Robôs no tribunal: o papel da inteligência artificial no Judiciário
15 de dezembro de 2023, 18h33
A integração da inteligência artificial (IA) no sistema judicial não é uma projeção futurística, mas uma realidade emergente que desafia os contornos tradicionais da justiça.
No Brasil, a recente iniciativa do Supremo Tribunal Federal (STF), liderada pelo ministro Roberto Barroso em adotar programas de IA, marcou este significativo ponto de inflexão [1]. Este movimento ilustra não apenas a evolução tecnológica, mas também os desafios éticos e práticos que acompanham essa transformação.
Com capacidades que vão desde a síntese automática de processos judiciais até a análise avançada de jurisprudências, o uso de IA pelos tribunais, do Brasil à China, promete agilizar a tramitação de casos e oferecer suporte decisório mais eficiente. No entanto, as implicações dessa integração vão além da eficiência operacional. Elas tocam questões fundamentais de privacidade, ética e precisão nas decisões e julgados.
Inovações proporcionadas pela IA no Judiciário
A adoção da Inteligência Artificial (IA) no judiciário brasileiro inaugura uma “nova era” de inovações que visam, para além da eficiência, a uma mudança fundamental na forma como a justiça é administrada. O seu uso, já em curso, pode e está trazendo ao Judiciário um adjetivo que, até então, não era o mais evidente a este Poder: agilidade.
E esses promissores resultados do uso da IA demonstram que esta agilidade é sustentável quando alicerçada por dois pilares básicos:
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a) Análise massiva de dados;
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b) Automatização de rotinas e processos.
Agilização processual
A agilização dos processos judiciais através da IA é um avanço particularmente notável, especialmente se considerarmos a histórica queixa de morosidade do judiciário, frequentemente sobrecarregado por volumes massivos de casos e pela sistemática repetitiva de rotinas e procedimentos.
No Brasil essa “nova era” foi iniciada pelo programa “Victor” [3], implementado pelo STF. Este sistema especializou-se na análise rápida e eficiente dos recursos extraordinários e gerou resultados tão promissores [4] que seu lançamento foi antecipado pela então presidente ministra Rosa Weber no fim de seu mandato em Outubro de 2023 [5].
A influência do “Victor” (ou VitorIA) está além da mera aceleração processual. Essa IA pode redefinir o fluxo de trabalho no judiciário, liberando tempo e recursos humanos para tarefas que exigem um nível mais elevado de discernimento jurídico. E economia de tempo é crucial não apenas para a eficiência operacional, mas também para a percepção pública da justiça como um serviço acessível e ágil.
Análise de dados e precedentes
Seja no Judiciário ou em qualquer outra aplicação em que se queira obter bons resultados de uma inteligência, um elemento é fundamental: dados!
Quanto maior seu volume e mais qualificadas forem as informações “inputadas” nesses sistemas, melhores e mais surpreendentes serão os resultados gerados por eles. E essa é a razão pela qual o uso das IAs no Judiciário brasileiro é tão promissora, já que a base de dados pública do CNJ é uma das maiores do mundo [6].
Equipados com algoritmos avançados de aprendizado de máquina e processamento de linguagem natural, os sistemas de IA no Brasil serão capazes de analisar vastos volumes de documentos judiciais, decisões de tribunais e legislação com uma velocidade e profundidade que superam os limites humanos. Ao analisar decisões passadas, o VictorIA pode identificar padrões e nuances que podem não ser imediatamente evidentes, oferecendo insights valiosos para casos atuais e futuros. Como resultado, fica facilitada a identificação de precedentes relevantes, um aspecto considerado fundamental na formação de decisões e votos de ministros da Corte [7].
A habilidade de rapidamente acessar e correlacionar decisões anteriores com casos em andamento é uma ferramenta inestimável, não só para juízes, mas especialmente para advogados que, mesmo antes do boom das IAs, investiam significativas quantias em ferramentas de jurimetria para melhor predição e prognósticos de resultados de ações.
Automatização de tarefas
Usada para digitalizar e categorizar documentos, a automatização de rotinas economiza tempo e reduz um dos maiores gargalos do Judiciário brasileiro: a falta de recursos humanos e a incapacidade cada vez maior de contratação de servidores.
Ao liberar as pessoas de tarefas rotineiras, a IA permitirá que juízes e outros profissionais do direito se concentrem em aspectos mais complexos e substantivos dos processos, tornando mais fluído todo o fluxo e as etapas processuais, redefinindo os contornos da justiça, tornando-a mais eficiente, consistente e acessível.
Desafios e preocupações
Não são apenas de celebração e otimismo que essa abordagem tecnológica traz. Novos desafios e responsabilidades precisam ser mapeados e solucionados, exigindo-se uma abordagem cuidadosa para garantir que os avanços tecnológicos se alinhem com os princípios éticos e legais fundamentais do direito.
Qualidade x pragmatismo
A interseção entre a eficiência proporcionada pela IA e a manutenção da qualidade das decisões judiciais é um dos desafios mais críticos.
Existe uma preocupação legítima de que a dependência excessiva em sistemas automatizados possa comprometer a profundidade e a qualidade da análise jurídica [8]. Embora a IA ofereça rapidez no processamento de casos e insights valiosos, ela não pode replicar integralmente a sensibilidade e o discernimento humano, que são fundamentais no direito.
A ausência da sensibilidade humana na automatização pode resultar em uma perda significativa do contexto nuanciado, essencial para a interpretação justa e equitativa de cada caso. A justiça requer mais do que a mera aplicação de dados e lógica; ela envolve considerações humanas, como compaixão e moralidade, que a IA não está equipada para fornecer. Uma interpretação rígida e literal das leis pode limitar a necessária flexibilidade na aplicação da lei.
Privacidade e proteção de dados
Em um mundo cada vez mais data-driven, a proteção de dados pessoais e sensíveis se torna uma questão de grande importância. O risco de vazamento ou mau uso de informações confidenciais, seja por falhas de segurança ou por manipulação, precisa ser minuciosamente mitigado. Isso implica na adoção de protocolos de segurança rigorosos e na conformidade com as legislações de proteção de dados, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil.
Riscos de viés e discriminação
Outra preocupação significativa é o potencial de viés nos algoritmos de IA. Os sistemas de aprendizado de máquina são alimentados com grandes conjuntos de dados, que podem refletir preconceitos históricos ou sociais. Isso pode resultar em decisões automatizadas que perpetuam discriminações, afetando desproporcionalmente certos grupos. É crucial desenvolver mecanismos para identificar e corrigir esses vieses, garantindo que as decisões assistidas pela IA sejam justas e imparciais.
Aspectos éticos e legais
Enquanto a tecnologia oferece oportunidades sem precedentes para aprimorar a eficiência e a eficácia do judiciário, é imperativo que seu uso seja equilibrado com considerações éticas, legais e sociais, assegurando que a justiça seja administrada de maneira justa e equitativa.
Implementar métodos de automatização, análise algorítmica de dados e soluções de inteligência generativa, gerativa e artificial no Judiciário devem ser precedidas de pontos normativos e norteadores essenciais como:
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Códigos de ética e governança: A formulação de códigos de ética específicos e estruturas de governança robustas é vital para orientar o uso ético e responsável da IA no sistema judicial. Tais códigos devem estabelecer diretrizes claras sobre como a IA pode e deve ser utilizada, respeitando os princípios fundamentais do direito, como a equidade, a imparcialidade e a confidencialidade.
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Transparência e explicabilidade: A transparência é outra pedra angular no uso da IA no Judiciário. É crucial que os sistemas de IA sejam não apenas eficazes, mas também transparentes em seus processos e decisões. Isso significa que as partes interessadas, incluindo juízes, advogados e cidadãos, devem ser capazes de entender como as decisões da IA são tomadas. A explicabilidade dos algoritmos e dos processos de tomada de decisão da IA é essencial para manter a confiança no sistema judicial e garantir que as decisões sejam justificáveis e sujeitas a escrutínio adequado.
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Supervisão humana: a supervisão humana permanece um elemento crucial nas decisões assistidas pela IA. Embora a IA possa fornecer recomendações, análises e previsões, a decisão final deve sempre residir nas mãos de um profissional jurídico qualificado. Esta supervisão humana assegura que as decisões sejam tomadas com um entendimento completo do contexto legal e das nuances que a IA, por si só, pode não capturar completamente. A responsabilização continua sendo um princípio fundamental: a IA no Judiciário deve ser usada de maneira que os profissionais do direito permaneçam responsáveis pelas decisões tomadas, garantindo que a justiça seja administrada de maneira ética e responsável.
O Brasil pareceu caminhar bem ao considerar essas questões. A implementação de IAs no Judiciário vem precedida da Resolução CNJ nº 332/2020 [9], que estabeleceu diretrizes para garantir a ética e a transparência no uso da Inteligência Artificial (IA) no Poder Judiciário. A norma instituiu princípios, regras de governança e mecanismos de controle e de responsabilização para pesquisa, desenvolvimento, implantação, utilização e distribuição de soluções computacionais baseadas em modelos de IA e ainda deu foco na preservação de valores como: igualdade; não discriminação; pluralidade; e julgamento justo, eliminando ou minimizando a opressão, a marginalização do ser humano e os erros de julgamento decorrentes de preconceitos [10].
Ao abordar esses aspectos éticos e legais com rigor e consideração, o judiciário brasileiro poderá aproveitar os benefícios da IA enquanto mantém o compromisso inabalável com a justiça e a equidade.
Perspectivas internacionais
A adoção da inteligência artificial (IA) no sistema judicial transcende fronteiras nacionais, marcando uma tendência global que redefine o panorama da justiça. Explorar as experiências internacionais oferece uma visão valiosa sobre a implementação e os desafios associados a essa tecnologia emergente.
China e a vanguarda dos tribunais inteligentes
A China é um exemplo pioneiro na adoção da IA nos sistemas judiciais. Desde 2016, o país vem desenvolvendo seu sistema de “tribunais inteligentes”, que conecta a IA à mesa de cada juiz. Este sistema obriga os juízes a consultarem a IA em cada caso e, em caso de discordância com as recomendações da IA, exige-se uma explicação escrita. Essa abordagem inovadora tem demonstrado resultados notáveis: a carga média de trabalho de um juiz foi reduzida em mais de um terço, poupando 1,7 bilhões de horas de trabalho e economizando mais de 300 bilhões de yuans entre 2019 e 2021.
Desafios e considerações éticas
No entanto, essa rápida implementação também levanta questões éticas significativas. A dependência crescente da IA no sistema judicial pode reduzir a discrição e o poder de decisão individual dos juízes, criando preocupações sobre a governança por máquinas e a concentração de poder nas mãos de poucos especialistas responsáveis pelos algoritmos.
Conclusão
À medida que exploramos o advento da Inteligência Artificial (IA) no contexto judiciário, emerge um panorama tanto promissor quanto desafiador. A integração da IA nos tribunais, exemplificada por sistemas automatizados de análise de dados e suporte à tomada de decisões, representa um marco na evolução do direito e da justiça. Esta revolução tecnológica tem o potencial de agilizar processos e tornar a justiça mais acessível, ressaltando a eficiência e a consistência como seus pilares fundamentais.
No entanto, a adoção da IA no sistema judiciário não é isenta de desafios significativos. Preocupações relativas à qualidade jurídica, privacidade, proteção de dados, bem como os riscos inerentes de viés e discriminação, exigem um escrutínio meticuloso. É imprescindível que o desenvolvimento e a implementação da IA sejam norteados por uma abordagem equilibrada, em que os avanços tecnológicos se alinhem rigorosamente aos princípios éticos e legais que sustentam o direito.
O equilíbrio entre inovação tecnológica e integridade jurídica será crucial para assegurar que a justiça, na era da IA, permaneça uma balança equilibrada nas mãos da humanidade.
Notas
[1] https://youtu.be/S8loM28lI2w
[2] https://canaltech.com.br/seguranca/tribunais-na-china-permitem-que-ias-tomem-o-lugar-de-juizes-220922
[3] O Projeto Victor é uma iniciativa do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil que visa implementar a Inteligência Artificial (IA) para aumentar a eficiência na tramitação dos processos e a velocidade da avaliação. O nome Victor homenageia Victor Nunes Leal, ex-Ministro do STF, responsável pela sistematização da jurisprudência do STF em súmulas.
[4] Demonstração da IA “Victor”: https://www.youtube.com/watch?v=GsJHRwkJSJE
[5] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=508710&ori=1
[6] A base de dados pública do Judiciário brasileiro, conhecida como DataJud, é uma das maiores do mundo. Instituída pela Resolução CNJ n. 331/2020, armazenando 144 milhões de processos. vide: https://www.conjur.com.br/2022-jun-30/poder-decide-faz/
[7] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/30112022-Ministros-do-STF-reforcam-importancia-do-respeito-aos-precedentes-qualificados.aspx
[8] Desafios e possibilidades com o uso da inteligência artificial no Direito – disponível em: https://conteudo.saraivaeducacao.com.br/juridico/inteligencia-artificial-no-direito/
[9] Resolução CNJ n. 332/2020 disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3429
[10] Plataforma Sinapses (CNJ): https://www.cnj.jus.br/sistemas/plataforma-sinapses/etica-e-transparencia/
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