Opinião

Vítima de violência doméstica tem liberdade de contar sua história, mas só se não for mãe

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28 de novembro de 2023, 13h21

O título deste artigo é uma provocação. Acompanho, com preocupação, a ascensão de um discurso entre profissionais de direito de família segundo o qual, no caso de vítimas que sejam mulheres-mães, haveria que se pensar primordialmente na exposição dos filhos antes de se fazer qualquer relato público da violência sofrida.

Depois da entrevista da apresentadora Ana Hickmann, veiculada em 26 de novembro, sobre as agressões que sofreu de marido Alexandre Correa [1], as falas de silenciamento têm se intensificado. Apesar de preocupante, este não é um discurso surpreendente. A primazia da honra da família em relação ao interesse da mulher é uma velha conhecida do direito.

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Segundo Ana Elisa Bechara, a ratio legis da excludente de ilicitude do aborto em caso de estupro, prevista no artigo 128, II, do Código Penal de 1940 é, justamente, a salvaguarda da honra familiar. Ou seja, o surgimento da norma tinha como intuito o não constrangimento de um marido ou de um pai — e não o da própria mulher que tivesse sofrido a violência sexual (informação verbal) [2].

Do mesmo modo, quando se defende que mulheres-mães devam “pensar primeiro em seus filhos antes de expor uma violência”, o que se está fazendo é uma nova forma de violência contra essas vítimas, dessa vez, a do silenciamento. É preciso romper, com urgência, com a ideia de que a mãe deve sofrer calada (ou, ao menos, de maneira discreta) em nome de sua família, a fim de não se perpetuar uma ótica patriarcal de proteção da entidade familiar em detrimento da proteção da mulher.

Por isso, é preciso que se entenda de uma vez por todas: quem promoveu abalo à unidade familiar foi a pessoa que cometeu a violência, não a pessoa que corajosamente a relatou.

O relato da violência — e da sobrevivência — é, para além de uma garantia da liberdade de expressão prevista na Constituição (artigo 5º, IV), também uma prática transformativa para que a vítima consiga elaborar aquilo que lhe ocorreu. São os relatos, inclusive os midiáticos como o de Ana, que fazem com que outras mulheres consigam romper ciclos de violência, seja pela identificação ou pelo encorajamento para tanto.

Além disso, os relatos são potentes exemplos materiais para a aplicação de protocolos de enfrentamento contra a violência de gênero em todas as áreas de conhecimento [3].

Inclusive, são os relatos de mulheres-mães que escancaram como a maternidade é um complicador para que as mulheres consigam romper com os ciclos de violência. Vale lembrar, segundo dados da 10ª edição da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher [4], 60% das mais de 20.000 (vinte mil) mulheres entrevistadas apontam a preocupação com a criação dos filhos como uma situação que, na maioria das vezes, leva uma mulher a não denunciar uma agressão doméstica.

Assim, muito embora seja preciso um cuidado para que não haja uma exposição desnecessária dos filhos, cuja intimidade e privacidade devem ser respeitadas contra eventuais abusos, é fundamental que suas mães possam também ser protagonistas de suas histórias e autoras de seus relatos sem que sejam constrangidas ao silêncio em prol da honra familiar. E isso é urgente.


[1] Entrevista ao programa Domingo Espetacular, disponível em https://www.google.com/search?client=safari&rls=en&q=ana+hickmann+entrevista+domingo+espetacular&ie=UTF-8&oe=UTF-8#fpstate=ive&vld=cid:15c81512,vid:lrdH2Oddk8k,st:0. Acesso em 27.nov.2023.

[2] Palestra de Ana Elisa Liberatore da Silva Bechara, denominada Direito, gênero e feminismo sob a ótica do Direito Brasileiro, por ocasião do I Fórum Paulista de Igualdade de Gênero, promovido pela Escola Paulista da Magistratura em 27 de novembro de 2023, em São Paulo – SP.

[3] No âmbito jurídico, cite-se as Diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, que passaram a ser obrigatórias ao Judiciário a partir de 2023.

[4] Senado Federal. Pesquisa DataSenado: Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, nov. 2023, pp. 10-11. Disponível em https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/arquivos/pesquisa-nacional-de-violencia-contra-a-mulher-datasenado-2023. Acesso em 27.nov.2023.

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