Opinião

Controvérsia em torno da perda da função pública na Lei de Improbidade

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13 de novembro de 2023, 21h28

Dentre as sanções previstas na Lei de Improbidade (Lei nº 8.429/92), talvez a mais grave delas para as agentes públicos seja a perda da função pública. Quanto a ela, uma das principais controvérsias antes da Lei de Reforma (Lei nº 14.230/21) dizia respeito ao seu alcance: o agente público perde somente função que exercia na época em que praticou o ato ímprobo ou a pena alcança todo vínculo laboral entre o agente e a Administração?

A relevância da controvérsia é clara: como a pena em questão só se efetiva com o trânsito em julgado da sentença condenatória, o que tende a ocorrer muitos anos após a prática do ato ímprobo, pode ser que no momento de sua aplicação o agente não mais ocupe a função que exercia, seja porque não exerce mais função nenhuma, seja porque exerce outra função ou se aposentou.

No primeiro caso, maiores problemas não são verificados. Afinal, não há como se perder aquilo que não se tem. Nos outros dois, a discussão que se trava é se a sanção da perda da função pública alcança função pública sem relação com o ato de improbidade praticado pelo sujeito. Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, por exemplo, partindo do pressuposto que o objetivo da sanção é fulminar da vida pública aquele que demonstrou não ter dignidade para exercê-la, sustentam que a sanção alcança todo e qualquer vínculo laboral existente junto ao Poder Público [1]. Marino Pazzaglini Filho, por outro lado, entende que a sanção fulmina tão somente a função pública que o agente exercia a época em que praticou o ato [2].

A falta de consenso se reproduziu no Judiciário. A 2ª Turma do STJ possui jurisprudência firmada no sentido de que a sanção acarreta não só a da perda da função do agente, seja ela qual for e ainda que distinta daquela em que ocupava o agente quando cometeu o ilícito [3], como também a cassação de aposentadoria do servidor aposentado no curso da ação de improbidade [4]. A 1ª Turma, por sua vez, rechaça por completo a possibilidade de a sanção alcançar função diferente daquela exercida pelo agente quando da prática do ato [5].

Recentemente, contudo, a 1ª Seção da Corte pôs fim à discussão nos embargos de divergência opostos nos autos do Recurso Especial nº 1.701.967/RS, quando assentou o entendimento de que o vínculo a ser atingido pela sanção é o atual, ainda que seja ele diferente daquele ocupado pelo agente quando praticou o ato ímprobo. Quanto à possibilidade de cassação de aposentadoria, por outro lado, a mesma Primeira Seção firmou o entendimento contrário, no sentido de se tratar de pena não prevista no artigo 12 e que, portanto, não pode ser aplicada como consequência da sanção de perda da função pública [6].

Seja como for, é importante notar que toda essa divergência floresceu antes da entrada em vigor da Lei nº 14.230/21, que tomou partido na discussão, prevendo no §1º do artigo 12 que a sanção de perda de função pública “[…] atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração, podendo o magistrado, na hipótese do inciso I do caput deste artigo, e em caráter excepcional, estendê-la aos demais vínculos, consideradas as circunstâncias do caso e a gravidade da infração”.

Isto é, a LIA buscou um meio termo, encampando o entendimento aqui adotado de que a sanção alcança somente a função ligada ao cometimento do ato de improbidade como regra, mas admitindo, em caráter excepcional, e somente na hipótese de enriquecimento ilícito, o alargamento do alcance da sanção para atingir também os demais vínculos existentes entre o agente e o Estado. A ver, pois, como se pronunciarão os Tribunais a respeito. Especificamente quanto a possibilidade de cassação de aposentadoria, nada falou a normatização, de modo que continua vigente o entendimento (correto) do STJ no sentido de sua impossibilidade.

De toda forma, entendemos que o entendimento adotado pelo STJ e pela Lei nº 14.230/21, no sentido de que é possível que a sanção da perda de função pública atinja vínculos que não aquele ligado ao cometimento do ato de improbidade, padece de grave inconstitucionalidade por violação ao princípio da anterioridade da lei penal previsto no inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição [7]. Enquanto norma veiculadora de punição, o artigo 37, §4º, da Constituição deve sempre ser interpretado restritivamente [8] e, em caso de dúvidas, a interpretação a ser adotada é aquela que beneficia o acusado.

A partir dessas premissas, só podemos concluir que a interpretação correta a ser dada a expressão “perda da função pública” é aquela que restringe o alcance da sanção ao vínculo jurídico tido pelo agente junto ao Estado na época da prática do ato de improbidade. A existência de um nexo de causalidade entre o ato ímprobo e a sanção é elemento indispensável para a sua aplicação, não sendo possível o rompimento de um vínculo sem qualquer relação com o ato que se pretende sancionar. Em outras palavras, como lembra Calil Simão, o nexo de causalidade “[…] constitui uma garantia fundamental do jurisdicionado, e, por outro lado, uma limitação do poder punitivo do Estado” [9].

Com efeito, entendemos que o §1º do artigo 12 da Lei de Improbidade, ao admitir, mesmo que de forma excepcional, que a perda da função pública é sanção que alcança função diferente daquela exercida pelo agente quando da prática do ato ímprobo, é inconstitucional por violar o §4º do artigo 37 e o inciso XXXIX do artigo 5º, ambos da Constituição. Como bem pontua Gilmar Mendes, os princípios da anterioridade e legalidade em matéria penal impõem que qualquer intervenção no âmbito das liberdades individuais há de lastrear-se em lei [10].

Isso significa que se a Constituição, que é o diploma normativo competente para a previsão das sanções cabíveis pela prática de ato de improbidade (§4º do artigo 37), previu tão somente a função de perda da função pública, sem especificar que essa função pode ser qualquer uma, ainda que sem relação com o cometimento do ato de improbidade, não poderia a normatização infraconstitucional fazê-lo. Ampliar dessa forma o alcance da sanção sem qualquer autorização constitucional é o mesmo que criar uma nova sanção via interpretação in malam partem, o que contraria frontalmente o texto constitucional.

Para finalizar, impende destacar que a eficácia do §1º do artigo 12 da Lei de Improbidade foi suspensa por decisão do ministro Alexandre de Moraes nos autos da ADI nº 7.236/DF. No entendimento do ministro, a defesa da probidade administrativa impõe a perda da função pública independentemente do cargo ocupado no momento da condenação. Ele considerou também que, na prática, o dispositivo pode eximir determinados agentes da sanção por meio da troca de função ou no caso de demora no julgamento da causa. A ver como se pronunciarão os demais ministros da Corte. Até lá, enquanto vigente a suspensão do dispositivo continua a valer o entendimento do STJ de que o vínculo a ser extinto é o atual, ainda que sem relação com o cometimento do ato ímprobo.


[1] GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 681-682.

[2] FILHO, Marino Pazzaglini. Lei de improbidade administrativa comentada. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2018, 167. No mesmo sentido, ver FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa e crimes perfeitos. São Paulo: Atlas, 2001, p. 304 e MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt; NÓBREGA, Guilherme Pupe da. Comentários à lei de improbidade administrativa e ao projeto de sua reforma. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 168-169.

[3] REsp 1.297.021/PR e AgInt no REsp nº 1.701.967/RS.

[4] EDcl no REsp 1.682.961/RN e AgInt no REsp nº 1.781.874/DF.

[5] REsp nº 1.766.149/RJ e REsp nº 1.564.682/RO.

[6] EREsp nº 1.496.374/ES.

[7] Aplicável ao sistema de combate à improbidade por força do artigo 1, §4º, da Lei nº 8.429/92.

[8] Outro motivo que nos leva a concluir pela inconstitucionalidade do artigo 12 quando prevê sanções outras que não aquelas contidas no texto constitucional.

[9] SIMÃO, Calil. Improbidade administrativa: teoria e prática. 6. ed. Leme: Mizuno, 2022, p. 817-818.

[10] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 15. ed. rev., e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 534.

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