Paradoxo da Corte

A jurisprudência do STJ e a desnecessidade de prequestionamento pelo recorrido

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

10 de novembro de 2023, 8h00

A dinâmica do direito, sobretudo na esfera do contencioso, suscita constantemente problemas inusitados e complexos, que merecem atenção dos advogados e, sobretudo, dos nossos tribunais.

​Abordo na coluna de hoje uma questão que não estava bem equacionada nos domínios do STJ (Superior Tribunal de Justiça), atinente à desnecessidade de o recorrido buscar o prequestionamento no âmbito do recurso especial.

Spacca

A 6ª Turma, num julgamento de 2018, entendeu que o tribunal não poderia desprover o recurso com base num fundamento deduzido pela parte recorrida — arguição de prescrição —, uma vez que o acórdão recorrido não tinha enfrentado esta matéria e, portanto, dada a ausência de prequestionamento, havia óbice para que o STJ acolhesse a alegação de prescrição.

Irresignada, a recorrida opôs embargos de divergência, invocando como paradigma um precedente da 2ª Seção, nos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 595.742/SC, com voto vencedor da ministra Maria Isabel Gallotti), que assentou o seguinte entendimento:

“Alegados pela parte recorrida, perante a instância ordinária, dois fundamentos autônomos e suficientes para embasar sua pretensão, e tendo-lhe sido o acórdão recorrido integralmente favorável mediante a análise de apenas um deles, não se há de cogitar da oposição de embargos de declaração pelo vitorioso apenas para prequestionar o fundamento não examinado, a fim de preparar recurso especial do qual não necessita (falta de interesse de recorrer) ou como medida preventiva em face de eventual recurso especial da parte adversária.
Reagitado o fundamento nas contrarrazões ao recurso especial do vencido, caso seja este conhecido e afastado o fundamento ao qual se apegara o tribunal de origem, cabe ao STJ, no julgamento da causa (Regimento Interno, artigo 257), enfrentar as demais teses de defesa suscitadas na origem.”

Isso significa que a alegada divergência, exposta nas razões recursais pelo embargante, dizia respeito à extensão da devolutividade do recurso especial, bem como na necessidade ou não do prequestionamento de fundamento deduzido em sede recursal no tribunal de origem que, mesmo não tendo sido enfrentado, não alteraria o resultado favorável já alcançado pela parte vencedora.

Pois bem, reconhecendo a existência de divergência, a Corte Especial, no julgamento dos Embargos de Divergência nº 1.144.667/RS, da relatoria do ministro Félix Fischer, ao conhecer e prover o recurso, decidiu que:

“Considera-se prequestionada a questão levantada nas instâncias ordinárias perante o Tribunal a quo e reagitada em contrarrazões de Recurso Especial, ainda que não apreciada na origem, quando acolhida sua pretensão por fundamento outro igualmente suscitado, não havendo necessidade, nessa hipótese, de oferecimento de embargos declaratórios para provocar expressa manifestação sobre o tema levantado, por manifesta ausência de interesse.”

Todavia, mais recentemente, a 1ª Turma do STJ, abstraindo-se desse importante precedente, por ocasião do julgamento do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 227.767/RS, desconsiderou os fundamentos expostos nas contrarrazões de um recurso especial pela ausência de prequestionamento da matéria, visto não ter sido ela analisada pelo tribunal de origem.

Ora, tal julgamento, a meu ver, bem demonstra as dificuldades para a interpretação e aplicação uniforme do direito, mesmo intra muros, isto é, na órbita do próprio STJ. Ademais, esta constatação implica, por certo, insegurança e imprevisibilidade.

Verifica-se que a parte prejudicada opôs então os Embargos de Divergência no Agravo em Recurso Especial nº 227.767/RS, distribuídos à Corte Especial, sob a relatoria do ministro Francisco Falcão, invocando como paradigma, a evidenciar a divergência de entendimento, o acórdão proferido nos já mencionados Embargos de Divergência nº 1.144.667/RS, da lavra do ministro Félix Fischer.

Como bem destacado no respectivo voto condutor do ministro Francisco Falcão, “existem duas linhas de pensamento em rota de colisão no Superior Tribunal de Justiça, revelando-se de todo pertinente o recurso de embargos de divergência, em ordem a remarcar o entendimento que já havia sido proclamado no julgamento do paradigma invocado. Com efeito, rendendo vênias à C. 1ª Turma, o entendimento correto é o que considera toda a matéria devolvida à segunda instância apreciada quando provido o recurso por apenas um dos fundamentos expostos pela parte, a qual não dispõe de interesse recursal para a oposição de embargos declaratórios”.

Importa ressaltar que, sob a ótica da sucumbência, o recorrido não tem interesse em recorrer. Contudo, ao contra-arrazoar o recurso especial, nada o impede de suscitar novamente questões que não foram enfrentadas pelo acórdão recorrido, dentre elas, por exemplo, a arguição de prescrição.

E, por este motivo, a ratio decidendi do voto vencedor, trilhando tal raciocínio, ressalta que:

“A questão precisa ser analisada sob a perspectiva da sucumbência e da possibilidade de melhora da situação jurídica do recorrente, critérios de identificação do interesse recursal. Não se trata de temática afeta a esta ou aquela legislação processual (CPC/73 ou CPC/15), mas de questão antecedente, verdadeiro fundamento teórico da disciplina recursal. Só quem perde, algo ou tudo, tem interesse em impugnar a decisão, desde que possa obter, pelo recurso, melhora na sua situação jurídica.
Trata-se de lição consagrada na doutrina moderna. Transcrevo, exemplificativamente, os seguintes magistérios:
‘A fim de que possa o interessado socorrer-se do recurso, é fundamental que possa antever algum interesse na sua utilização, isto é, antever a possibilidade de o seu provimento levar à melhora de sua esfera jurídica. À semelhança do que acontece com o interesse de agir, é necessário que o interessado possa vislumbrar alguma utilidade na interposição do recurso, utilidade essa que somente possa ser obtida através da via recursal (necessidade). A fim de preencher o requisito ‘utilidade’, será necessário que a parte (ou o terceiro), interessada em recorrer, tenha sofrido algum prejuízo jurídico direto ou indireto em decorrência da decisão judicial ou ao menos que essa não tenha satisfeito plenamente a sua pretensão (uma vez que, sendo vencidos autor e réu, ambos terão interesse em recorrer). Em relação à ‘necessidade’, essa estará presente se, por outro modo, não for possível resolver a questão, alterando-se ou suplantando-se o prejuízo verificado’ (Marinoni, Luiz Guilherme; Arenhart, Sérgio Cruz; Mitidiero, Daniel. Curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. V. 2. São Paulo: Ed. RT, 2015, p. 516
‘Há interesse de recorrer quando o recorrente puder esperar, em tese, do julgamento do recurso, situação jurídica e pragmaticamente mais vantajosa que aquela decorrente da decisão impugnada e quando seja necessário usar as vias recursais para alcançar esse objetivo. Essa concepção, bastante abrangente, tem a vantagem de considerar haver interesse recursal não apenas quando o que se pediu não foi concedido, mas também quando, embora vencedora, a parte tenha, ainda assim, perspectiva concreta de melhora em sua situação jurídica. Trata-se de se demonstrar a presença do binômio ‘utilidade-necessidade’, à semelhança do que ocorre com o interesse processual, requisito processual de admissibilidade para o julgamento do mérito da causa (cf. artigo 485, VI, do CPC/2015)’ (Medina, José Miguel Garcia. Direito processual civil moderno. 2ª ed. rev., atual e ampl. São Paulo:Ed. RT, 2016, p. 1.276).
Portanto, a configuração do interesse recursal pressupõe a presença do binômio sucumbência e perspectiva de maior vantagem. Sem ele a parte simplesmente não consegue superar o juízo de admissibilidade recursal.”

Diante desta precisa fundamentação, a Corte Especial, secundando por unanimidade o voto do relator, conheceu e proveu os embargos de divergência, adotando, na conclusão, o entendimento do acórdão paradigma (EREsp nº 1.144.667/RS), ao considerar prequestionados os fundamentos deduzidos nas razões de apelação e desprezados no julgamento do respectivo recurso (favorável ao apelante), desde que, interposto recurso especial, sejam reiterados nas contrarrazões da parte vencedora.

E é exatamente por esta razão que o vencedor, no recurso de apelação, não tem interesse em recorrer (exatamente porque não sucumbiu), nem mesmo para opor embargos de declaração visando ao prequestionamento da matéria por ele arguida, mas não examinada pelo tribunal de origem.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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