Tribunal do Júri

Absolvição pelo quesito genérico e a (im)possibilidade recursal (parte 1)

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

16 de setembro de 2023, 8h00

A revisibilidade da decisão proferida pelo Conselho de Sentença quando a hipótese absolutória está lastreada no quesito genérico ("o jurado absolve o acusado?") guarda grande controvérsia. Atualmente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal debate a matéria no âmbito do Tema 1.087 da Repercussão Geral: "possibilidade de Tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos".

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A questão abrange não apenas a soberania dos veredictos do júri, mas igualmente a temática da quesitação, a qual se tornou um dos fatores ensejadores da reforma operada pela Lei nº 11.689/2008. No artigo, "Crise Existencial do Júri no Direito Brasileiro", Rui Stoco denunciou que um dos grandes entraves ao júri (pré-reforma de 2008) era a disparatada atrapalhação na formulação dos quesitos, algo fomentador de uma incompreensibilidade para os leigos [1]. A complicada e truncada "euremática" [2] dos quesitos sempre foi uma fonte "inexaurível de nulidades" [3], um verdadeiro "tormento bíblico" [4] que, para Stoco, impingiam no júri o estigma da ineficiência e da morosidade [5].

O atual modelo legal trouxe, de fato, uma grande simplificação na construção dos quesitos (CPP, artigo 483), determinando que os jurados sejam questionados a respeito da materialidade, da autoria e da absolvição, sem a necessidade — na última hipótese — de que todas as teses sejam individualizadas e dissecadas em suas elementares [6]. Com isso, em um único quesito podem ser somadas uma infinidade de teses jurídicas (p. ex., excludentes de ilicitude e de culpabilidade) e causas extralegais de exculpação, sem a necessidade de que os jurados externam qualquer tipo de justificação para a sua adoção:

"(…). A imparcialidade, a liberdade de consciência e a determinação de justiça são deveres indeclináveis e virtudes que caracterizam a soberania dos veredictos como um dos requisitos de existência e de funcionamento do tribunal popular (CF, art. 5º, XXXVIII, letra c). O jurado pode decidir acima e além das regras jurídicas, resolvendo em favor da justiça o conflito entre a lei e o direito. Essa liberdade para decidir segundo a sua livre convicção e as exigências da justiça constitui exceção à regra da fundamentação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX). (…). Sob outro aspecto, a liberdade de consciência e o dever de justiça permitem que o juiz de fato reconheça causas supralegais de exclusão de crime e de isenção de pena, máxime com a nova orientação legal para o questionário (arts. 482 e 483). O jurado não está obrigado a motivar por escrito a sua decisão. As teses de acusação e de defesa são conhecidas e decididas pelos parâmetros morais e não em função de balizas legais" [7].

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Não há dúvida de que uma quesitação mais acessível (CPP, artigo 482, parágrafo único) ao jurado contribui para o aprimoramento dos julgamentos, evitando que nulidades sejam arguidas em fases recursais com eventual necessidade de renovação de atos processuais. Porém, a centralização de várias teses em um único quesito pode trazer outros dilemas, em especial, a impossibilidade de se aferir qual foi o argumento acolhido pelo Conselho de Sentença, fato que implica num imbróglio recursal. Nesse sentido, amparado no modelo de júri pós-reforma de 2008, o ministro Celso de Mello chegou a pontuar "(..) que os jurados passaram a gozar de ampla e irrestrita autonomia na formulação de juízos absolutórios, não se achando adstritos nem vinculados, em seu processo decisório, seja às teses suscitadas em plenário pela defesa, seja a quaisquer outros fundamentos de índole estritamente jurídica, seja, ainda, a razões fundadas em juízo de equidade ou de clemência" [8]. E, como consequência, pontuou não ser possível a interposição de apelação pela acusação com fundamento no artigo 593, III, d, do CPP:

"Em suma: entendo não se revelar viável a utilização, pelo órgão da acusação, do recurso de apelação a que alude o art. 593, III, 'd', do CPP, como meio de impugnação às decisões absolutórias proferidas pelo Conselho de Sentença (Júri) com apoio no art. 483, III e § 2º, do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 11.689/2008.

É que, segundo entendo, revela-se juridicamente possível, a formulação, pelos jurados, com base em sua íntima convicção, de juízo de clemência ou de equidade, sem qualquer vinculação a critério de legalidade estrita, considerados, para tanto, como vetores de tal pronunciamento, o sigilo da votação, a soberania do veredicto do júri e o caráter abrangente do quesito obrigatório de absolvição (CPP, art. 483, III), circunstâncias essas que tornam insuscetível de controle recursal a manifestação absolutória dos integrantes do Conselho de Sentença, a inviabilizar, como efeito consequencial, a utilização, pelo Ministério Público, da apelação fundada no art. 593, III, 'd', do CPP" [9].

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Tratando da dimensão do quesito, o ministro Gilmar Mendes concluiu ser lícito aos jurados absolver genericamente (por clemência) um acusado, mesmo quando a única tese defensiva de negativa de autoria tenha sido refutada pelo Conselho de Sentença:

"(…). Tal é a abrangência desse quesito, que mesmo que os jurados respondam positivamente quanto à autoria/participação e a negativa de autoria seja a única tese alegada pela defesa, ainda assim não se mostra contraditório responderem positivamente quanto ao quesito da absolvição. Os jurados sempre podem absolver por clemência aquele que consideraram com participação no fato. A clemência compõe juízo possível dentro da soberania do Júri, ainda que dissociada das teses da defesa. (…)" [10].

Em sentido parcialmente diverso, mas igualmente discutindo o amplo poder conferido ao Conselho de Sentença a partir da nova quesitação, o ministro Edson Fachin pontou ser "preciso investigar se a quesitação genérica é admitida pelo ordenamento jurídico e se é possível aos jurados exculparem os réus em todos os casos de competência do Tribunal do Júri" [11]. Para o ministro, o questionamento a respeito da absolvição genérica não implica, necessariamente, a inviabilidade da apelação fundada no artigo 593, III, d, do CPP, vez que compete ao tribunal exercer o "controle mínimo de racionalidade da decisão":

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"Como já dito, não cabe, no âmbito do Tribunal do Júri, investigar a fundamentação acolhida pelos jurados, já que não possuem a obrigação de justificar os seus votos. No entanto, nada há no ordenamento jurídico que vede a investigação sobre a racionalidade mínima que deve guardar toda e qualquer decisão. Se é certo que o Tribunal do Júri guarda distinções em relação à atividade judicial típica, não deixa de ser também um julgamento, isto é, a aplicação de uma norma jurídica a um caso particular e, como tal, deve guardar um mínimo de racionalidade e de objetividade. A importante tarefa de julgar não pode ser um jogo [de] dados" [12].

Em primeiro lugar, é necessário entender que a soberania dos veredictos não é um empecilho para que a decisão do Conselho de Sentença seja revisada. A soberania não guarda relação com a imutabilidade do que restou decidido pelos jurados, mas sim, com a impossibilidade de uma corte togada revisar o mérito da decisão proferida por eles — seja para condenar ou absolver o acusado; ou, ainda, quando o tribunal ad quem "substitui-se na atividade judicante, isto é, na valoração da prova e no convencimento sobre a prova produzida" [13].

Com efeito, a possibilidade de os jurados decidirem o caso penal com uma absoluta margem de liberdade vem sofrendo paulatina contração por parte da jurisprudência, restando vedado, por exemplo, que a pronúncia — e consequentemente a condenação [14] — encontre-se lastreada exclusivamente em elementos informativos [15], provas de ouvir dizer [16] e reconhecimentos pessoais disformes [17]. O STF (ADPF nº 779) avançou e assestou a nulidade do julgamento perante o júri quando a tese da legítima defesa da honra for levantada, direta ou indiretamente. Além disso, tratando-se de violação de direitos humanos, a Corte IDH trouxe importante desenvolvimento jurisprudencial reconhecendo a "coisa julgada aparente" ou "fraudulenta", ou seja, quando restar evidenciado que a absolvição, por exemplo, foi operada em um procedimento forjado na real intenção de não submeter o responsável à ação da justiça [18].

O grande impasse se dá, todavia, na identificação da tese acolhida pelos jurados quando da apreciação do quesito genérico. Com efeito, os dois primeiros quesitos não trazem embaraços, eis que estão atrelados à materialidade e a autoria, ou seja, teses individualizadas em perguntas isoladas e, regra geral, de fácil compreensão. Porém, o quesito genérico pode englobar, como já alertamos, uma variada gama de teses que impossibilitam a identificação da que foi escolhida pelo Conselho de Sentença. E, nesse caso, surgem dois questionamentos: (1) o Conselho de Sentença pode absolver o acusado dissociado de qualquer tipo de tese, ou seja, por íntima convicção? (2) é um direito do acusado e da própria sociedade saber qual foi a tese adotada pelo júri ao julgar o caso penal? Esses são assuntos que seguiremos tratando na coluna da próxima semana.

 


[1] STOCO, Rui. Crise existencial no júri no direito brasileiro. Editora Revista dos Tribunais, ano 80, vol. 664, p. 252, fev-1991.

[2] MARQUES, José Frederico. O júri. Coletânea Estudos de Direito Processual Penal. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1960, p. 235.

[3] TOURINHO FILHO, Processo Penal, 25 ed., v. 3. São Paulo: Saraiva 2003, p. 152.

[4] DOTTI, René A. Um novo Tribunal do Júri: Projeto de Lei 4.900/95. In. Revista de Processo, vol. 85/1997, p. 128-159.

[5] STOCO, RUI. Tribunal do Júri e o projeto de reforme de 2001. In: Revista Brasileira de Ciência Criminais, v. 36, out/dez. 2001, p. 207.

[6] No momento da quesitação, a ausência do desdobramento da tese da legítima defesa ensejava a nulidade absoluta do julgamento a teor do disposto no verbete sumular n.º 156 do Supremo Tribunal Federal: “(…). 1. Uma vez reconhecida a atualidade da agressão praticada pela vítima contra o ora acusado, cabe ao Juiz-Presidente do Tribunal do Júri julgar prejudicado o quesito referente à agressão iminente, diante da incompatibilidade entre ambos, pois uma agressão não pode, ao mesmo tempo, ser atual e iminente. 2. Na hipótese, equivocou-se o Juiz ao se valer da contradição entre as respostas para afastar o reconhecimento da legítima defesa e já passar para a quesitação acerca do homicídio privilegiado, quando o correto seria, em face do reconhecimento de que o réu se defendia de uma agressão atual, submeter o corpo de jurados à apreciação dos quesitos referentes à injustiça da agressão e ao uso moderado de meios necessários à sua repulsa. 3. Reconhecida a obrigatoriedade de quesitação quanto aos desdobramentos da legítima defesa, sua ausência, a teor do disposto no verbete sumular n.º 156 do Supremo Tribunal Federal, constitui nulidade absoluta, a qual, como é consabido, não se convalida com o tempo, vale dizer, não está sujeita à preclusão. (…). (RHC n. 16.386/RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 6/12/2005, DJ de 13/2/2006, p. 831).

[7] DOTTI, René Ariel. A presença do cidadão na reforma do júri. Observações sobre a Lei n. 11.689/08 e o Projeto de Lei n. 156/09. In Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 46, n. 183, jul/set. 2009, p. 201.

[8] STF, 2ª. Turma, RHC 117076 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Relator(a) p/ Acórdão: Gilmar Mendes, julgado em 20/10/2020, DJe-274 Divulg 17-11-2020, public. 18-11-2020.

[9] Id.

[10] STF, RE n. 982162, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 31/08/2018, public. 04/09/2018. A possibilidade de revisão da absolvição pelo quesito genérico quando a única tese arguida foi a negativa de autoria encontra solução diversa no STJ: “(…). Na hipótese, os jurados, embora tenham reconhecido a materialidade e a autoria delitivas, responderam afirmativamente ao quesito genérico da absolvição, não obstante ser a negativa de autoria a única tese defensiva. Nesse cenário, a resposta afirmativa ao terceiro quesito apresentou-se contraditória em relação às duas anteriores e, dessa forma, a absolvição restou manifestamente contrária às provas dos autos, tal como foi reconhecido pelos próprios jurados nas respostas aos dois primeiros quesitos. (…). (STJ, 5ª. Turma, AgRg no REsp n. 1.994.435/RS, rel. Min. Joel Ilan Paciornik, j. em 5/6/2023, DJe de 9/6/2023).

[11] STF, RHC n. 117076 AgR/PR, Min. Edson Fachin (voto-vista).

[12] Id.

[13] Id. Igualmente: STJ, 5. Turma, AgRg no HC n. 838.054/PE, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 22/8/2023, DJe de 28/8/2023.

[14] HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. TRIBUNAL DO JÚRI. DECISÃO DOS JURADOS MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. AUSÊNCIA DE PROVAS JUDICIALIZADAS PARA SUSTENTAR A AUTORIA. ELEMENTOS DE INFORMAÇÃO EXCLUSIVAMENTE PRODUZIDOS NO INQUÉRITO POLICIAL. PRONÚNCIA INCABÍVEL. ORDEM CONCEDIDA. (…). 6. A solução mais acertada para o presente caso é não apenas desconstituir o julgamento pelo Conselho de Sentença, como também anular o processo desde a decisão de pronúncia – pois não havia como submeter o paciente ao Tribunal do Júri com base em declarações colhidas no inquérito policial e não corroboradas em juízo – e impronunciar o acusado. 7. O art. 414, parágrafo único, do Código de Processo Penal preceitua que, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, poderá ser formulada nova denúncia em desfavor do ora impronunciado se houver prova nova. 8. Ordem concedida para anular o processo desde a decisão de pronúncia e, pelos argumentos expostos, impronunciar o paciente. (HC n. 712.098/MG, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 9/8/2022, DJe de 18/8/2022.).

[15] STJ, 5ª. Turma, AgRg no REsp n. 1.940.104/AM, relator ministro Joel Ilan Paciornik, j. em 17/5/2022, DJe de 19/5/2022.

[16] STJ, 5ª. Turma, AgRg no HC nº 725.552/SP, rel. min. Ribeiro Dantas, j. em 19/4/2022.

[17] STF, 2ª. Turma RHC 206.846, rel. min. Gilmar Mendes, j em 22/2/2022.

[18] Corte IDH. Caso Almonacid Arellano e Outros vs. Chile. Sentença 26.10.2006. Série C, n. 154, parágrafo 154; Corte IDH. Caso do Massacre de la Rochela vs. Colômbia. Sentença 11.05.2007, Série C, n. 163, parágrafo 197. Igualmente: PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina Girardi; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019, p. 153.

Autores

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

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