Opinião

Ministério Público das Garantias? É bom começar a pensar

Autor

  • Silvio Roberto Matos Euzébio

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Sergipe titular da 2ª Promotoria de Justiça da Infância e Adolescência de Aracaju pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Sergipe ex-juiz de Direito e autor de artigos jurídicos.

14 de novembro de 2023, 16h17

A instituição do juiz de garantias pela Lei nº 13.964/2019 foi objeto de questionamento pelas ADIs nºs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 [1], esta última proposta pela Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), e seu julgamento foi concluído no sentido da sua validade, tendo o STF deliberado:

“2. Por maioria, declarar a constitucionalidade do caput do art. 3º-B do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, e por unanimidade fixar o prazo de 12 meses, a contar da publicação da ata do julgamento, para que sejam adotadas as medidas legislativas e administrativas necessárias à adequação das diferentes leis de organização judiciária, à efetiva implantação e ao efetivo funcionamento do juiz das garantias em todo o país, tudo conforme as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça e sob a supervisão dele. Esse prazo poderá ser prorrogado uma única vez, por no máximo 12 meses, devendo a devida justificativa ser apresentada em procedimento realizado junto ao Conselho Nacional de Justiça.” [2]

Ainda restou assentado no item 4 do referido julgamento que todas as investigações ou procedimentos investigatórios sob condução do Ministério Público devem ser apresentados e submetidos ao controle judicial, independentemente da instalação formal do denominado juízo das garantias.

Portanto, ficou reconhecida a constitucionalidade e obrigatoriedade do novo standard no sistema acusatório caracterizado pela distribuição orgânica e funcional de tarefas: um juiz deverá atuar na fase investigatória, até a propositura da Ação Penal, enquanto outro preside a instrução e o julgamento. Duas etapas, como assinalaram Aurélio Lopes Jr. e Alexandre de Morais da Rosa no Artigo Afinal, como ficou o juiz das garantias na versão híbrida? [3].

Trata-se de “um novo contexto em que ‘investigação penal’ e ‘julgamento da causa’ são atividades que devem concernir a juízes diferentes”, como mencionado no Estudo do CNJ denominado “A Implantação do Juiz das Garantias no Poder Judiciário Brasileiro” [4]. Inclusive, ao contrário da prescrição da Lei nº 13.964/2019, o STF decidiu que o juiz de garantias possui jurisdição até o oferecimento da denúncia ou queixa, conforme item 7 [5].

O devido processo legal sofreu mudança a partir da incorporação ou inserção do juízo das garantias.

Portanto, o instituto do juízo das garantias, com sua constitucionalidade agora chancelada, também se aplica ao Ministério Público?

Acreditamos que sim, pois é preciso pensar no Ministério Público das Garantias [6] não apenas pela aplicação simétrica ou meramente automática das regras do instituto do juízo das garantias. É preciso estruturar um novo padrão de imparcialidade para o MP coexistente e coerente com o Princípio do Promotor Natural, tanto no tocante aos procedimentos investigatórios que lhe são destinados, quanto naqueles instaurados sob sua responsabilidade. A divisão de atribuições ou funções no âmbito do Ministério Público é similar à divisão de competências enquanto medida da jurisdição.

A questão não é mais acerca legitimidade e da constitucionalidade da função institucional da atribuição do Ministério Público para investigar, aspecto já definido [7]. A questão é outra: a continuidade da atuação do mesmo Agente Ministerial Oficiante na fase preliminar e em seguida na fase judicial, quer seja o responsável pela investigação criminal ou apenas destinatário da mesma.

A aplicação do Sistema do Juízo das Garantias ao Ministério Público decorre da superação dos antigos precedentes que afastavam a existência de óbice, por impedimento ou suspeição, e consequentemente de nulidade, quanto à atuação do membro do Ministério Público na fase processual criminal, apenas pela razão também de ter oficiado durante o inquérito policial ou como responsável pela condução do procedimento investigatório correlato [8].

A titularidade do exercício da persecução não é subjetiva deste ou daquela agente ministerial, mas conferida organicamente à própria Instituição. O exercício da persecução penal não deve se concentrar no mesmo agente em ambas as fases, exatamente para assegurar o exercício ou a atuação orgânica, isto é, como parte imparcial, portanto, sem prejuízo para observância dos Princípios do Promotor Natural, da Unidade e Indivisibilidade.

Logicamente não significa que substancialmente a imparcialidade tenha sido comprometida no modelo antigo, mas, que doravante a implementação do Ministério Público de Garantias pressupõe o exercício da função da persecução delitiva de acordo com padrão mais elevado, agora definido, mediante a promoção da análise revisional dos elementos probatórios que conferem lastro à acusação por Membro diverso, evitando confusões e voluntarismos.

A divisão de tarefas institucionais já acontece onde funcionam as Centrais de Inquérito, guardadas as devidas proporções. Ademais, a distribuição de atividades também já é observada com naturalidade no processo de execução penal e perante o 2º Grau, onde oficiam agentes ministeriais diversos do processo de conhecimento originário.

Os conselhos Nacional de Justiça (CNJ) e do Ministério Público (CNMP) expediram recentemente Atos Normativos reconhecendo a aplicação do mesmo regime entre Magistratura e Ministério Público, respectivamente Resoluções nºs 528/2023 e 272/2023, de 20 e 25/10/2023. Onde existe a mesma razão, aplica-se a mesma disposição. Ou a simetria entre as carreiras ministerial e da magistratura é apenas financeira, sem apresentar razão material?

O Ministério Público deve zelar pela escorreita aplicação da Lei e do Direito, sendo o primeiro fiscal dos direitos fundamentais do investigado, do acusado, e concomitantemente, das vítimas. Cabe então ao Órgão estruturar suas unidades de atuação com atenção para nova e necessária divisão de funções: da investigação ou seu exame até o oferecimento da Denúncia, e do seu recebimento até a prolação da sentença e a primeira fase recursal.

É preciso um Ministério Público das Garantias para que a ação penal seja promovida e também desenvolvida dentro de critérios de reexame da opinio delicti.

Ora, mais uma uma vez, se o Instituto do juízo das garantias veio dotar o Sistema Acusatório de standard ou padrão de legalidade mais elevado e assim passou a integrar o devido processo legal, nada mais coerente que seja incorporado e observado interna ou organicamente pelo Ministério Público brasileiro, sob pena de ofensa ao Princípio da Proibição do Retrocesso e da Estagnação, ousaria complementar.

A atividade do Ministério Público também é delineada pelo devido processo legal, posto que não é possível pensar a tutela de direitos sem o regramento dos agentes processuais. Assim, o desrespeito ao Sistema de Garantias nas fases da persecução penal pelo Ministério Público poderá acarretar nulidade processual pela falta de sua atuação regular enquanto sujeito processual.

Aliás, é possível também imaginar que o Sistema do Juízo das Garantias, ao materializar a cláusula do devido processo legal, também se aplica à esfera cível e administrativa [9], inclusive procedimentos e ações conduzidos Ministério Público para apuração e proteção de direitos difusos e coletivos, como por exemplo, a persecução de improbidade administrativa, cuja atuação não pode, jamais, se eximir da observância das garantias constitucionais.

Portanto, a questão da aplicabilidade cogente do Instituto do Juízo das Garantias ao Ministério Público decorre não apenas da inexistência de diferencial de regime, mas, ultima ratio, da aplicação deste novo padrão incorporado ao ordenamento Processual pelo devido processo legal. Pois, como assinala Fábio Alexandre Coelho, salvo exceções:

“A revogação baseia-se no entendimento de que a lei posterior representa um avanço em relação à anterior, uma vez que os seres humanos estão constantemente evoluindo e o mesmo, obviamente, ocorre em se tratando de atividade legislativa. (…)
Em regra, as leis sofrem constantes modificações, uma vez que procuram acompanhar as transformações e as novas situações de necessidades que se manifestam ao longo do tempo [10].

A questão, no fundo, é racionalizar a distribuição dos agentes ministeriais e suas atribuições. Portanto, a atividade de persecução penal deve ser objeto de redirecionamento e reorganização. Ou o Ministério Público vai remar contra a maré, sustentando pilares ultrapassados e sendo guardião de padrões antigos? Enquanto seguimos pensando, com a palavra, o CNMP!


[1] A ADI 6.305 foi proposta pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP).

[2] Vide Ata de Julgamento comum: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5844852

[3] https://www.conjur.com.br/2023-out-24/criminal-player-afinal-ficou-juiz-garantias-versao-hibrida

[4] Pg. 22, https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/06/Estudo-GT-Juiz-das-Garantias-1.pdf

[5] idem, “7. Por maioria, declarar a inconstitucionalidade do inciso XIV do artigo 3º-B do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, e atribuir interpretação conforme para assentar que a competência do juiz das garantias cessa com o oferecimento da denúncia, vencido o Ministro Edson Fachin;”.

Consta ainda do Estudo referido na Nota anterior: “Nessa esteira, compete ao juiz que atua na etapa pré-processual o controle da legalidade da investigação e o resguardo dos direitos individuais do investigado (artigo 3º-B), inclusive o recebimento da acusação com a superação da fase preliminar”. pg. 14

[6] A expressão Ministério Público de Garantias foi utilizada como objeto de estudo pelo Procurador da República Robson Martins no seu Livro Ministério Público de Garantias, editora Fórum, 2023, e constitui temática para a qual se pretende contribuir com a presente análise pela sua evidente pertinência e importância.

[7] Vide STF, RE 593.727, Tema 184, Tese:O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/1994, art. 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa Instituição”. E ainda os antigos julgados STF, HC 77.371 e HC 89.837

[8] (a) A participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia. (STJ, Súmula 234, 3ª Seção, j. em 13/12/1999, DJ 07/02/2000), fonte: https://scon.stj.jus.br/SCON/sumstj/toc.jsp?livre=%27234%27.num.&O=JT)

(b) 2. A jurisprudência do STF é no sentido de que a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória não acarreta, por si só, seu impedimento ou sua suspeição para o oferecimento da denúncia, e nem poderia ser diferente à luz da tese firmada pelo Plenário, mormente por ser ele o dominus litis e sua atuação estar voltada exatamente à formação de sua convicção. (STF, HC 85.011, Rel. Ministro TEORI ZAVASCK, 26/05/2015.)

[9] Constituição Federal, Art. 5º, LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

[10] Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro Comentada, Edipro, 2015, pgs. 49, e 58.

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