Opinião

Crianças, adolescentes e o projeto de reforma do Código Civil

Autores

  • Ricardo Campos

    é docente nas áreas de Proteção de Dados Regulação de Serviços Digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main doutor e mestre pela Goethe Universität coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional diretor do Instituto Legal Grounds e sócio do Warde Advogados.

  • Maria Gabriela Grings

    é mestre e doutora em Direito processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) coordenadora do Legal Grounds Institute e advogada.

17 de março de 2024, 6h05

A proteção jurídica de crianças e adolescentes é um dos pilares do ordenamento jurídico brasileiro e está presente em diversos textos normativos, tais como a Constituição de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Desse conjunto de normas, é possível dessumir um microssistema protetivo em que os menores de idade são considerados sujeitos jurídicos vulneráveis, que se encontram em estágio peculiar de desenvolvimento e, por isso, necessitam de maior nível de proteção, sendo dever do Estado, da família e da sociedade assegurar que tenham seus direitos básicos respeitados e efetivados.

Todavia, ainda que esteja em tramitação no Congresso Nacional um projeto de lei focado na proteção dos menores no ambiente digital (PL 2.628/2022), tem-se que no Código Civil em vigor não há nenhuma previsão que abarque a tutela de crianças e adolescentes no espaço virtual. O diploma de 2002 foi paulatinamente modificado ao longo das décadas para incorporar as mais diversas alterações comportamentais que se consolidaram no tecido social e que não encontravam ressonância no texto legal.

Um exemplo na seara familiar é a superação da noção de pátrio poder (paterno) pelo conceito de poder familiar, a ser exercido em conjunto por ambos os genitores, quando aptos a tanto, com a fixação do regime de guarda compartilhada como padrão para hipóteses de ausência de acordo entre os genitores. O tema foi objeto de três revisões legislativas, a primeira em 2008 e a última em 2023, ao passo que o direito digital não foi inserido, ainda que em contexto diverso.

A digitalização da educação, do lazer e das relações sociais colocou as crianças e os adolescentes em constante contato com o ambiente virtual, especialmente durante e após a pandemia de covid-19. Atualmente, número crescente de pessoas dessa faixa etária é usuário ativo da internet, acessada principalmente via gadgets, como smartphones e tablets. Há uma geração de nativos digitais que passam a ter contato com o universo da virtualidade em idades cada vez mais tenras, em um fenômeno de mutação comportamental que atinge todas as classes sociais [1] e irradia efeitos muito além dos centros urbanos.

O grupo de direito digital da comissão de juristas para a reforma do Código Civil incluiu a sugestão de um capítulo dedicado à presença de crianças e adolescentes no ambiente virtual, reafirmando a garantia de proteção integral e a observância ao seu melhor interesse, fundamentos basilares do Estatuto da Criança e do Adolescente, como elementos essenciais para que a internet seja um espaço seguro e saudável para o seu livre desenvolvimento.

Como destaque, foram incorporadas as diretrizes do privacy by default ligados à seara da proteção de dados pessoais, que indicam a busca por  parâmetros que respeitem a privacidade dos usuários como padrão a ser observado em todos os produtos e serviços de tecnologia da informação destinados ao público infanto-juvenil, que deverão ser concebidos, projetados e ofertados tendo em vista a proteção integral e a prevalência dos seus interesses.

Deveres dos provedores digitais
Aos provedores digitais foram estabelecidos certos deveres, como o de implementação de sistemas eficazes de verificação etária, a fim de garantir que conteúdos inapropriados não sejam acessados por crianças e adolescentes. A questão vem sendo discutida em diversos países. A autoridade de proteção de dados da Inglaterra editou o Age Appropriate Design Code (Children’s Code)[2] e indicou alguns métodos que podem ser utilizados para a checagem etária, ainda que haja o reconhecimento da complexidade do assunto e da ausência de metodologia absolutamente infalível. Na proposta apresentada, há ainda a previsão de criação de mecanismos de controle parental, garantindo que os responsáveis legais possam limitar e monitorar o acesso de menores a certos conteúdos e funcionalidades.

Spacca

 

As plataformas e os provedores de serviços digitais deverão adotar mecanismos proporcionais, eficientes, adequados e transparentes de moderação de conteúdo, para que os direitos e garantias fundamentais dessa faixa etária sejam preservados também no ambiente virtual. Não obstante a existência de termos e condições de uso indicando quais materiais podem ser disponibilizados em cada plataforma, é cediço que nem todo conteúdo que é publicado nesses espaços está de acordo com os parâmetros fixados, o que expõe crianças e adolescentes ao contato com materiais violentos, de apologia ao crime, de autodepreciação da imagem corporal, entre tantos outros.

A previsão sugerida foi específica ao apresentar uma listagem de materiais que devem ser especialmente monitorados pelas plataformas, como aqueles que configurem ou estimulem a prática de crimes contra crianças e adolescentes, inclusive em ambiente escolar, e os de induzimento e instigação ao suicídio, que se alastram via comunidades e perfis online. O incentivo ao letramento digital, com promoção de programas educativos para o uso seguro e responsável da internet, com foco no público infanto-juvenil e nos pais e educadores, foi instituído como um dever estatal, ante a compreensão da cidadania digital como um dos sustentáculos do novo modelo de sociedade.

A inserção da temática da criança e do adolescente no ambiente digital representa o preenchimento de lacuna importante no Código Civil, que vem complementar o microssistema protetivo, trazendo as bases estruturadas na proteção integral e do respeito ao seu estágio peculiar de desenvolvimento cognitivo e emocional para as especificidades da esfera digital.


[1] A pesquisa TIC Kids Online do Cetic, informa número crescente de crianças no Brasil que acessou a internet pela primeira vez antes dos 6 anos de idade. Na faixa etária dos que tiveram o primeiro acesso aos 7 anos, é possível verificar que a proporção pouco se altera entre as classes sociais. Em 2022, por exemplo, 9,3% das crianças dessa faixa etária das classes AB navegaram na internet pela primeira vez, em comparação com 5,6% da classe C e 7,2% das classes DE. A pesquisa completa pode ser acessada em https://data.cetic.br/explore/?pesquisa_id=13&unidade=Crian%C3%A7as%20e%20Adolescentes

[2] ICO, Age Appropriate Design Code, disponível em https://ico.org.uk/for-organisations/uk-gdpr-guidance-and-resources/childrens-information/childrens-code-guidance-and-resources/age-appropriate-design-a-code-of-practice-for-online-services/, acessado em 13/03/2024.

Autores

  • é docente na Goethe-Universität Frankfurt am Main e sócio no Warde Advogados.

  • é mestre e doutora em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pesquisadora do Legal Grounds Institute, membro do Grupo de Estudos em Novas Regulações de Serviços Digitais no Direito Comparado do Legal Grounds Institute e advogada.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!