Opinião

Os desafios para a implementação do juiz das garantias

Autor

  • Mauro Ferrandin

    é juiz de Direito da 2ª Vara dos Juizados Especiais e Violência Doméstica de Itajaí (SC) mestre em Direito pela Univali doutor em Direito pela Universidade de Barcelona professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) da Academia Judicial do TJSC da Esmesc e da Escola do Ministério Público de SC.

14 de fevereiro de 2024, 16h14

Em março de 2022, o núcleo de direitos humanos da Corregedoria-Geral da Justiça de Santa Catarina concebeu o projeto denominado “criação de unidades regionais especializadas para audiências de custódia e procedimentos investigativos”. Apesar de ter sido concebido de maneira desvinculada, na sua gênese, possuía diversos pontos de intersecção com a figura do juiz das garantias, inserida no ordenamento jurídico por meio da Lei nº 13.964/2019, que acrescentou ao CPP os artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F, cuja eficácia, à época, estava suspensa diante da interrupção do julgamento do mérito das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 no Supremo Tribunal Federal.

Após profundos estudos e debates, concluiu-se que a equalização perene, pragmática e efetiva da crescente demanda, do inchaço da rotina e do consequente acúmulo de acervo pressupõe a otimização da organização judiciária de maneira ampla; afinal, a sobrecarga não se consubstanciava em exceção que assola unidades judiciais determinadas, mas constitui situação consolidada, comum à jurisdição criminal no primeiro grau catarinense. Nada obstante, desde logo, avultou-se a percepção de que a criação de varas criminais em dezenas de comarcas do estado, nos moldes tradicionais, além de não resolver definitivamente a questão, inclusive em razão da dinamicidade que permeia essa área da justiça, encontraria óbices intransponíveis na (in)disponibilidade econômico-financeira e na própria escassez de juízes e servidores.

Foi nesse contexto que ao longo da gestão foram adotadas diversas providências para a execução do projeto de criação de unidades regionais de inquéritos policiais, procedimentos investigatórios e audiências de custódia, mediante o equilíbrio de entradas e concentração de competências específicas, de modo a favorecer a especialização, qualificação, padronização, eficiência e celeridade, mas sobretudo,  focando na preparação de alicerces para o aprimoramento do fluxo afeto à administração prisional e o alinhamento orgânico e processual do Poder Judiciário de Santa Catarina com as políticas fomentadas pelo CNJ e com o ordenamento jurídico posto.

Aliás, foi exatamente o trabalho de conformação entre a sistemática interna com o ordenamento jurídico – notadamente aquele que se pressupunha vigorar em breve – e os objetivos traçados pelo projeto inicial que possibilitou a rápida virada da chave. Isso porque, após aproximadamente três anos da suspensão dos efeitos dos arts. 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F, todos do CPP, incluídos pela Lei n. 13.964/2019, o plenário do STF concluiu o julgamento do mérito das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, oportunidade em que assentou, entre tantos pontos relacionados à matéria, a constitucionalidade da figura do juiz das garantias e a obrigatoriedade da sua implementação por todos os tribunais estaduais e federais do país, no prazo de 12 meses [1].

O julgamento das ADIs e a consolidação do novo paradigma
Na ocasião, ao enfrentar estudos e argumentos que conduziam à açodada percepção de completa impossibilidade de adequação dos tribunais, erigidos sob prognósticos econômicos e financeiros que conjecturavam a necessidade de instalação de varas em cada comarca ou subseção judiciária — à evidência, direcionados aos interesses previamente definidos pelos proponentes —, os ministros ponderaram que a aplicação do instituto não traria impacto relevante no quantitativo de processos ou de funções, inclusive porque as atribuições conferidas ao juiz das garantias atualmente são desempenhadas, em essência, pelos juízos criminais, que cumulam competência para atuar tanto na fase de inquérito quanto na instrução e julgamento.

Corolário lógico do seccionamento das fases da persecução penal em duas competências distintas é a divisão da demanda, e não a sua soma, pois, obviamente, os juízos criminais (da instrução e julgamento) têm seu acervo, entradas e atividades diluídos à medida da absorção de parte de sua competência pelos juízos de garantias. Ao fim e ao cabo, consoante veiculado em inúmeras passagens do julgamento, a divisão das competências, signo do princípio acusatório e do plexo de direitos que orbitam a dignidade humana, não implica, obrigatoriamente, a criação de novos cargos e unidades judiciais; mas exige o remanejamento da estrutura orgânica e funcional de cada instituição envolvida.

No ponto, aliás, os ministros da Suprema Corte não apenas consideraram como opção válida e viável a regionalização da competência afeta ao juiz das garantias, com a instalação de núcleos, centrais ou unidades regionalizadas, como também exortaram a adoção desse modelo pelos tribunais, respeitado o poder de auto-organização que lhes é inato desde a CRFB/1988, ao nominar casos práticos exitosos, a exemplo do Departamento de Inquéritos Policiais implementado no Tribunal de Justiça de São Paulo há longa data e as centrais de inquéritos dos Tribunais de Justiça do Piauí e do Espírito Santo, entre outros.

A decisão do STF e a estruturação do projeto catarinense
O primeiro aspecto vetorial a ser considerado, consiste na efetiva aplicação de políticas de atenção à pessoa presa, investigada ou em alternativa penal, capitaneadas pelo CNJ, que se materializam em programas como Atendimento à Pessoa Custodiada (Apec), Escritório Social, Central Integrada de Alternativas Penais (Ciap) — ou equivalente, como Central de Penas e Medidas Alternativas (CPMA) — e Identificação Civil Biométrica.

O segundo ponto de extremo relevo, que repercute decisivamente no funcionamento das unidades regionais, na atuação dos atores jurídicos envolvidos e, sobretudo, nos direitos da pessoa presa, reside na organização das polícias e da administração prisional para a apresentação da pessoa presa no juízo regional dentro do prazo de 24 horas.

A respeito, sobreleva do posicionamento do STF, firmado no julgamento das aludidas ADIs, que, em regra, as audiências de custódia devem ser realizadas com a presença física de todos os participantes (pessoa presa, seu advogado ou membro da Defensoria Pública, membro do Ministério Público e juiz), reservada a possibilidade de utilização de videoconferência a casos excepcionais, devidamente justificados.

Demais disso, não menos importante, o êxito prático da implementação do novo sistema de persecução penal, sob o modelo regionalizado, depende fundamentalmente do engajamento das instituições que representam os atores jurídicos atuantes no processo penal, notadamente Ministério Público, Defensoria Pública e Ordem dos Advogados do Brasil, das quais se espera o desenvolvimento de ações pragmáticas e abrangentes, na medida de seus papéis, prerrogativas e possibilidades, no sentido de se coadunarem organicamente com a nova realidade e contribuírem para o concreto alcance do âmago do juiz das garantias.

Daí porque a importância de cada instituição revisar suas regras internas de organização, atualmente voltadas à sistemática que não distingue a etapa investigativa da processual — em franco processo de ruptura —, as quais não encontram espaço no novo sistema. Somente dessa maneira será possível cultivar um campo estrutural sólido, preparado para a qualificação das investigações e da cadeia de provas, à luz dos direitos da pessoa investigada, do devido processo legal e, em última instância, do princípio acusatório.

No que tange ao cenário interno, mais especificamente à produção normativa e adequação de sistemas, registre-se que o STF, no julgamento das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, declarou a inconstitucionalidade material do inciso XIV do artigo 3º-B e deu interpretação conforme ao caput e aos §§ 1º e 2º do artigo 3º-C, ambos do CPP, no sentido de considerar como marco final da competência do juiz das garantias o oferecimento da denúncia — e não o seu recebimento (previsão legal que, no entendimento deste subscritor, estaria em melhor arrimo com a CRFB/1988 e com o espírito do juiz das garantias). Na mesma linha, considerou inconstitucionais outros dispositivos legais, ou a eles deu interpretação conforme, que, assentados nas teorias da dissonância cognitiva e da tunnel vision, buscavam ampliar a garantia da imparcialidade do julgador e sedimentar as balizas do sistema acusatório.

Nota-se que, sob a ótica do processo de criação das unidades regionais no âmbito do Judiciário catarinense, o pronunciamento da Suprema Corte veio a calhar, porquanto exarado em momento limite ao início efetivo do projeto alhures mencionado, justamente durante a fase de elaboração e/ou aprovação das normativas internas que tratavam do tema, o que, diante da consonância das disposições favoreceu a sua imediata adaptação para o modelo de Varas Regionais de Garantias (VRG).

Desafios Adicionais e Ajustes Necessários
Agora tornada realidade, a implementação do juiz das garantias, materializada, no âmbito interno, na instalação de Varas Regionais de Garantais (VRG), tem o condão de inaugurar um novo capítulo na história do sistema processual penal brasileiro.

Impende salientar que, em atenção ao trinômio celeridade/eficiência/eficácia, do qual decorre a missão de equilibrar a alocação dos recursos disponíveis (work force) de acordo coma carga de trabalho (work load), sopesados aspectos financeiros, orçamentários, estruturais, orgânicos, de pessoal, processuais, geográficos e logísticos, desde o momento incipiente se projetou a implementação do juiz das garantias no âmbito catarinense conforme modelo regionalizado — única alternativa adequada às especificidades do Judiciário catarinense e efetivamente capaz de alcançar as finalidades colimadas (notadamente a reformatação da justiça criminal e a absorção do novel sistema de justiça em seu verdadeiro âmago).

Vale o registro de que a regionalização, no caso catarinense, se assentará na divisão administrativa, que trata do plantão judiciário no primeiro grau de jurisdição [2]. Isso porque o complexo roteiro logístico que conduz a atuação dos órgãos de segurança pública, desde a execução da ordem de prisão até a efetiva realização da audiência de custódia, exige ações concatenadas para a condução, custódia, transporte e encaminhamento da pessoa presa, comunicações, realização de exame de corpo de delito, atendimentos emergenciais no contexto das vulnerabilidades humanas e sociais, eventual produção de peças policiais, entre tantas outras contingências.

Assim, ao consolidar a regionalização do juiz das garantias sob os parâmetros de repartição existentes para o plantão estadual desde o ano de 2022, aos quais os órgãos de segurança pública estão adaptados, possibilita-se a construção de fluxo administrativo único, dotado de segurança e pragmatismo, aplicável indistintamente — seja em sede de plantão judiciário ou durante o expediente forense.

Por razões análogas, a reorganização interna baseia-se na concentração de todas as audiências de custódia na VRG — independentemente da natureza da prisão (em flagrante ou por cumprimento de mandado criminal, de execução penal ou civil) e da infração penal —, afinal, estabelecer encaminhamentos distintos a depender da matéria, modalidade da prisão ou espécie da infração penal traria transtornos de toda ordem ao fluxo estabelecido.

Neste cenário, forçoso reconhecer que a centralização fomenta a qualificação das audiências de custódia, tendo em vista a potencial estrutura e a especialização das unidades regionais — cujo projeto global sugere a divisão do Estado em 16 (dezesseis) sedes — que deverão ser preparadas para receber, atender e encaminhar todas as pessoas presas na região correspondente. Ademais, permite o aprimoramento da prestação jurisdicional nas unidades de comarcas abrangidas por VRG, que, definitivamente desvinculadas das audiências de custódia e suas intercorrências, poderão reestruturar sua pauta e redirecionar a força de trabalho para outras atividades — livres da imprevisibilidade, complexidade e urgência inerentes àquele ato.

Um passo adiante, considerando a previsão constante na Resolução TJ-SC 43/23 já aprovada — que institui a primeira VRG do estado, com sede em Rio do Sul — o caráter inovador do seccionamento das fases da persecução penal, os impactos que a implementação do juiz das garantias trará à jurisdição catarinense, a iminente instalação VRG e a real possibilidade de instalação de outras unidades regionais semelhantes em toda a extensão da justiça estadual, incumbirá à Corregedoria-Geral de Santa Catarina, nos termos do artigo 2º, II, do CNCGJ e artigos 1º e 4º, XII, do RICGJ, expedir orientação aos servidores e magistrados do primeiro grau de jurisdição sobre os procedimentos afetos às VRG e seus consectários, afinal, sua abrangência desbordará para todas as VRG a serem instaladas no estado.

Oportuno anotar, por fim, que para além da aplicação das regras de competência previstas na Resolução TJ nº 43/2023, inclusive no que toca à entrada de casos novos e redistribuição de feitos em curso (seja das varas criminais locais à VRG ou vice-versa), sobreleva imprescindível que o ato correicional adéque e padronize a forma de interpretação e execução das normas e orientações já existentes são modelo regionalizado e seccionado de competências, com a divisão de atribuições entre VRG e juízos das comarcas locais integrantes da região.

Nesse viés, exsurge a corresponsabilidade quanto ao fornecimento de meios de acesso aos serviços e atendimentos da VRG, que, em virtude da larga abrangência territorial da sua competência, inexoravelmente serão prestados de forma eletrônica e remota. Para tanto, se desvelará profícua a disponibilização ao público, em cada foro de comarca abrangida por VRG, de computador ou totem, com câmera, microfone e acesso à internet, que permita a conexão da parte ou interessado com a unidade regional por meio remoto, especialmente balcão virtual, o reconhecimento facial e o georreferenciamento, se for o caso, mediante aproveitamento de salas passivas (Resolução CNJ nº 341/2020 e Resolução Conjunta GP/CGJ nº 24/2019).

Conclusão
Em conclusão, a implementação do juiz das garantias e das VRG representa um marco na evolução do sistema processual penal brasileiro. O sucesso dessa transição depende da colaboração e compreensão de todos os atores envolvidos, desde os órgãos de segurança pública até os servidores do Poder Judiciário. A regionalização, logística eficiente, garantia de acesso à justiça e padronização de procedimentos são elementos essenciais para a consolidação desse novo paradigma. O desafio é complexo, mas com a devida colaboração, o sistema processual penal brasileiro pode alcançar uma justiça mais ágil, eficiente e alinhada aos princípios democráticos.


[1] Disponível em:https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5840373. Acesso em 06/12/2023.

[2] Prevista no Anexo I da Resolução CM n. 10 de 13 de junho de 2022. Disponível em: https://busca.tjsc.jus.br/buscatextual/integra.do?cdSistema=1&cdDocumento=183371&cdCategoria=1&q=&frase=&excluir=&qualquer=&prox1=&prox2=&proxc=. Acesso em 01/12/2023.

Autores

  • é juiz de Direito da 2ª Vara dos Juizados Especiais e Violência Doméstica de Itajaí (SC), mestre em Direito pela Univali, doutor em Direito pela Universidade de Barcelona, professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), da Academia Judicial do TJSC, da Esmesc e da Escola do Ministério Público de SC.

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