Opinião

Da tenaz resistência do prequestionamento como óbice ao recurso especial

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11 de novembro de 2023, 13h21

Reputo o artigo 1.025 do Código de Processo Civil um dispositivo efetivamente preocupado com o constante descaso dos tribunais de segundo grau no exame da legislação federal discutida no processo. A discussão sobre a interpretação da lei pode estar sendo enfrentada pelas partes desde a petição inicial ou da contestação, mas, geralmente, a decisão a ela não faz referência, deixando, pois, de ensejar o atendimento do prequestionamento, que é uma das exigências para o conhecimento dos recursos especial e extraordinário, que não se alcança somente com a atividade da parte, dependendo da resposta do Judiciário.

A dificuldade de se conseguir ver expresso no julgado o tema jurídico foi suprida com muita criatividade com a interposição de especial apontando para a ofensa ao artigo 535, II, do Código de Processo Civil de 1973 (atual artigo 1.022, II), de modo que se passou a entender ofendido o artigo que dispunha sobre o cabimento dos embargos de declaração que, não tendo sido sanada a omissão que nele se apontava, acabou não sendo corretamente aplicado, pois deveria ter trazido à decisão a consideração o artigo de lei que deveria ter sido interpretado, mas não o foi.

A utilização desse mecanismo que, empiricamente, acredito seja o que leva ao maior número de especiais acolhidos, importa em um inconveniente de ordem prática, pois, tendo sido violado o artigo 1.022, II, da lei de processo civil, se deve reconhecer a nulidade do julgamento dos embargos no tribunal recorrido, baixando-se os autos para sua nova apreciação pelo mesmo tribunal. Tal resultado é correto, uma vez que os dispositivos que não foram examinados não podem ser vistos como ofendidos. A violação é, pois, ao artigo 1.022, II, e não aos artigos que se pretendia fossem considerados pela decisão.

O Código de Processo Civil atual trouxe ao nosso sistema uma regra para incidir exatamente sobre a questão do prequestionamento. Trata-se do artigo 1.025, segundo o qual “consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade”. Admitiu-se, dessa forma, o prequestionamento ficto, vencendo-se, assim, a resistência em se enfrentar no julgamento dos embargos o direito pertinente ao caso, segundo a avaliação do recorrente. Poderia ser suprida a omissão no julgamento dos embargos, examinando-se a questão posta. Aí já não seria ficto o prequestionamento, seriam indicados os artigos que teriam sido maltratados, sempre segundo o recorrente. Todavia, se o tema jurídico continuar a não aparecer no julgado, tem lugar o prequestionamento ficto, de vez que a omissão não foi sanada, mas considera-se a questão não abordada como constante do acórdão, permitindo, pois, o recurso pela ofensa do dispositivo não considerado.

Recebi a introdução dessa regra no Código de Processo Civil com um entusiasmo juvenil e, devo confessar, como muita precipitação. Julgava que acabaria o especial por ofensa, na época, ao artigo 535, evitando-se a volta dos autos à origem, de vez que já se passaria a enfrentar, no Superior Tribunal de Justiça, os artigos que não foram incluídos no acórdão, como exatamente dizia a nova lei (consideram-se incluídos). Meu entusiasmo levou-me a escrever o artigo “O adeus ao art. 535 do CPC/73” (Tribuna do Direito, n. 281, pág. 14). Logo vi, porém, a sistemática não dar em nada.

Nesse sentido, em nome da não supressão de instância, que penso não existir, dado que a matéria deduzida nos embargos já deve estar nos autos, por não serem esses sede para inovação, como também para que não se ofendesse o contraditório, apesar de o recorrido ser intimado para apresentar contrarrazões ao recurso especial, passou-se a exigir, nos casos em que se tencionava valer-se do quanto prevê o artigo 1.025, fosse alegada também a ofensa ao artigo 1.022, de modo que o recurso, em sendo acolhido, implica a anulação do acórdão proferido nos embargos, determinando-se seu novo julgamento.

A jurisprudência logo se fez sólida nesse sentido, como se verifica, entre outros, no julgamento do agravo interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.187.992, com a relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, do qual se extrai o seguinte ilustrativo texto:

“Quanto à alegada derrogação das Súmulas n. 282/STF e n. 211/STJ, importa ponderar que o disposto no art. 1.025 do CPC/15 estabeleceu perante o STJ o prequestionamento ficto, anteriormente já admitido pelo STF por meio da Súmula n. 356.
Para configurar-se o prequestionamento ficto, entretanto, é necessário que a Corte de origem tenha sido provocada a se manifestar por meio de razões ou contrarrazões e embargos de declaração, quedando inerte, bem como apontado, no mesmo recurso, violação ao art. 1.022 do CPC vigente.”

Desalentado com a arremedo a tão boa ideia do legislador, conclui sobre o assunto, no artigo “A destruição do sentido do artigo 1.025 do Código de Processo Civil” (ConJur, 15/02/2022), que “a interpretação criada pelo STF, de outro lado, ofende o princípio da economia processual, pois a consideração desde logo da matéria de fundo agilizaria o andamento do processo, evitando a volta dos autos para o segundo grau e, possivelmente, a interposição de um novo especial quando a questão fosse entendida nos embargos em sentido contrário dos interesses do recorrente. Desse modo, a posição do Tribunal Superior elimina o prequestionamento ficto, deixando de ter sentido até a discussão sobre os preceitos não considerados, uma vez que, a ser esse o sentido da regra, bastaria, tal como antes ocorria, alegar a ofensa ao artigo dos declaratórios”.

Talvez porque mal resolvida a questão, sem dúvida alguma, surgiu mais um contratempo no conhecimento de recurso que apontasse para o artigo 1.025, mas indicasse como violado o artigo 1.022, II, do Código de Processo Civil.

Contra o julgamento monocrático da ministra Nancy Andrighi (AREsp 2.309.531, julgamento em 10/04/2023), foi interposto agravo interno uma vez que a decisão tratara da contrariedade ao artigo 1.022, II, do Código de Processo Civil, dizendo que não houve a indicação expressa de obscuridade, omissão e contradição, aplicando, então, a súmula 284 do STF, que trata da deficiente fundamentação.

Enfatizou-se, no recurso, que ao assim concluir, ou seja, apontando para a falta de indicação expressa dos vícios que autorizam os declaratórios, não se deu conta a decisão da razão de haver se apontado a ofensa ao artigo 1.022 do Código de Processo Civil. Explicitou-se, então, que a indicação do artigo 1.022 deu-se para atender e respeitar o entendimento que esta Corte Superior tem sobre o artigo 1.025 do Código de Processo Civil. Indicou-se, nessa linha, que, nos acórdãos da apelação e dos embargos de declaração, os dispositivos legais indicados como ofendidos não foram sequer referidos nos julgados e apesar de se tentar suprir a omissão do acórdão tomado na apreciação do apelo valendo-se dos embargos declaratórios, tanto não surtiu o esperado efeito, pois os embargos não foram acolhidos, simplesmente se negando a existência de omissão ou o atendimento do sentido e razão de ser dos declaratórios.

Aduziu-se, outrossim, que a literalidade do artigo 1.025 do Código de Processo Civil permitiria que se considerasse prequestionado o dispositivo suscitado “ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados”. Deixou-se claro que havia no acórdão da apelação omissão que persistiu ainda depois da interposição e do julgamento dos declaratórios, de modo a se apresentar a possibilidade de aplicação do artigo 1.025 antes citado, apreciando-se a alegação de ofensa ao dispositivo constante dos embargos, mas não apreciado pela câmara julgadora. Em razão de a omissão estar no não enfrentamento dos artigos que se adequavam à previsão do artigo 1.025 para que fossem vistos como ofendidos, entendeu-se, assim, ao invés de desde logo enfrentar o fundo, questionar a decisão em si.

A decisão que veio a ser proferida, totalmente alheia ao entendimento da Corte quanto ao artigo 1.025 do Código de Processo Civil, persistiu na sua receita, ignorando o sentido que ela própria conferiu ao artigo 1.025 (AgInt no AREsp 2.309.531, julgado em 29/05/2023). Mais gravemente, reclamou o acórdão da falta de melhor demonstração da ofensa aos artigos apontados como de prequestionamento ficto. Concluiu-se, então, que “não poderia ser conhecido o recurso tendo em vista que os dispositivos legais indicados como violados não foram objeto de expresso prequestionamento pelo Tribunal de origem”, como o que se negou o sentido do artigo 1.025, como também se desprezou a própria engenharia criada para aniquilar a sua eficácia.

Difícil se conseguir encontrar um caminho com alguma segurança sem que surja o fantasma da jurisprudência defensiva.

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