Opinião

Dano ao projeto de vida de crianças e adolescentes vítimas de violações

Autor

26 de novembro de 2023, 15h18

Os direitos das crianças e dos adolescentes, em que pese a densa legislação nacional e internacional sobre o tema, ainda são sistematicamente violados pela família, sociedade e Estado.

Segundo dados do último dia 13 de outubro da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), entre 2011 e 2020, o Brasil registrou 24.909 casos de acidentes de trabalho e 466 mortes envolvendo menores de 18 anos de idade, com uma média de 2,5 mil acidentes e 47 mortes por ano [1].Não é só: o último estudo realizado para contabilizar o número de crianças em situação de rua no Brasil, realizado pela ONG Visão Mundial, revelou que 70 mil estavam nessa situação em 2019, isso antes da pandemia [2].

Reprodução/TV Brasil

O mesmo estudo aponta que cerca de 19% dos entrevistados disseram que dormem com fome; 37% declararam ter sofrido algum tipo de violência; 70% são vítimas de violência doméstica; 12% realizam trabalho infantil; e 79% informaram que nunca tiveram contato com furto/roubo.

Em síntese do panorama, o ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Maurício Cunha, em 2021, quanto às violações dos direitos das crianças e os adolescentes, afirmou que “infelizmente, é o público que mais sofre violências, que mais sofre violações de direitos no Brasil, mais do que outros grupos vulneráveis. Inclusive, há mais denúncias do que no Disque 180, que recebe denúncias de violência contra a mulher. Isso nos traz uma preocupação muito grande, porque é o grupo que mais deveria estar sendo protegido” [3].

Logo, o próprio projeto de realização pessoal da criança e do adolescente tem sido tolhido de forma reiterada pelas mais diversas agências formais e informais de proteção, resultando no dano ao projeto de vida.

Caio Paiva e Thimotie Aragon [4] conceituam o dano ao projeto de vida como sendo aquele que, em razão da sua gravidade para os direitos da vítima, impede esta de executar os projetos de vida que havia pensado para si.

Evidente que as diversas formas de violação dos direitos das crianças e adolescentes acima relatadas subsomem perfeitamente a esta modalidade de dano, e exigem a devida reparação de seus violadores, públicos ou privados.

Trata-se de uma nova e autônoma modalidade de dano, ainda incipiente na doutrina e jurisprudência pátria, mas já bem desenvolvida na jurisprudência internacional dos direitos humanos, tendo sido usada para amparar vários grupos vulneráveis: indígenas, mulheres vítimas de violência doméstica e pessoas privadas de liberdade de forma arbitrária.

Em 1999, na sentença do Caso Loyaza Tamayo vs. Peru, a Corte Internacional de Direitos Humanos (CorteIDH) reconheceu, pela primeira vez, a existência e a autonomia conceitual de referido dano, já o diferenciando do dano material, emergente e moral, tendo em vista a ausência de conotação patrimonial [5].

Na ocasião, os juízes da Corte Abreu Burelli e Cançado Trindade afirmaram que “o dano ao projeto de vida ameaça, em última instância, o próprio sentido que cada pessoa humana atribui à sua existência. Quando isso ocorre, um prejuízo é causado ao mais íntimo do ser: trata-se de um dano dotado de autonomia própria, que afeta o sentido espiritual da vida”.

A diferenciação apontada é justificável porque a reparação para tais casos exige muito além de uma simples reparação pecuniária, mas uma ação integrada e efetiva que proporcione instrumentos e meios de emancipação pessoal e social, entre outros o acesso à moradia digna, à alimentação adequada e à educação de qualidade, do que se extrai a autonomia do dano.

A título de exemplo, no Caso Cantoral Benavides vs. Peru, a CorteIDH condenou o Estado do Peru à reparação dano ao projeto de vida, consistente na concessão de bolsa de estudos a Luis Alberto Cantoral Benavides:

“(…) a via mais idônea para restabelecer o projeto de vida de Luis Alberto Cantoral Benavides consiste em que o Estado lhe proporcione uma bolsa de estudos superiores ou universitários, com o fim de cobrir os custos da carreira profissional que a vítima escolher — assim como os gastos de manutenção desta última durante o período de tais estudos — num centro de reconhecida qualidade acadêmica escolhido em comum acordo entre a vítima e o Estado (Reparações e custas, §80).”

Numa perspectiva mais abrangente, a condenação do Estado à uma reparação emancipatória atende sobretudo ao direito à vida da criança e do adolescente, expressamente previsto no artigo 7º no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no artigo 6º da Convenção sobre os Direitos das Crianças.

O direito à vida não se resume à proteção contra atendados arbitrários à integridade física, mas também a uma existência humana digna, que não possa ser usurpada pela Estado ou por um particular, que os impede de acessá-la.

Não por outra razão o eminente professor André de Carvalho Ramos, à luz da doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet [6], identifica dois elementos ínsitos à dignidade humana: um negativo, consistente na qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, que o protege contra todo tratamento degradante e discriminação odiosa; e outro positivo, que assegura condições mínimas de sobrevivência, aqui assentadas as políticas sociais e econômicas para atendimento do mínimo existencial.

A estrutura apresentada atende à indivisibilidade e à interdependência dos direitos humanos, pois exige o combate mútuo e equânime das violações dos direitos civis de proteção à integridade física e à não discriminação, pertencentes à primeira geração dos direitos humanos, e dos direitos econômicos, sociais e culturais, localizados na segunda geração dos direitos humanos.

Nessa sintonia, no Caso Meninos de Rua vs. Guatemala, a Corte IDH concluiu que o direito à vida pertence, ao mesmo tempo, “ao domínio dos direitos civis e políticos, assim como ao dos direitos econômicos, sociais e culturais, ilustrando assim a inter-relação e indivisibilidade de todos os direitos humanos” (Mérito, §4º).

Portanto, com respaldo no próprio direito à vida, legítima a fixação de condenações emancipatórias sociais, diante do dano ao projeto de vida das crianças e dos adolescentes. 

A tudo isso soma-se o fato de que se trata de uma população em peculiar condição de desenvolvimento, para a qual é dever do Estado e da sociedade garantir proteção integral e prioritária (artigo 227 da Constituição Federal), além de atender ao seu melhor interesse, diante da acentuada vulnerabilidade.

Este imperativo constitucional conduz a ação conjunta do poder público e dos particulares, por meio de uma rede integrada de atendimento e proteção da existência digna, sob pena de ambos responderem pela nova modalidade de dano.

Ou seja, além do poder público, recai também sobre o particular, em especial àqueles que permitem crianças e adolescentes em trabalhos infantis e escravos — tal como aponta as piores formas de trabalho elencadas no artigo 3º da Convenção 182 da OIT, a devida reparação do dano ao projeto de vida, a partir da aplicação horizontal da eficácia dos direitos fundamentais, no caso de relação-jurídica entre particulares, ou até mesmo diagonal, quanto às relações entre particulares onde há desequilíbrio fático, caso das relações de trabalho.

Com efeito, conforme leciona André de Carvalho Ramos [7], um dos usos habituais da dignidade da pessoa humana na jurisprudência pátria ocorre na fundamentação da criação jurisprudencial de novos direitos, por exemplo no reconhecimento do direito à busca da felicidade e da realização pessoal, ao admitir arranjos familiares diversos da concepção tradicional (RE 989.060/SC, relator ministro Luis Fux, julgado em 21 e 22/09/2016), ou da concepção do tempo como uma espécie de direito, ao admitir a teoria do desvio produtivo (STJ, REsp 1737412/SE, relatora: ministra Nancy Andrighi, julgado em 05/02/2019).  

Nada impede, assim, o uso da dignidade humana para fundamentar o direito ao projeto de vida e, por consequência, a reparação do dano provocado por particulares na vida das crianças e adolescentes em situação de rua, submetidas às piores formas de trabalho, privadas de sua liberdade de forma arbitrária, alijadas da educação e alimentação adequadas etc., caso constatados os elementos caracterizados da responsabilidade civil.

Dessa maneira, os tribunais pátrios, em especial o STF e o STJ, atentos às decisões da Corte IDH, podem aplicar expressamente esta nova modalidade de dano, reconhecendo a sua autonomia em relação aos demais danos positivados na legislação interna, também em relação aos particulares.

Isso porque, em que pese o Superior Tribunal de Justiça – STJ (Resp 1.302.467, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 03/03/2015) e o Supremo Tribunal Federal – STF (ADPF 132 e ADI 4.277) terem invocado o direito ao projeto de vida ao concluírem pela proteção jurídica de uniões homoafetivas, em nenhum desses casos houve a reparação do dano ao projeto de vida como uma medida de reparação autônoma.

É certo que ações preventivas devem ser implementadas para evitar as violações de direitos humanos, em sintonia com o artigo 70-A do ECA, mas a existência de novos instrumentos de reparação, destinados à emancipação pessoal e social desta população vulnerável, é essencial na proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes.

 Dito isso, diante da gravidade das violações de direitos humanos noticiadas acima, as quais se protraem no tempo e são capazes de ceifar sonhos e vidas de população indefesa, a simples e exclusiva reparação de caráter pecuniário não satisfaz o princípio da proteção integral e do melhor interesse, quando vista sob o manto da vedação da proteção insuficiente, corolário do princípio da proporcionalidade.

Por isso, citados por Caio Paiva e Thimotie Aragon [8], os excelentes juízes da CorteIDH, Abreu Burelli e Cançado Trindade, no Caso Meninos de Ruavs Guatemala, equiparam o dano ao projeto de vida à morte espiritual:

“Uma pessoa que em sua infância vive, como em tantos países da América Latina, na humilhação da miséria, sem a menor condição sequer de criar seu projeto de vida, experimenta um estado equivalente a uma morte espiritual; a morte física que a esta segue, em tais circunstâncias, é culminação da destruição total do ser humano.”

Imprescindível, pois, uma vez preenchidos os requisitos da responsabilidade civil, a condenação não apenas do Estado, mas do próprio particular em razão do dano autônomo ao projeto de vida provocado, capaz de fornecer meios para que as crianças e os adolescentes exerçam todas as suas potencialidades existenciais, interrompidas pela negligência e pelo descaso, a fim de emancipá-los no seio social.

Referências bibliográficas
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2001.

Ramos, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos/André de Ramos Carvalho – 9. Ed – São Paulo: SaraivaJur, 2022.

Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017.

https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-10/brasil-teve-mais-de-466-mortes-de-menores-no-trabalho-de-2011-2020. Acesso em 16/10/2023.

https://observatorio3setor.org.br/noticias/pequenos-invisiveis-70-mil-criancas-vivem-nas-ruas-do-brasil/. Acesso em 16/10/2023.

https://www.camara.leg.br/noticias/873498-criancas-e-adolescentes-sao-as-maiores-vitimas-de-violacoes-no-brasil-diz-secretario/. Acesso em 16/10/2023.


[1] Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-10/brasil-teve-mais-de-466-mortes-de-menores-no-trabalho-de-2011-2020. Acesso em 16/10/2023.

[2] Fonte: https://observatorio3setor.org.br/noticias/pequenos-invisiveis-70-mil-criancas-vivem-nas-ruas-do-brasil/. Acesso em 16/10/2023.

[3] Fonte: https://www.camara.leg.br/noticias/873498-criancas-e-adolescentes-sao-as-maiores-vitimas-de-violacoes-no-brasil-diz-secretario/. Acesso em 16/10/2023.

[4] Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017.

[5] Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017.

[6] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2001.

[7] Ramos, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos/André de Ramos Carvalho – 9. Ed – São Paulo: SaraivaJur, 2022.

[8] Caio Cezar, Paiva. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos/ Caio Cezar Paiva, thimotie Aragon Heemann, 2 ed. – Belo Horizonte CEI, 2017.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!