma Sinapse e a implantação do Núcleo de Justiça 4.0.

Dados

Conforme o relatório Justiça em Números, as inovações digitais definitivamente contribuíram para a melhoria da prestação jurisdicional e para o aumento da produtividade. Verifica-se em 70 tribunais 100% de adesão ao juízo 100% digital, o que corresponde a 79% do total das unidades jurisdicionais.

Isso significa que, nesses juízos, os atos processuais podem ser praticados por meio eletrônico e remoto em sua totalidade, inclusive audiências e sessões de julgamento.

De acordo com o documento, ao todo, existem 194 Núcleos de Justiça 4.0 em funcionamento. Assim, relevantes atividades jurisdicionais estão sendo realizadas de forma integralmente virtual, sendo que quase 100% dos processos novos ingressam no formato eletrônico. Tal fato, pressupõe a desnecessidade de novas estruturas físicas, garantindo economia aos cofres públicos e, ao mesmo tempo, a manutenção da qualidade de atendimento ao jurisdicionado [3].

Acrescente-se, ademais, que os avanços tecnológicos mencionados causaram uma redução importante da taxa de congestionamento, na proporção de 1,6%, atingindo a marca de 72,9%. Quanto ao tempo de resolução, em se tratando de processo físico, verificou-se que tal modalidade é mais morosa, com a média de 10 anos e 10 meses, enquanto o processo eletrônico foi solucionado em três anos e cinco meses [4].

Assim, os dados estatísticos reunidos pelo Justiça em Números demonstram de forma cristalina que as inovações tecnológicas estão diretamente relacionadas com a celeridade, com o aumento de qualidade, bem como com a redução de despesas de ordem orçamentária e estrutural, no que tange à prestação jurisdicional.

O Brasil está engajado em desenvolver-se nesse sentido. Compreende-se que o avanço tecnológico é um processo implacável pelo qual grande parte dos países estão passando. Por conseguinte, tais premissas são fundamentais para o desenvolvimento sustentável da economia nacional frente aos padrões mundiais, traduzindo-se em diferencial competitivo profundamente relevante para possibilitar que o país tenha uma maior ingerência no fenômeno de integração econômica, social, cultural em escala mundial, de forma progressiva, equilibrada e eficiente.

Compromisso brasileiro

Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU) inseriu na Agenda 2030 o objetivo de que seus países membros promovam o desenvolvimento sustentável (ODS-16), por meio da consolidação de sistemas judiciais acessíveis a todos, de modo a utilizar a tecnologia como forma de promoção e acesso à justiça.

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por sua vez, foi responsável por estabelecer diretrizes acerca do desenvolvimento da inteligência artificial (IA). Ao todo são 42 países signatários do documento e o Brasil é um deles.

Em virtude disso, o fenômeno de digitalização da justiça está em progresso nos tribunais brasileiros, com a implementação de diversos sistemas tendo por parâmetro a base de dados do CNJ — que é uma das maiores do mundo — com diversas funcionalidades, como a transcrição de audiências, a elaboração de minutas e a realização do juízo de admissibilidade de recursos e estatísticas quanto à probabilidade de reversão de decisões [5].

O relatório da Pesquisa de Tecnologia Aplicada à Gestão dos Conflitos no Âmbito do Poder Judiciário Brasileiro, produzido pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (CIAPJ/FGV) atestou que cerca de metade deles possui projetos de inteligência artificial operantes ou em desenvolvimento [6].

Sem prejuízo dos tribunais estaduais e federais, no Supremo Tribunal Federal foi implementado o sistema “Victor”, responsável pela análise célere e eficiente de recursos extraordinários de acordo com a repercussão geral, tal sistema apresentou acurácia de 80% na identificação de padrões e de precedentes relevantes para o deslinde do caso.

Esse sistema visa a ponderar a necessidade de tornar o fluxo de trabalho mais funcional e, ao mesmo tempo, proporcionar mais tempo para a mente humana se dedicar às tarefas que demandam raciocínio e discernimento para o processo de formação de decisões [7]. Além disso, também existe na corte o Sistema Rafa 2030, com precisão de 90%, criada para cumprir a agenda da ONU [8].

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), foram adotados o Sócrates, o Athos e o e-Juris, para auxílio na identificação antecipada das controvérsias jurídicas do recurso especial e do dispositivo legal invocado para embasá-lo, além dos precedentes em divergência, julgamento de repetitivos e padrões de acórdãos sobre o mesmo tema [9].

Conjuntura global

No contexto internacional, a China desenvolveu o sistema de “tribunais inteligentes”, que apresentaram resultados expressivos na redução da carga média de trabalho na proporção de mais de um terço, com a economia de 1,7 bilhões de horas de trabalho e mais de 300 bilhões de yuans, de 2019 a 2021.

No Reino Unido, foi expedida a recomendação de que as causas no valor de até 25 mil libras deveriam passar previamente pela etapa dos métodos de soluções de disputas on-line, para, somente após essa fase, em caso de não haver acordo, serem submetidas ao crivo do magistrado no âmbito do juízo contencioso. A União Europeia, por sua vez, criou a plataforma Online Dispute Resolution como método para amenizar a sobrecarga do Poder Judiciário [10].

Na Corte Americana foi implementado o Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions (Compas), por meio do qual os juízes decidem sobre fixação de fiança e livramento condicional, com base na análise de dados acerca dos riscos de reincidência ou de fuga. Já há casos, inclusive, de assistência jurídica integral por meio de inteligência artificial no lugar de profissionais humanos para controvérsias de baixo valor [11].

Sabe-se que a implementação dos processos tecnológicos é uma realidade em curso, porém, embora haja inúmeros benefícios, igualmente há vastos desafios trazidos com ela.

Diante dessas questões, torna-se imprescindível, paralelamente a todo o desenvolvimento no âmbito dos tribunais, a formulação de políticas públicas no sentido de viabilizar a inclusão por meio do acesso a estruturas, materiais e auxílio no manejo e na implementação dessa nova cultura digital, para que não se traduza em óbice ao amplo acesso à prestação jurisdicional.

Para além dos obstáculos de ordem social, há também uma questão importante que deve ser bem delineada acerca dos limites ao uso da inteligência artificial no Poder Judiciário quanto ao desempenho de sua atividade-fim, que é o processo decisório.

Sobre o assunto, é relevante frisar que o papel do julgador deixou de ser um mero instrumento de aplicação de leis, havendo a superação da percepção do juiz como “boca da lei”, não estando mais sua atividade adstrita a um procedimento silogístico de pura e simples subsunção do fato à norma.[12]. Ao invés disso, tornou-se mais responsável pela efetividade da jurisdição e pela real concretização dos direitos por intermédio de métodos racionais e subjetivos de interpretação, algo que não pode ser exercido em toda a sua extensão por robôs ou máquinas. Isso porque o Direito é uma ciência humana, o que pressupõe ser muito mais amplo e complexo do que a mera aplicação de teoremas matemáticos exatos ou algoritmos. O papel do julgador está em aplicar a norma considerando as nuances e as complexidades de cada caso concreto que surge das relações humanas multifacetadas.

Em outras palavras, o uso de IA há de ser feito com precaução, em razão dos riscos que essa tecnologia pode representar à integridade das decisões por ela influenciadas, os quais incluem o potencial de incorrer em viés e discriminação nos padrões abrangidos pelos algoritmos, na perda de qualidade, na ausência de sensibilidade humana quando da automatização de questões socialmente relevantes, na redução do âmbito de liberdade nos processos hermenêuticos do julgador humano, nas questões de privacidade e de proteção de dados, de falta de ética e transparência.

Nesse sentido, é indispensável que a tecnologia encontre amparo legal e siga diretrizes permeadas pelos valores norteadores do ordenamento jurídico, de modo que o seu uso signifique uma ferramenta de fomento para a boa gestão da prestação jurisdicional, dotada de eficiência, celeridade e qualidade.

Para tanto, deve haver o respeito aos códigos de ética e estruturas de governança, segundo os princípios da equidade, imparcialidade, pluralidade e confidencialidade, deve haver transparência quanto ao modus operandi dos sistemas, segurança quanto à proteção de dados pessoais e sensíveis e, sobretudo, supervisão humana, em virtude da necessidade de mecanismos de responsabilização e controle (accountability).

 


[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil I. 6 ed. São Paulo, 2009.

[2] CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, pág. 08, 1988.

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] CONJUR. A base de dados pública do Judiciário brasileiro, conhecida como DataJud, é uma das maiores do mundo. Instituída pela Resolução CNJ n. 331/2020, armazenando 144 milhões de processos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-30/poder-decide-faz/. Acesso em: 20.03.2024.

[6] FGV. Relatório de pesquisa: tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Disponível em: https://conhecimento.fgv.br/publicacao/relatorio-de-pesquisa-tecnologia-aplicada-gestao-dos-conflitos-no-ambito-do-poder-0. Acesso em: 20.03.2024.

[7] MENDES, Cleyton. Robôs no tribunal: o papel da inteligência artificial no Judiciário. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-15/robos-no-tribunal-papel-da-inteligencia-artificial-no-judiciario/. Acesso em: 20.03.2024.

[8] STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=505698&ori=1. Acesso em: 20.03.2024.

[9] STJ. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/09032021-Inteligencia-artificial-esta-presente-em-metade-dos-tribunais-brasileiros–aponta-estudo-inedito.aspx. Acesso: 20.03.2024.

[10] MENDES, Cleyton. Robôs no tribunal: o papel da inteligência artificial no Judiciário. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-15/robos-no-tribunal-papel-da-inteligencia-artificial-no-judiciario/. Acesso em: 20.03.2024.

[11] MELO, João Ozorio de. Automação em julgamentos chega aos tribunais dos EUA e da Estônia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-24/automacao-julgamentos-chega-aos-tribunais-eua-estonia/. Acesso em: 20.03.2024.

[12] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7547/neoconstitucionalismo-e-constitucionalizacao-do-direito. Acesso em: 20.03.2024.

Autores

  • é advogada, mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT), certificada em Liderança e Negociação pela Universidade de Harvard, especialista em Direito e Economia pela Universidade de Chicago (Uchicago), estudante visitante na New York University (NYU) e coordenadora da Escola Nacional da Magistratura (ENM).

  • é advogada e consultora em Direito Legislativo e Relações Governamentais. Bacharel em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) pós-graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT) em Ordem Jurídica e Ministério Público e pós-graduada em Direito Legislativo pelo IMP.

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