Opinião

Acórdão que julga REsp tirado contra pronúncia interrompe prescrição?

Autores

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado mestre e doutor em Direito Penal pela USP professor de Processo Penal na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca conselheiro federal da OAB e ex-presidente do IBCCrim.

  • Renato Marques Martins

    é advogado mestre em Direito Penal pela USP diretor do IDDD e sócio do Toron Torihara e Cunha advogados.

13 de dezembro de 2023, 7h02

Como é sabido, a jurisprudência dos tribunais superiores é unânime no sentido de a interposição de recursos de natureza extraordinária não impedir o julgamento pelo júri [1]. Os tribunais locais, como o TJ-SP, com raríssimas exceções [2], seguem tal jurisprudência [3].

Embora discordemos desse entendimento, a fundamentação que o sustenta repousa no fato de a decisão de pronúncia produzir efeitos diversos dos que resultam de uma sentença de mérito condenatória, contra a qual, é igualmente cediço, os recursos de natureza extraordinária têm efeito suspensivo. Segundo o STJ [4], com amparo na doutrina [5], a pronúncia tem natureza processual, sendo uma decisão interlocutória mista, não acobertada pelo manto da coisa julgada, posto que o Tribunal do Júri pode decidir contra aquilo que nela ficou assentado. Daí por que os recursos interpostos contra ela não impediriam a realização do julgamento pelo júri.

Alberto Zacharias Toron

Discordamos de tal posição mais pelo aspecto prático do que pela dogmática processual penal. O artigo 421 do CPP é expresso: “Preclusa a decisão de pronúncia, os autos serão encaminhados ao juiz presidente do Tribunal do Júri”. E onde a lei é clara, não se admite interpretação. Preclusão, aqui, significa tornar-se a decisão de pronúncia definitiva, imutável.

Se quaisquer das partes recorre da pronúncia, ela ainda não precluiu e, portanto, pode ser mudada pelo tribunal ad quem. É fato que o § 2º do artigo 584 atribui efeito suspensivo ao recurso em sentido estrito interposto conta a decisão de pronúncia de primeira instância: “O recurso da pronúncia suspenderá tão-somente o julgamento”. O que então justifica não ser assim na hipótese da interposição de recursos como o especial e o extraordinário contra acórdãos dos tribunais locais que mantém a pronúncia? Nada.

E aí que está o aspecto prático da questão: vira e mexe os tribunais superiores, quer em REsp, quer em RE, alteram a pronúncia, como se deu recentemente no REsp nº 1.991.574, no qual se desclassificou a imputação de dolo eventual para homicídio culposo.

Pergunta-se: e se o julgamento do júri já tivesse sido realizado? Seria um desperdício enorme de tempo e tão parcos recursos púbicos, especialmente do Judiciário. Sem contar o constrangimento sem tamanho para o acusado, submetido a um julgamento popular, quiçá provocando rumores em uma cidade pequena, no qual poderia até mesmo ter sido condenado, e de acordo com a alínea e do inciso I do artigo 492 do CPP, ter sido imediatamente preso, caso sua pena fosse igual ou superior a 15 anos, ou mesmo no caso de penas menores, segundo inclina-se a decidir o STF. [6]

De toda forma, considerando-se a jurisprudência que, repita-se, é pacífica no sentido de se poder realizar o julgamento pelo tribunal do júri na pendência dos recursos especial e extraordinário, é evidente que a partir do julgamento do recurso em sentido estrito pelo tribunal local, o prazo prescricional volta a correr.

Daí a questão posta neste artigo: interposto recurso especial — ou extraordinário — contra o acórdão do tribunal local que manteve a pronúncia, a decisão do STJ que julga esse recurso pode ser interpretada como uma “decisão confirmatória da pronúncia” prevista no artigo 117, III, do CPP, e, portanto, interromper novamente o curso da prescrição?

De início, é de se consignar que as causas de interrupção da prescrição, por ampliarem o poder punitivo estatal, devem ser interpretadas restritivamente e não podem ser ampliadas analogicamente (STF, HC nº 69.859, rel. Min. Celso de Mello, DJ 29.09.06).

Não obstante, recente decisão do Tribunal do Júri de Guarulhos entendeu que sim, interrompe. Segundo a leitura que fez do artigo 117, III, do CPP [7], o acórdão que julgou o recurso especial tirado contra a manutenção da decisão de pronúncia pelo tribunal local deveria ser entendida como uma “decisão confirmatória da pronúncia”: “para submeter o réu ao julgamento pelo Tribunal do Júri, ou seja, para o Estado poder exercer seu jus puniendi, teve-se que aguardar a preclusão da decisão que confirmou a pronúncia (artigo 422 [sic], CPP); contudo, tal data foi postergada até o último recurso apresentado, no caso, o agravo regimental ao recurso extraordinário com agravo” [8].

A decisão se apoiou no acórdão proferido pelo STF que equiparou o acórdão de segundo grau que mantém a condenação, seja reduzindo ou mantendo a pena de primeira instância, ao acórdão condenatório recorrível previsto no citado art. 117, IV, do CPP, como causa interruptiva da prescrição [9]. Citou ainda o quanto decidido pelo STJ no HC nº 97.079: “decisão desta Corte que manteve a sentença de pronúncia é o termo inicial para o cômputo da prescrição” [10].

Levada a questão por meio de Habeas Corpus ao TJ-SP, este, por maioria de votos, decidiu na mesma linha da decisão de primeira instância e acrescentou: “Como o Estado não está inerte, já que os recursos são julgados, não se pode falar em prescrição, interrompida para que seja observado o devido processo legal” [11].

Contudo, o Estado ficou inerte sim, porque, como visto, o juiz de primeiro grau poderia ter realizado o julgamento na pendência do recurso especial. Aliás, no caso concreto, o diligente Ministério Público provocou o magistrado para que realizasse o plenário. Não obstante reafirmando a jurisprudência sobre a inexistência de efeito suspensivo dos recursos especiais que discutem acórdão confirmatório de pronúncia, o magistrado resolveu aguardar o seu julgamento. Ora, isso é inércia.

O STJ, por sua vez, e por maioria de votos, concedeu ordem de habeas corpus para reconhecer a prescrição. O ministro Ribeiro Dantas, relator do writ, embora citando outro precedente do STF [12], também decidiu na mesma linha da decisão de primeira instância, no sentido de se reconhecer que, tal como o acórdão que confirma sentença condenatória, por revelar pleno exercício da jurisdição penal, o acórdão que julgou o recurso especial defensivo também interromperia a prescrição. Para o ministro Ribeiro Dantas, decidir o contrário premiaria o cidadão que mata uma pessoa e contrata advogados para recorrerem da pronúncia em busca da prescrição.

Ocorre que, como visto, e segundo a própria jurisprudência do STJ, a decisão de pronúncia não tem a mesma natureza de um acórdão condenatório, não surtindo os mesmos efeitos. Em assim sendo, não há uma mesma “lógica interpretativa” — expressão utilizada pelo ministro relator — que autorize empregar tal precedente a decisões tão distintas.

A divergência foi inaugurada pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, para quem a única decisão de tribunal superior que pode ser interpretada como “confirmatória da pronúncia” é aquela que dá provimento para restabelecer decisão de primeira instância que, originariamente, havia pronunciado o réu, mas foi reformada pelo tribunal local. [13]

Acrescentamos nesse rol o acórdão do STJ ou STF que, provendo recurso acusatório, pronuncia o acusado pela primeira vez. Nesse sentido, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca destacou ainda que, no caso em análise, o recurso especial defensivo versava exclusivamente sobre indeferimento de prova e sobre reunião de processos por continência, e não sobre a pronúncia em si. Foi seguido pelos Ministros Messod Azulay e Joel Ilan Paciornik, sendo certo que a ministra Daniela Teixeira não votou por não ter presenciado a sustentação oral.

Frise-se que o voto vencedor no STJ foi exatamente na mesma linha do voto vencido do desembargador Alex Zilenovski, do TJ-SP, para quem: “… o improvimento do recurso especial, admitido parcialmente, como no presente caso, e que não analisou o mérito e as provas produzidas, não poderia ser considerado como confirmatório da pronúncia e, portanto, não é apto a criar nova causa interruptiva da prescrição”.

Em síntese, para a 5ª Turma do STJ, só interrompem a prescrição acórdãos daquele Tribunal que restabelecem decisão de pronúncia de primeiro grau que havia sido reformada por tribunal local. Hipótese à qual acrescentamos acórdãos de tribunais superiores que, provendo recurso acusatório, pronunciam o acusado pela primeira vez. Nos demais casos, de acórdãos proferidos em recursos que não discutem a pronúncia em si, o entendimento emanado da 5ª Turma do STJ é de que não interrompem a prescrição, não podendo serem equiparados a uma “decisão confirmatória da pronúncia”, tal como previsto no artigo 117, III, do CPP.

Por fim, pesa ouvir que atividade recursal defensiva seria responsável pela prescrição. Os advogados são os únicos que cumprem os prazos processuais. Publicada a intimação no diário oficial, o prazo é fatal. Diferentemente dos juízes, para quem os prazos previstos no ordenamento são absolutamente desprezados sem qualquer punição. Não é atacando a atividade advocatícia ou restringindo os recursos defensivos que se evitará a prescrição, mas sim aperfeiçoando o funcionamento do Poder Judiciário.

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[1]  STJ: RHC nº 22.317, rel. Min. Og Fernandes, DJe 15.06.09; REsp nº 197.071, rel. Min. Vicente Cernichiaro, DJ 23.08.99; REsp nº 1.0121.87, rel. Min. Maria Thereza, DJ 20.10.08; e RCD no HC nº 342.512, rel. Min. Sebastião Reis Jr, DJe 18.1.15.  STF: HC nº 130.314, rel. Min. Teori Zavascki, DJe 05.012.16; ED no AgRg no HC nº 169.641, rel. Min. Gilmar Mendes, DJE 03.09.1901.

[2] MS nº 2059858-25.2023.8.26.0000: “Ainda que seja possível a realização da sessão plenária com a pendência de julgamento do recurso especial, as peculiaridades do processo de origem recomendam por enquanto, o sobrestamento do feito. Decisão de pronúncia não está preclusa e pode ser reformada, com o eventual provimento do recurso especial, o que pode modificar toda a imputação contra o acusado”, Rel. Des. Marcos Correia, j. 24.04.23.

[3] TJSP: Reclamação nº 0074692-19.2013.8.26.0000, rel. Des. Fernando Garcia, j. em 18.07.13.

[4] RHC nº 22317, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 15.06.09

[5] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 1995, p. 527.

[6] RE nº 1.235.340, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, no qual 05 (cinco) ministros já votaram no sentido de que a soberania dos veredictos do Tribunal do Juri autoriza a imediata execução da pena.

[7] “O curso da prescrição interrompe-se: … III – pela decisão confirmatória da pronúncia”.

[8] Ação Penal nº 0089559-29.2010.8.26.0224, j. 31.03.23.

[9] Ag. Reg. No RE com Agravo nº 1.118.699, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 29.03.19.

[10] Rel. Min. Og Fernandes, j. 19.12.09.

[11] HC2077440-38.2023.8.26.0000, Rel. Des. Francisco Orlando, j. 22.05.23.

[12] HC nº 176.473, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 10.09.20.

[13] Citou o seguinte precedente: AgRg no AREsp nº 1.778.785/SE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 08.03.21

Autores

  • é advogado criminalista em São Paulo, mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, conselheiro federal da OAB, professor de Processo Penal da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e da Comissão de Prerrogativas Profissionais do Conselho Federal da OAB.

  • é advogado do Toron, Torihara e Szafir Advogados. Mestrando em Direito penal na USP.

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