Justiça Tributária

O futuro da tributação na nova economia digital

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

13 de novembro de 2023, 8h00

Ocorreu semana passada, em Coimbra (Portugal), um encontro sobre O Futuro da Tributação, organizado pelo Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe), tendo à frente o economista José Roberto Afonso. Diversas personalidades expuseram seus pontos de vista sobre o tema em um ambiente propício aos debates no belíssimo Instituto Jurídico da Faculdade de Direito de Coimbra, coordenado pela professora Matilde Lavouras, copartícipe do evento.

Trata-se de um tema fascinante, desvinculado do absorvente direito positivo, que nos permite buscar visualizar as transformações pelas quais o mundo vem passando e seus impactos em termos de sustentabilidade do Estado Social, que estava no centro da pauta. Netflix, Uber, IFood, Google e incontáveis outras empresas semelhantes passaram a fazer parte de nosso cotidiano, e esse mundo digital se tornará cada vez qual predominante no futuro. Em termos tributários, qual o impacto de vivermos em um mundo cada vez mais digital?

Spacca

Verifica-se que a tributação tradicionalmente tem como bases econômicas a propriedade, a renda e o consumo (incluindo o comércio exterior). E para fins de previdência social, usa-se a folha de salários. Penso que, como regra, essas bases serão mantidas com alguns necessários ajustes.

A base propriedade aparentemente não será afetada pela economia digital. Olhando o sistema brasileiro, os velhos IPTU, ITR e IPVA não sofrerão grandes impactos com a nova economia. O mesmo se pode dizer dos tributos sobre a transferência da propriedade: ITBI e ITCMD, embora estes já estejam sendo afetados em termos de globalização.

A base consumo será parcialmente alterada. Quando as transações se referirem a bens materiais, isto é, palpáveis, as transações serão identificadas pelos fiscos sem maiores dificuldades através dos controles usuais de entrega física de mercadorias por meio de portos, aeroportos, correios, marketplaces, etc. Embora a compra possa ser feita através de um meio digital, a entrega é física, e isso permite o usual controle fiscal.

O problema ocorre e será cada vez mais potencializado quando houver consumo de bens imateriais, intangíveis. Neste caso, o controle por meio de fronteiras (internas ou internacionais) é ineficaz, pois o bem pode ser entregue “pelo fio”, ou até mesmo “sem fio” (wi-fi), conforme Bill Gates expôs em 1995 em seu livro “A Estrada do Futuro”. Em alguns casos, será possível controlar através do meio digital utilizado, como no caso do streaming. Porém, mesmo aí haverá muita dificuldade. A situação se complica quando se constata que muitas empresas atuam sem nada cobrar dos usuários, como o LinkedIn ou o Google, pelo simples fato que o produto delas é o próprio usuário, que disponibiliza diversos dados pessoais em suas plataformas que serão posteriormente comercializados. Como tributar nessas situações? É diferente da publicidade, que é efetuada por meio dessas plataformas, que pode ser mais facilmente tributada, embora também apresente desafios.

A base renda é uma das que mais sofrem com essa nova economia em razão de sua mobilidade. A identificação acerca do local em que se deve cobrar imposto sobre a renda é central para o direito tributário internacional. Em razão de existirem infernos fiscais, diversas empresas deslocam suas sedes para paraísos fiscais, nos quais a tributação sobre a renda é menos intensa. Nestes casos, não importa onde a renda é gerada, mas onde está a sede da empresa, que é formalmente deslocada para esses paraísos, o que gera uma tributação desproporcionalmente baixa sobre a renda auferida. Dessa forma, embora possam existir centenas de milhões de pessoas na Índia comprando através do site da Amazon, a renda pode estar sendo deslocada para países como a Irlanda ou o Liechtenstein, cuja tributação sobre essa base econômica é reduzida.

Outra base que vem sendo bastante abalada é a folha de salários por uma constatação básica: o mundo do emprego está encolhendo, embora o mundo do trabalho esteja cada mais presente. Usando referenciais brasileiros: o mundo da CLT, do emprego formal, encolhe a cada dia; o mundo do pseudo micro empreendedorismo se amplia a cada dia. As pessoas precisam trabalhar para se sustentar e, com os empregos cada vez mais caros em face da oneração da folha de salários, as pessoas se aventuram em situações precárias em busca de sustento.

Daí o que deveria ser um bico para as horas vagas, em busca de suplementação de seu sustento, torna-se a fonte principal da renda das pessoas e suas famílias. É o que se vê, por exemplo, com o Uber, que realiza a intermediação entre passageiros e motoristas, ou com o IFood, que intermedeia as relações entre três partes: consumidores, restaurantes e entregadores. A ideia de sustentabilidade da previdência social nas bases que atualmente conhecemos está cada vez mais abalada em razão da nova economia. (sistema de repartição, de capitalização ou misto). Cada vez mais o sustento dessas pessoas será da mão para a boca, sem nenhum saldo para futura aposentadoria e sem proteção contra acidentes de trabalho. Talvez isso explique a sutil ampliação do mercado de pequenos seguros no Brasil.

Dado o problema, qual a solução? Ninguém sabe, mas este foi o cerne dos debates. De minha parte, sai com algumas ideias, que compartilho.

Uma delas é que, quanto mais desigual for uma sociedade, maior deve ser o esforço arrecadatório para reverter tal situação. Esse fato indica um paradoxo, pois, havendo poucos ricos, será insuficiente a base renda para sustentar o Estado. Nesses casos, é necessário usar fortemente a base consumo, que é regressiva. Logo, quanto mais desigual for a sociedade, mais injusta será a tributação, pois sua base prioritária de incidência será o consumo, que atinge igualmente a ricos e pobres. Mesmo que os ricos venham a ser mais fortemente tributados em sua renda, o que é um critério de justiça fiscal, a arrecadação será insuficiente, pois a base econômica é estreita.

A ideia de utilização da folha de salários como base para a previdência virá a se tornar insustentável, uma vez que o mundo do emprego está minguando. Uma ideia seria usar no financiamento da previdência social a renda das empresas de tecnologia onde elas forem geradas, e não onde for sua sede. Isso pode indicar a solução para a tributação da renda, que passaria a ser considerada no local de sua geração, e não a da sede da empresa, e, de certa forma, usada para sustentar o sistema previdenciário de cada país.

Outra análise que aflorou no debate foi que, para algumas empresas tecnológicas a obtenção de lucro só ocorrerá após muitos anos, em face da necessária amortização das despesas e dos investimentos efetuados. Tais empresas, mesmo sendo valorizadíssimas nas bolsas de valores, demoram enormemente para gerar lucros — é o caso da Amazon e da Tesla, por exemplo. Logo, usar a base renda nem sempre é a mais adequada em algumas situações, podendo ser usado o faturamento, com uma alíquota devidamente calibrada — nem se há de pensar em usar a experiência brasileira nesta hipótese, pois extraordinariamente onerosa. O que emerge é a constatação de que múltiplas bases de incidência são necessárias para o custeio do sistema.

Enfim, foram dias de muitos debates e circulação de ideias — e nenhuma conclusão coletiva que se possa considerar como definitiva. De fato, trata-se de um tema em aberto, que necessita ser enfrentado com cautela e planejamento, e uma boa dose de imaginação e urgência, pois o futuro bate em nossa porta, e as desigualdades, a serem combatidas pelo Estado Social, se aprofundam.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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