Senso Incomum

MP-PR imputa crime de hermenêutica ao promotor Jacson Zilio

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23 de novembro de 2023, 8h00

De tédio ninguém morre ou se machuca no Brasil. Cada dia parece haver uma disputa de injustiças e malferimentos a CF. Vamos aos fatos e atos:

ATO 1. O imbróglio: do arquivamento à remoção
O local do fato é o Ministério Público do Paraná. Depois de estar arquivada uma investigação contra o promotor de justiça Jacson Zilio, a Corregedoria pediu a sua remoção compulsória. A Corregedoria acusa o Promotor de desconsiderar o trabalho dos outros membros, aplicando jurisprudência do STJ (sic) contra arbitrariedades e ilegalidades de casos de buscas domiciliares em casos de crimes envolvendo entorpecentes.

Spacca

A Corregedoria, em síntese, acusa Zilio de seguir “precipitadamente” (sic) acórdãos garantistas (ou precedentes com os quais o MP-PR discorda) do STJ. E isso não pode, segundo a Corregedoria. Portanto, para ser bem simples, Zilio está sendo processado por seguir teses que estão de acordo com a Constituição. Com as quais o MP-PR não concorda. É isso. Sem tirar. Nem por.

Zilio seguiu e segue a boa jurisprudência do STJ. Digo boa, porque é boa (entenda-se, adequada à Constituição!) nessa matéria.

ATO 2. Comparando tempos e fatos.
Fosse eu membro do MP-PR, teria sido punido e até exonerado, na medida em que, em minha época, nem havia precedentes “garantidores” do STJ como há hoje. Nós os criávamos na 5ª Câmara Criminal do TJRS (aqui vai homenagem aos componentes, na pessoa do Amilton Bueno de Carvalho; homenageio também meus alunos de então e minha equipe, comandada por André Karam Trindade; e Salo de Carvalho, que participou da construção da tese da inconstitucionalidade da reincidência).

Assim, o que o Ministério Público do Paraná diria se um Procurador de Justiça do MP (ou um promotor) fizesse parecer para, de forma vencedora em órgão fracionário:

  • aplicar a lei da sonegação de impostos em casos de furtos sem prejuízo?
  • criasse, com aprovação do Tribunal, a tese da inconstitucionalidade da reincidência?
  • pareceres sustentando a tese da aplicação da majorante do roubo de 1/3 para os casos de furto qualificado?
  • pareceres, às centenas, pela nulidade de todos os processos nos quais ocorreu interrogatório sem a presença de advogado, antes da Lei de 2003, quando nem a OAB se dera conta do problema?
  • pareceres pela aplicação imediata, no dia seguinte da alteração do CPP em 2008, do rigor do artigo 212, anulando processos que não seguiram fielmente o dispositivo?  
  • pareceres sustentando a nulidade de qualquer qualificadora que deixa vestígios quando o laudo não vem assinado por dois peritos oficiais?
  • pareceres pela aplicação da literalidade do artigo 226 (reconhecimento de pessoas) anulando centenas de processos desse naipe?
  • pareceres defendendo a inadequação constitucional do in dubio pro societade já no início dos anos 90 (hoje isso ainda é considerado novidade)?
  • pareceres sustentando, com rigor hermenêutico, a literalidade de qualquer nulidade, afastando o malsinado e ainda em voga “não há nulidade sem prejuízo”?
  • rigorosos pareceres constitucionalmente adequados favoráveis à concessão de habeas corpus (forma dat esse rei) toda vez que a prisão vinha sustentada na gravidade do crime, voz das ruas ou a fundamentação era “tipo padrão” (flagrante fala por si…!)?

Pois essas teses (citei apenas dez de cabeça) eu capitaneei e/ou apoiei em milhares de processos, com rigorosos e aprofundados pareceres e manifestações. Trabalho artesanal. Espiolhando mérito e forma! Com uma diferença: o MP do RS não concordava com minhas teses. Porém, jamais alguém do MP e sua corregedoria pensou em me processar. Louvo o MPRS por não praticar qualquer censura e/ou praticar crime de hermenêutica. O que é deve ser dito!

ATO 3. A perseguição ao promotor e a reclamação ao CNMP
De novo: com tudo isso que relatei, estaria, mais do que removido, exonerado se eu fosse do MP-PR. Vejo hoje, passados tantos anos, que o promotor Jacson Zilio sofre uma perseguição por seguir a Constituição. O Tribunal Constitucional Espanhol, em 1981, tem uma decisão na qual dizia que todos os juízes deveriam aplicar a Constituição. Coisa óbvia, uma platitude, mas que tinha que ser dita. Havia gente por lá que fazia como o MP do Paraná.

Diz a Corregedoria que o MP-PR não deve se curvar, indistintamente, ao que o STJ diz. E alerta: “alguns nem são precedentes vinculantes”. Ah bom. Aqui complica. Esse assunto cutuca o STJ. Volta a questão na qual venho batendo: o que é isto – o precedente? Essa é uma briga boa. Todos sabem de minha posição sobre o sentido e o alcance do conceito de precedente. Só aqui já escrevi 15 colunas sobre isso.

De todo modo, sei que a jurisprudência não é de pedra. Pode ser quebrada. Sou insuspeito para dizer isso (lembro do Fator Julia Roberts, que agora virou verbete do Dicionário Senso Incomum)! Mas naquilo que a jurisprudência estiver de acordo com a CF, deve ser seguida. À risca. E Zilio o fez. O que a Corregedoria do MPPR está fazendo é o contrário.

ATO 4. O crime de hermenêutica imputado a Zilio
Já que “precedente” é sempre o tema da moda, Zilio deveria invocar um bem antigo, dos anos 1890. Com efeito, em 1897 houve um interessante caso jurídico que chegou ao Supremo Tribunal Federal. O juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima foi condenado por fazer controle difuso de constitucionalidade de uma lei sobre o júri. Condenado por cumprir a CF. Como no precedente Marbury v. Madison. Ele decidiu “contra a letra da lei” que foi editada no governo de Júlio de Castilhos (RS). Essa lei era inconstitucional! Mendonça Lima foi suspenso por 9 meses pelo Superior Tribunal de Justiça do RS (assim se chamava o Tribunal do Estado à época). O juiz recorreu ao STF e Rui Barbosa fez parecer, sustentando a tese da impossibilidade de, na interpretação da lei, existir “o crime de hermenêutica”. Foi absolvido no STF (já escrevi sobre isso aqui).

Já que discutem sobre precedentes, pronto: aqui está um bem consolidado! Assim como o Marbury v. Madison, de 1803.

Eis a questão: o caso Zílio mostra o acerto do que falei em 2015, na OAB do Rio de Janeiro: cumprir a Constituição hoje é um ato revolucionário! E continua sendo. Dá até processo contra quem o faz!

Agravante: depois que saiu a matéria sobre o assunto na ConJur, o MP-PR publicou nota oficial em seu site. Interessante é que ali há a confissão e a confirmação de tudo o que está noticiado. Diz a nota (que complica mais ainda a situação da corregedora):

É distorcida a linha interpretativa de que o órgão correcional agiu em razão da invocação de precedentes do STJ, pois não se discute tais decisões, mas a precipitação na sua utilização em casos concretos…”.

Pronto. Ao que se vê, a Corregedoria apenas confirma que deseja punir Zilio por este seguir precedentes do STJ. Melhor dizendo: a Corregedoria não quer punir Zilio porque ele segue precedentes, mas porque ele seguiu de forma precipitada e aplicou a casos concretos. Entenderam?

Ou entendemos mal a nota da Corregedoria?

ATO 4. A decisão do CNMP
Mientras, houve manejo de reclamação ao CNMP, pelos advogados comandados por Mauricio Dieter. Bem-sucedida, pela liminar concedida pelo Conselheiro Rogerio Magnus Gonçalves. E com isso, neste momento tudo volta ao que era.

O que se aprende disso? Tudo. Não sei se o MPPR aprendeu algo. E a coisa não termina por aqui. Como falei, a decisão da Corregedora do MPPR está no flerte com o abuso de autoridade, mormente porque reconheceu que a punição de Zilio se dá em face deste ter seguido precedentes de forma “precipitada”. Portanto, manifestamente indevida a persecução. Os artigos 27 e 30 da Lei complicam a vida da doutora corregedora. [1]

Por último, uma curiosidade: em que momento devemos seguir um precedente?   


[1] Nesse sentido, livro comentando a Lei: Streck, L.L.; Lorenzoni, Pietro C. Comentários à Nova Lei de Abuso de Autoridade. Florianópolis, 2021, Tirant Lo Blanch.

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