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Alerj veta prisão por reconhecimento, mas há dúvidas sobre invasão de competência

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23 de setembro de 2023, 8h49

A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou na última quinta-feira (21/9) um projeto de lei que proíbe que o reconhecimento fotográfico ou pessoal seja o único procedimento usado pela polícia para pedir a prisão de investigado ou indiciá-lo. Especialistas em Direito Penal consideram a medida importante, mas levantam dúvidas sobre a competência do estado para estabelecer tais regras. Afinal de contas, apenas a União pode legislar sobre processo penal.

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Projeto aprovado pela Alerj proíbe prisão
só com base em reconhecimento
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De autoria original dos deputados Luiz Paulo (PSD) e Carlos Minc (PSB), o Projeto de Lei 5.272/2021 — que agora segue para sanção do governador Cláudio Castro — estabelece que a inclusão da pessoa ou de sua fotografia em procedimento de reconhecimento, na condição de investigada ou processada, será embasada em outros indícios de sua participação no delito, como a averiguação de sua presença no dia e local do fato ou outra circunstância relevante.

Segundo a proposta, o pedido de prisão deverá ser feito com base em indícios de autoria e materialidade que não sejam apenas o reconhecimento. Para verificar informações de investigados, a polícia poderá fazer cruzamento de dados telefônicos e telemáticos, bem como verificar o cadastro funcional do acusado para checar se ele não estava no trabalho no momento da ocorrência.

O texto também determina que seja feita uma entrevista prévia com a vítima ou testemunha para a descrição da pessoa investigada ou processada. A polícia deverá fornecer instruções sobre a natureza do procedimento investigatório e os agentes também deverão registrar o grau de convencimento da vítima ou testemunha, em suas próprias palavras.

Para fins de aferição da legalidade e garantia do direito de defesa, o procedimento será integralmente gravado, desde a entrevista prévia até a declaração do grau de convencimento da vítima ou testemunha, com a disponibilização do vídeo às partes, caso solicitado.

O objetivo é impedir a condenação de inocentes e possibilitar a responsabilização dos culpados a partir da adoção de medidas construídas à luz das evidências científicas e das regras do devido processo legal, combatendo a seletividade penal e o racismo estrutural.

O projeto foi baseado na Resolução do Conselho Nacional de Justiça 484/2022, que estabeleceu diretrizes para o reconhecimento de pessoas.

Regras do reconhecimento
De acordo com o texto aprovado pela Alerj, vítimas, testemunhas e informantes só poderão participar de reconhecimento sob a forma de alinhamento fotográfico, que deverá conter a foto do suspeito, investigado ou envolvido junto com quatro fotos, no mínimo, de pessoas sabidamente inocentes e que com ele guardem semelhança, sendo vedada a exibição de álbuns oficiais ou bancos digitais de fotografias. Nos delitos supostamente cometidos por várias pessoas, devem ser utilizados múltiplos alinhamentos, com apenas um suspeito por alinhamento e sem repetição de pessoas.

O reconhecimento fotográfico deverá, em qualquer caso, ser antecedido de descrição física mínima do suspeito e de detalhes que interessem à composição de seu perfil, com vistas à sua identificação e indiciação nos autos da investigação existente, observando-se as regras do Código de Processo Penal.

Sempre que se der o reconhecimento fotográfico em sede policial, não sendo possível o reconhecimento pessoal, por qualquer motivo, tal fato deverá ser destacado em aditamento ao registro da ocorrência e não ensejará ato de indiciamento do suspeito pela prática do fato em apuração, salvo se o reconhecimento fotográfico tiver sido feito por meio de alinhamento de fotos.

Além disso, a Polícia Civil deverá ministrar aulas teóricas e práticas tratando do ato de reconhecimento fotográfico e destacando as consequências nefastas de uma investigação baseada unicamente nesse modelo de identificação de autor de infração penal. E deverá também promover esclarecimentos quanto aos abusos que precisam ser evitados no uso dos álbuns fotográficos.

Dúvida sobre a competência
Os especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico elogiam a iniciativa de restringir o uso do reconhecimento de pessoas para fundamentar prisões e procedimentos, mas têm dúvidas quanto à competência do estado do Rio para legislar sobre a matéria.

O defensor público do Rio Eduardo Newton, por exemplo, lembra que somente a União pode legislar sobre Direito Processual Penal. Porém, ele torce para que a iniciativa da Alerj incentive o Congresso Nacional a replicar a medida.

"Significativa foi a mudança jurisprudencial na temática do reconhecimento de pessoas, que foi capitaneada pelo Superior Tribunal de Justiça. O avanço é incontestável. Porém, quem sabe no afã de acabar com as injustiças que são rotineiramente trazidas pela mídia, o Legislativo estadual acaba por avançar em competência legislativa da União. Essa iniciativa pode despertar o legislador federal para que o Código de Processo Penal, enfim, assegurasse o respeito ao indiciado", avalia Newton.

Diogo Malan, professor de Direito Processual Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro, questiona a constitucionalidade formal do projeto de lei, que trata de matéria de processo penal. Afinal, só a União pode legislar sobre esse assunto, mas os estados têm legitimidade concorrente para estabelecer regras sobre "procedimentos em matéria processual", conforme os artigos 22, I, e 24, XI, da Constituição Federal.

"Sob a ótica da constitucionalidade material, não parece haver qualquer vício. Desde o paradigmático julgamento do Habeas Corpus 598.886, em 2020, o STJ vem manifestando preocupação com os procedimentos e protocolos técnicos de reconhecimento pessoal, cuja baixa qualidade epistêmica e má aplicação na prática forense penal vêm causando erros judiciários gravíssimos."

Antonio Eduardo Ramires Santoro, professor de Direito Processual Penal da UFRJ, também ressalta que os estados não têm competência para regulamentar aspectos de processo penal, como produção de provas e pedidos de prisão provisória.

No entanto, Santoro ressalta que os estados podem estabelecer diretrizes para a atuação dos policiais, pois não se trata de aspecto processual — sempre de competência da União.

Para Maíra Fernandes, é possível que haja discussão sobre a competência legislativa para a matéria, "mas pouco importa: já temos motivos para comemorar o fato de a Alerj estar convencida de que a prisão por foto e em desrespeito às regras sobre reconhecimento de pessoas é ilegal e deve ser banida em nosso estado, para se evitar mais prisões injustas e erros judiciais".

A criminalista integrou o Grupo de Trabalho do CNJ criado para estabelecer diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal em processos criminais e que culminou na Resolução n. 484/2022.

Jurisprudência do STJ
Em 2020, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que o reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime.

A corte também fixou que o reconhecimento por mera exibição de fotografias só pode ser uma etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal. Assim, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo.

Desde que firmou o precedente paradigmático, o STJ vem balizando seu uso nas situações relacionadas ao reconhecimento de pessoas acusadas de crime. No primeiro ano de aplicação, a corte anulou 89 condenações por causa dessa irregularidade.

O esforço levou o Conselho Nacional de Justiça a publicar a Resolução 484/2022, que estabeleceu diretrizes para o reconhecimento de pessoas em procedimentos criminais. E permitiu a correção de injustiças como a do porteiro processado 70 vezes com base exclusivamente em uma foto retirada de seu perfil na rede social Facebook.

Desde então, o STJ anulou provas porque o reconhecimento foi feito por fotografias enviadas por WhatsApp, por imagens de circuito de segurança referentes a outro crime, por prints fotográficos do acusado ao lado de terceiros na unidade prisional, com base no tom de voz dos suspeitos em uma gravação de áudio e até feito enquanto o suspeito estava na maca de um hospital.

Por outro lado, a corte tem apontado que o reconhecimento só é necessário quando houver dúvida sobre quem é o autor do crime. Assim, considerou as provas válidas em caso em que a vítima foi quem encontrou fotos do suspeito nas redes sociais e na hipótese em que o réu foi perseguido e monitorado continuamente por policiais, por exemplo.

Nesse mesmo sentido, o STJ tem entendido que o reconhecimento pessoal viciado não impede que seja usado como indício mínimo apto a autorizar o decreto de prisão cautelar preventiva. Para cumprir os ditames do artigo 226 do CPP, o Judiciário tem até inovado, como no caso em que a linha de suspeitos foi feita por videoconferência. Com informações da assessoria de imprensa da Alerj.

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