Tribunal do Júri

Juiz de garantias: a manutenção do sistema inquisitorial no Júri (parte 1)

Autores

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

2 de setembro de 2023, 8h00

O processo penal brasileiro passou por (mais) uma reforma no final de 2019, com a aprovação do "pacote anticrime". Dentre as várias inovações advindas da Lei n° 13.964/2019, destacamos a previsão do juiz de garantias, ferramenta importante na concretização do processo penal acusatório. Contudo, a impetração das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 impediu sua pronta implementação no ordenamento jurídico pátrio.

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Em 15/1/2020, o então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, proferiu medida liminar, na qual estabeleceu a suspensão da implementação do juiz de garantias pelo prazo de 180 dias. Posteriormente, no dia 22/1/2020, o ministro Luiz Fux, à época vice-presidente da Suprema Corte e relator das ADIs referidas, revogou a referida liminar e determinou a suspensão sine die da implementação do juiz de garantias até que a decisão fosse referendada em sessão plenária.

Após uma longa indefinição acerca do tema, em 24/8/2023, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, pelo (óbvio) reconhecimento da constitucionalidade do juiz de garantias. Resta saber se essa decisão pode ser efetivamente rotulada como uma vitória na perspectiva de um processo penal democrático [1].

O juiz de garantias nada mais é que uma divisão funcional de competência. Objetivando resguardar a imparcialidade do magistrado que irá julgar o caso penal, relega-se ao juiz de garantias a salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais na fase investigatória. A teoria da dissonância cognitiva [2] demonstra que, quando um julgador tem postura ativa durante o inquérito, suas posições influenciam, por vezes até inconscientemente, suas posteriores decisões no curso do processo, ao passo em que, por outro lado, há uma tendência — desvalorização dos elementos dissonantes — de se rechaçar informações em sentido contrário.

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Para reforçar a garantia de um julgamento imparcial, a lei determinou, nos termos do §3º do artigo 3º C do CPP, a exclusão física do caderno investigatório (exceto com relação os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas) dos autos do processo penal, devendo aquele permanecer acautelado na secretaria do juízo de garantias. Este dispositivo legal, equivocadamente, foi declarado inconstitucional pelo STF.

Para que o juiz de instrução decida o caso com a necessária originalidade cognitiva, é imprescindível que não tenha acesso aos elementos de informação colhidos na fase de investigativa. É assim que acontece na grande maioria dos Estados considerados democráticos do mundo, onde, as provas necessárias para a decisão devem ser produzidas na fase de instrução. Não por outra razão que o legislador, para além de determinar a separação física entre inquérito e processo, também estabeleceu ser competência do juiz de garantias a decisão acerca do recebimento, ou não, da peça acusatória (artigo 3º-B, inciso XIV do CPP).

Contudo, a decisão do Supremo Tribunal Federal, a despeito de reconhecer a constitucionalidade do juiz de garantias, sugere, de forma heterodoxa, que a sua competência se encerra com o oferecimento da denúncia/queixa. Este entendimento é bastante problemático.

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A uma, na medida em que a decisão do STF não fez menção a qualquer inconstitucionalidade sobre a competência do juiz de garantias, é questionável que as regras legislativas sejam alteradas. Como enfatizado por Lenio Streck: "uma coisa é fazer jurisdição constitucional e outra é a de desconfigurar um texto legal votado legitimamente pelo parlamento, colocando no seu lugar outro texto" [3].

A duas, delegar ao juiz da instrução a competência para analisar o recebimento/rejeição da peça acusatória implica desvirtuamento da própria razão de ser do juiz de garantias.

Por conseguinte, o juiz de garantias, responsável pelo acompanhamento da investigação tem legitimidade para avaliar se os elementos informativos aí colhidos preenchem os requisitos para a deflagração do processo penal. A delegação de tal competência para o juiz de instrução impede que a causa seja julgada com a necessária originalidade cognitiva, colocando-se em risco a imparcialidade judicial.

O "combo" competência do juiz de instrução para decidir sobre a admissibilidade da peça acusatória mais manutenção do caderno investigatório aos autos do processo penal implica o (sério) risco de continuarmos a ter condenações fulcradas substancialmente em reles elementos informativos, em que pese, na sentença, o livre convencimento judicial aponte formalmente para a existência de provas lícitas incriminadoras para além de qualquer dúvida razoável.

Diante desse quadro, podemos afirmar que, mais uma vez, o STF desprezou a função legiferante do Parlamento. Foi assim, por exemplo, com o artigo 316, parágrafo único do CPP, que se tornou completamente inócuo diante do entendimento firmado pelo STF (ADIs 6.581 e 6.582) de que a ausência da reavaliação da prisão preventiva no prazo de 90 dias não implica a revogação automática da custódia, devendo, em tais hipóteses, ser o juízo competente acionado para reanalisar a legalidade/necessidade de manutenção da segregação cautelar. Nessa toada, pontuamos que, também no julgamento das ADIS 6.298, 6.300 e 6.305, o STF entendeu inconstitucional o §4 do artigo 310 do CPP [4], mantendo a tradição autoritária de desvincular o descumprimento de prazos judiciais a sanções.

A lição se repete: as reformas legislativas têm pouca serventia enquanto o processo penal for interpretado por lentes inquisitórias. A título ilustrativo, citamos a interpretação conforme (o modelo inquisitorial) que o STF fez ao artigo 3ºA do CPP. Ao se autorizar que o juiz, ainda que excepcionalmente, determine a realização de diligências probatórias, reafirmou-se a validade do famigerado artigo 156 do CPP.

É inegável que houve uma sabotagem inquisitorial na aprovação juiz de garantias. A manutenção física do caderno investigativo e a restrição da sua competência até o momento do oferecimento da denúncia sinalizam que o juiz da instrução pode ser contaminado pelos elementos informativos, maculando a sua imparcialidade no julgamento da causa.

Acrescenta-se, embora os limites espaciais do presente artigo não nos autorizem a debater pormenorizadamente sobre o tema, que não se justifica a não aplicação do instituto no procedimento do júri (matéria que será debatida na próxima semana), dos crimes de violência doméstica contra a mulher e também nos crimes de competência originária dos tribunais.

O advento e regulamentação do juiz de garantias passou pelo crivo do devido processo legislativo e foi devidamente sancionado pelo presidente da República. A partir do momento em que o STF lhe conferiu constitucionalidade, não era de sua alçada esmiuçar se o delineamento que o Congresso conferiu à matéria é o mais apropriado. Sábias são as palavras de Geraldo Prado: "Talvez o exercício de autoreserva de um tribunal constitucional como o STF seja seu desafio mais duro e exigente. Mas não pode ser, simplesmente, ignorado".

O juiz de garantias, nos moldes como modulado pelo STF, é uma "bandeira meramente hasteada", longe de ser uma ferramenta na concretização do sistema acusatório. Do juiz de garantias, ficou só mesmo o juiz. A parte das garantias, lamentavelmente, foi excluída!

No júri, a ênfase desse infortúnio se mostra ampliada. Tema que abordaremos na próxima semana.

 


[2] Sobre o tema, SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança. In Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (coord.). Trad. Luís Greco.Marcial Pons: Madri, 2013, p. 205/221.

[3] STRECK, Lênio. O Juiz das Garantias e os Três Amores. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-ago-22/lenio-streck-juiz-garantias-tres-amores, acesso em 22/08/2023.

 

[4] "§ 4º Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva".

Autores

  • é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

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