Opinião

Memória humana não pode ser tratada como HD ou backup de computador

Autor

  • Diego Renoldi Quaresma

    é professor palestrante autor de livros e artigos sobre Direito Penal Direito Processual Penal e liberdade de expressão formado na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos especialista em Sociologia pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul pós-graduado na Universidade de Mar del Plata (Argentina) e na Universidade de Queensland (Austrália) e membro da Asociación Pensamiento Penal (Argentina).

17 de novembro de 2023, 13h23

Apesar dos avanços da ciência forense, muitas decisões condenatórias a penas privativas de liberdade são proferidas com base na prova testemunhal. Isso faz com que seja absolutamente crucial que se entenda como a memória das testemunhas oculares opera, pois sabemos que ela é pouco confiável em inúmeros aspectos e, muitas vezes, influenciam decisivamente nos julgamentos condenatórios, apesar dos inúmeros artigos, livros e trabalhos científicos escritos sobre a memória no âmbito da psicologia social e do fato de que o Direito Penal, propositadamente ou não, se aliena no momento de validação como testemunho como prova.

Recentemente, a participação em um caso criminal contribuiu para a reflexão sobre vários pontos, dentre eles a falibilidade (quase sempre) escancarada da memória. Era um caso em que, além do reconhecimento fotográfico falho feito por uma suposta vítima na delegacia (famigerada técnica do show up) [1], em seu depoimento prestado durante a audiência de instrução, ela quase não se recordava do fato, e aquilo de que pouco recordava na verdade foi objeto de confusão de narrativas com outro fato ocorrido em data próxima ao debatido naquela ação penal [2] (erros de recorte de tempo, que  se explicará mais adiante).

 Essa situação, infelizmente não peculiar, ilustra muitos pontos-chave sobre a memória humana que são relevantíssimos para a compreensão de seu uso como prova criminal a viabilizar coerentemente um decreto penal condenatório em um processo penal (standard probatório).

Aqui vale fazer um parêntese e mencionar o estudo de Kathy Pezdek sobre um famoso evento que permitiu, inclusive, estudar empiricamente a precisão da memória e que foi visto por milhões de pessoas por meio da cobertura midiática em âmbito global [3]. Trata-se do ataque às chamadas “Torres Gêmeas”, que completou 22 anos em setembro passado.

No dia 11 de setembro de 2001, o World Trade Center, em Nova York, foi destruído em um ataque terrorista, durante a gestão do presidente George W. Bush. Parece claro, portanto, que se houvesse alguém em que se poderia depositar confiança de uma lembrança precisa em relação ao atentado terrorista seria o próprio presidente. Entretanto, Bush fez três declarações públicas diferentes sobre como ele ficou sabendo dos ataques [4]. Bush mentiu? Seria ele um conspirador? A resposta é simples: não. Isso nada mais revela que um problema de imprecisão, de falsa memória, isto é, de uma memória fabricada pela criatividade e influenciada por imagens, notícias, relatos externos. Apesar do erro do ex-presidente dos EUA não ter implicação direta com o Direito Penal, ele mostra o perigo de se dar maior credibilidade ou de não se realizar o controle epistêmico da prova  testemunhal.

Em outro estudo, Daniel Greenberg sugere duas explicações para esse tipo de equivoco de narrativa na memória de Bush [5] e que podem ser aplicadas a toda e qualquer pessoa, já que o funcionamento do cérebro e da memória é o mesmo.

As explicações dadas por Greenberg podem ser resumidas do seguinte modo:

  1. “Wrong time-slice error (ou erro do recorte do tempo, em tradução literal): evidências experimentais sobre a memória para ocorrências cotidianas sugerem que, quando uma pessoa é solicitada a recuperar lembranças sobre eventos cotidianos particulares, ela geralmente responde com uma descrição de um evento de uma época completamente diferente. Imagens visuais, por exemplo, são extremamentes sugestivas à memória, pela preponderância do domínio das imagens no cérebro, sendo capazes de provocar na hora de recordar-se delas. Imagens visuais são “fáceis de gerar, fáceis de modificar e fáceis de lembrar”;

ii. “construção narrativa: as vezes as pessoas reconstroem lacunas no curso da narrativa, na tentativa de relatar aquilo que foi vivenciado, como se fosse um roteiro, entretanto, a recordação pode ser completamente fabricada, mesmo que a pessoa esteja 100% segura daquilo que diz. “

Tais problemáticas são apenas exemplos ilustrados de uma série de equívocos que o Direito Criminal, ignorando a interdisciplinariedade tem sobre testemunhas oculares e como a memória, caótica e muitas vezes ilógica, opera dentro da cabeça de uma testemunha chamada a depor em um caso criminal.

Algumas considerações devem ser feitas: 1. a memória de testemunhas oculares é muito menos precisa do que as pessoas (e o Direito Penal) esperam que seja; 2.. recuperar memórias de um evento é a mesma coisa que dar um replay em um vídeo do evento ou fazer a consulta em um HD ou obter um backup de arquivos do computador, eis que a recuperação da memória é um processo criativo e construtivo do cérebro — o que a memória, em si, vulnerável a erros como o recorte do tempo e a reconstrução narrativa, por exemplo; 3.a confiança das pessoas na precisão de suas memórias (memórias autobiográficas) [6] não é algo digno de total crédito, pois as pessoas, sejam elas testemunhas em um processo penal ou não, não detêm discernimento absoluto sobre a precisão de suas próprias memórias.

É dizer, a prova testemunhal é evidentemente frágil, e essa fragilidade decorre tanto do fato de que a falta de memória na reconstrução de uma narrativa são preenchidas (gaps) criativamente quanto da capacidade de memorização (encording,  storage e retrival) de detalhes de um evento presenciado e vivido e, ainda, pela elevada sensação de stress (exemplo, do “foco na arma”) que prejudicam não só a confiabilidade da narrativa dos fatos (com seus acréscimos criativos), mas também a capacidade de reconhecimento correto de pesssoas e coisas [7].

A mencionada fragilidade decorre das próprias limitações da cognição e da memória, agravadas ainda mais pelas defraudações da memória e também da própria falta de memória, que não raras vezes faz a testemunha — inconscientemente — deslizar pelo imaginário e ser facilmente influenciada por atores ou meios externos. Em outras palavras: a memória não funcionada como um HD ou um backup de computador que pode ser perfeitamente consultada ou recuperada sem que com isso não existam “tropeços” cognitivos ao longo do processo.

As provas dependentes da memória envolvem vários fatores. Inclusive, inteligência, experiência e formação acadêmica não protegem as pessoas da falibilidade de suas memórias. Claro que não importa muito se eu me equivoco, por exemplo, ao dizer que comi espaguete no almoço sendo que na realidade comi um hambúrguer. Entretanto, no processo criminal todo e qualquer detalhe pode fazer a diferença no momento de condenar ou absolver alguém. A imbricação entre Direito Penal e a Psicologia do sistema de Justiça Criminal é extremamente necessária para a evolução da coleta de depoimentos e do tratamento da prova testemunhal no processo penal.


[1] Que inclusive, o reconhecimento fotográfico não tem previsão no Código de Processo Penal, devendo, no máximo, ser um ato preparatório para o reconhecimento pessoal.

[2] O caso foi noticiado aqui: https://www.conjur.com.br/2023-ago-06/acusados-roubo-sao-absolvidos-procedimento-fotografico-falho.

[3] PEZDEK, Kathy. Event memory and autobiographical memory for the events of September 11, 2001. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/acp.984.

[4] Uma das versões prevalentes pode ser vista aqui: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/09/10/ele-me-disse-que-a-america-estava-sob-ataque-veja-como-george-w-bush-e-outras-pessoas-receberam-a-noticia-dos-atentados-de-11-de-setembro.ghtml.

[5] GREENBERG, Daniel. President Bush’s False ‘Flashbulb’ Memory of 9/11/01. Disponível em: http://zx.net.nz/~david/University/PSYC305A/Readings/Greenberg_Bushs911Flashbulb.pdf

[6] PEZDEK, Kathy. Event memory and autobiographical memory for the events of September 11, 2001. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/acp.984

[7] Nesse sentido, ver: PEZDEK, Kathy et al. Elevated stress impairs the accuracy of eyewitness memory but not the confidence–accuracy relationship. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/2020-53120-001.

Autores

  • é professor, palestrante, autor de livros e artigos sobre Direito Penal, Direito Processual Penal e liberdade de expressão, formado na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos, especialista em Sociologia pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul, pós-graduado na Universidade de Mar del Plata (Argentina) e na Universidade de Queensland (Austrália) e membro da Asociación Pensamiento Penal (Argentina).

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