Observatório Constitucional

Nos 35 anos da CF, precisamos falar sobre as competências estaduais

Autor

  • João Trindade Cavalcanti Filho

    é doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito Constitucional pelo IDP consultor legislativo do Senado e Professor de Direito Constitucional e Legística do IDP. É advogado e também representante do Brasil no Grupo de Formulação de Regras Comuns de Legística para os Países e Regiões Lusófonas (Universidade de Lisboa).

11 de novembro de 2023, 8h00

Uma deputada estadual, recém-eleita, consulta sua assessoria jurídica para saber sobre quais assuntos poderá legislar ao longo dos próximos quatro anos. Antes de receber a resposta, no entanto, a parlamentar sorri ao ler o disposto no artigo 25, § 1º, da Constituição Federal (CF): “São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”. Anuncia-se um período de intensa atividade legislativa. Será preciso refrear os ânimos e as ânsias para não propor leis demais. A deputada começa a anotar ideias no celular. Escreve, escreve, escreve. É para isso que fui eleita!, pensa, quase assustando a pessoa que, ao lado dela, esperava o avião na sala de embarque.

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Chega a mensagem da assessoria: uma decepção completa. Basicamente, o estado pode legislar sobre criação de datas comemorativas e nomes de rodovias. Se as rodovias forem estaduais. E sobre servidores estaduais, mas por iniciativa só do governador. E sobre gás canalizado. Basicamente, é isso. Nenhuma das ideias que a deputada listara no celular entra nessas categorias. Mas não é possível, e aquela regra de competência residual dos estados? Não lhes pertence a prerrogativa de legislar sobre tudo o que não é da União e dos municípios?, questiona. A assessoria responde: pois é, o problema é que não sobra nada, ou quase nada…

Centenas de deputadas e deputados estaduais vivem no Brasil a mesma decepção da nossa parlamentar fictícia. A realidade é que, nos (primeiros) 35 anos de vigência da Constituição de 1988, ainda há uma série de promessas constitucionais não cumpridas, de compromissos que tardam em sair do papel. A efetiva autonomia legislativa dos Estados-membros é só mais uma dessas promessas que teimam em não se realizar, e sobre as quais precisamos conversar — com certa urgência.

Realmente, falando em termos práticos, pouco ou nada sobra de relevante para que as assembleias legislativas tratem por meio de lei. Isso porque as competências legislativas municipais (artigo 30) — as quais não são nada desprezíveis — e o rol gigantesco de atribuições legislativas da União reduzem praticamente a nada o espaço de “liberdade” que o artgo 25, § 1º, aparentemente traria ao nível estadual.

É bem verdade que nem só das competências residuais (ou remanescentes) vivem os legislativos estaduais. Podem também atuar na fixação das normas específicas das matérias de competência concorrente (artigo 24), em complementação às normas gerais fixadas pela União. Ganha, porém, o Nobel do Direito — quando o prêmio for criado — quem firmar um conceito adequado e aceito do que são normas gerais. Na prática, os Estados conformam-se em esquadrinhar a legislação federal à caça de algum espaço vazio no qual possam, talvez, complementar algo. As hipóteses de legislação supletiva, então — quando, diante da omissão federal, os estados ficam livres para legislar sobre o tema por inteiro — são ainda mais raras. Tudo isso é agravado pela postura até certo ponto centralizadora da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que raras vezes reconhece algum poder de real inovação legislativa à esfera regional da federação.

Por causa desse complexo quadro, Tomio, Ortolan e Camargo, por exemplo, defendem a necessidade de rever os mecanismos de cooperação entre a União e os estados, no contexto da repartição de competências:

“(…) ante a percepção do déficit de instrumentos de cooperação administrativa na federação brasileira, poder-se-ia cogitar, como futura linha de pesquisa, a investigação de alternativas para uma maior institucionalização de relações de cooperação administrativas entre os entes federativos” [1].

Isso porque nossa Constituição é considerada uma das mais centralizadoras, em termos de competências estaduais, dentre os países que adotam a forma federativa de Estado:

“(…) a federação brasileira, não obstante a previsão de formas de cooperação legislativa entre os entes federativos, comparativamente, aparece como sendo o país mais centralizado em matéria legislativa e, ao lado da Áustria, como a federação, em termos gerais, mais centralizada, colocando em evidência a tendência das últimas Constituições brasileiras em ampliar as atribuições do poder central ao sacrifício da autonomia dos Estados. No extremo oposto, situam-se os Estado Unidos, Austrália e Suíça, que se colocam como exemplos de experiências de descentralização legislativa” [2].

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Essa concentração de tarefas na esfera federal deriva de causas diversas. Em primeiro lugar, porque, no âmbito da competência concorrente, cabem aos Estados, como dissemos, apenas as normas específicas, em regra. E o Supremo Tribunal Federal (STF), por apresentar uma nítida tendência centralista — mitigada, é verdade, em recentes julgados [3] — tende a invalidar leis estaduais por considerar que instituíram normas gerais [4].

Além disso, as competências expressamente atribuídas pela CF à União e aos municípios são, repita-se, numerosas e extensas, de modo que as tarefas “reservadas” aos estados restam poucas. Sobre o tema, Fernanda Dias Menezes de Almeida destaca a vastidão das matérias de competência legislativa da União [5]. E, para Elival da Silva Ramos, “o rol de competências legislativas da União é exageradamente amplo e, sendo assim, o que sobra como resíduo [para os Estados] é muito pouco” [6].

Pior ainda: a esfera de atuação dos entes de segundo grau é ainda limitada pela adoção, entre nós, da teoria americana dos poderes implícitos [7], o que termina por relativizar a regra segundo a qual as competências implícitas caberiam aos estados [8].

Nesse sentido, Alexandre de Moraes sustenta que:

“Ao verificarmos as matérias do extenso rol de 29 incisos [atualmente, 30] e um parágrafo do artigo 22 da Constituição Federal 88, é facilmente perceptível o desequilíbrio federativo no tocante à competência legislativa entre União e Estados-membros, uma vez que, há a previsão de quase a totalidade das matérias legislativas de maior importância para a União (direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho, desapropriação, águas, energia, informática, telecomunicações, radiodifusão, serviço postal, comércio exterior e interestadual, diretrizes da política nacional de transportes, regime de portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial, trânsito e transporte, diretrizes e bases da educação nacional, registros públicos, etc). Além disso, a tradicional interpretação política e jurídica que vem sendo dada ao artigo 24 do texto constitucional, no sentido de que nas diversas matérias de competência concorrente entre União e estados, pode discipliná-las quase integralmente, teremos o resultado da diminuta competência legislativa dos Estados-membros; gerando a excessiva centralização nos poderes legislativos na União, o que caracteriza um grave desequilíbrio federativo” [9].

Como se não bastasse, ainda temos as origens históricas da Federação brasileira, cuja tradição centralista difere da origem soberana dos Estados-membros da federação americana[10].

Torna-se necessário, portanto, rever o atual sistema — ou pelo menos, a lista de tarefas atribuídas a cada ente federativo — inclusive com a reforma do próprio texto da CF.

Registre-se que, já à luz do texto atual, os estados também poderiam legislar sobre questões específicas das matérias de competência privativa da União, desde que esta os autorizasse expressamente a tanto, por meio da edição de uma lei complementar de delegação de competências (CF, artigo 22, parágrafo único). Isso, sim, traria para o nível estadual um temário de relevo, sobre o qual poderíamos esperar leis estranhas, mas também leis inovadoras. Ocorre que essa delegação, como não poderia deixar de ser, é discricionária da União; e o legislador federal não parece exatamente ávido por transferir (ainda que parcial e temporariamente) competência legislativa aos estados. Desse modo, atualmente apenas a Lei Complementar nº 103, de 2000, delega alguma competência legislativa, autorizando o legislador regional a instituir piso salarial das categorias que não tenham tal direito assegurado em lei federal. Perde-se, assim, importante oportunidade de tentar um verdadeiro experimentalismo institucional, de deixar que os estados tentem, acertem, errem, mas que legislem, inclusive por meio de experiências que podem depois influenciar os demais e o próprio nível federal.

Como se não bastasse, a tendência não é de haver melhora em relação à concentração de competências legislativas no âmbito da União. Nada indica um movimento de delegação de competências novas da União para os estados. Em relação à reforma constitucional, é sintomático o caso da Emenda Constitucional nº 115, de 2022: ao mesmo tempo em que “criou” (positivou) um novo direito fundamental (a proteção de dados pessoais), também atribuiu a competência legislativa na matéria privativamente à União, praticamente proibindo as assembleias de disporem sobre o tema, e inclusive invalidando ou revogando eventuais leis estaduais que tratavam do assunto, mesmo que de forma mais protetiva…

Diante disso, é preciso concordar com Alexandre de Moraes, para quem o melhor caminho seria

“(…) a edição da emenda constitucional com a migração de algumas competências definidas atualmente como privativas da União para o rol de competências remanescentes dos Estados-membros e outras para as competências concorrentes entre União e Estados-membros, para que nesses assuntos, as peculiaridades regionais sejam consideradas” [11].

Uma tentativa dessa espécie já ocorreu, aliás, com a apresentação da PEC nº 47, de 2012. Sintomaticamente a única a ser apresentada pós-1988 por iniciativa das assembleias legislativas (CF, artigo 60, III) [12], essa proposição visava a redistribuir competências privativas da União para o âmbito da legislação concorrente, autorizando que os Estados criassem, por conseguinte, normas específicas sobre temas como trânsito e direito processual, a par das normas gerais da União que viessem a ser editadas sobre o assunto. Foi apresentado substitutivo pelo relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (o então senador, hoje ministro do TCU, Antonio Anastasia), o qual podava alguns excessos da proposta, mas ela veio a ser arquivada ao final da legislatura, sem que tenha sido sequer colocada em votação no Plenário do Senado Federal… Por enquanto, ainda não há movimento concreto pela reapresentação do tema, embora algumas assembleias tenham-se animado a elaborar uma nova minuta para ser submetida novamente ao processo de tramitação [13].

É certo que, ao longo dos trinta e cinco anos da Constituição, os estados também receberam dádivas federais — especialmente em matéria financeira. Isso não apaga, porém, o déficit de atribuições legislativas que assola o nível estadual. Ao longo desses trinta e cinco anos de vigência da Constituição, quantas ideias boas não deixaram de ser geradas, e quantas ideias ruins não foram testadas e descartadas, pela tímida competência legislativa estadual? Se somos mesmo uma Federação, e se há uma conexão entre poder local/regional e democracia [14], então precisamos conversar urgentemente sobre como fortalecer as competências legislativas dos Estados, nem que essa seja uma agenda para os próximos trinta e cinco anos de vigência da Constituição de 1988.


[1] TOMIO, Fabrício Ricardo Limas; ORTOLAN, Marcelo Augusto Biehl. O sistema de repartições das competências legislativas da Lei Fundamental Alemã após a reforma federativa de 2006 em perspectiva comparada com o Estado Federal Brasileiro. Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 38, 2014, p. 98.

[2] Idem, ibidem, p. 99.

[3] Cf. STF, Pleno, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.060/SC, Relator Ministro Luiz Fux, DJe de 04.05.2015.

[4] Cf. RAMOS, Elival da Silva. Autonomia do Estado-membro no Federalismo Brasileiro. In: CAGGIANO, Monica Herman; RANIERI, Nina (orgs.). As Novas Fronteiras do Federalismo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, p. 170.

[5] ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2013, p. 85.

[6] RAMOS, Elival da Silva. Op. Cit., p. 170.

[7] A título de exemplo, cf. STF, Pleno, ADI nº 2.995/PE, Relator Ministro Celso de Mello, DJe de 28.09.2007.

[8] Nesse sentido: SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 292.

[9] MORAES, Alexandre de. Federação brasileira – necessidade de fortalecimento das competências dos Estados-membros. In: Liberdade e Cidadania, ano II, n. 7, janeiro/março de 2010, p. 17.

[10] Cf. MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro; COUTO, Monica Bonetti. O Federalismo Brasileiro. In: RAMOS, Dircêo Torrecillas. O Federalista Atual. Belo Horizonte: Arraes, 2013, p. 491.

[11] MORAES, Alexandre de. Op. Cit., p. 18.

[12] “Esse poder – previsto inicialmente no art. 90 da Constituição Republicana de 1891 – hoje é previsto no inciso III do art. 60 da CF. José Afonso da Silva relatava que essa possibilidade (art. 60, III) jamais havia sido usada, em toda a história republicana . Todavia, em 2012, foi apresentada no Senado Federal a PEC nº 47, subscrita por diversas Assembleias Legislativas, e que se propõe a, entre outras alterações, modificar as competências federativas para fortalecer o poder dos Estados-membros. Trata-se da única PEC até hoje apresentada por meio dessa iniciativa.” (CAVALCANTE FILHO, João Trindade. Processo Legislativo Constitucional. Salvador: JusPodivm, 2023, p. 232).

[13] Registre-se, nesse sentido, a criação recente, no âmbito da União Nacional dos Legisladores e Legislativos Estaduais (Unale), do Colegiado Permanente de Presidentes das Comissões de Constituição e Justiça, o qual também pretende provocar as assembleias a debaterem uma minuta de PEC semelhante à citada PEC nº 47, de 2012.

[14] Cf. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 181.

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