Opinião

Enem 2023 e o cuidado de valorizar o cuidado

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10 de novembro de 2023, 11h23

Era uma vez, uma história tão comum a milhares de mulheres brasileiras que se dedicam diuturnamente ao cuidado — o cuidado de outros. Como nos ensina Françoise Vergès, “todos os dias, em todo lugar, milhares de mulheres negras, racializadas, ‘abrem’ a cidade. Elas limpam os espaços de que o patriarcado e o capitalismo neoliberal precisam para funcionar”. Infelizmente essa história, embora conhecida, parece ser ignorada ou tomada como um ruído de fundo na grande engrenagem geral da economia pátria.

Assim, é de todo relevante e de se exaltar o fato de que, recentemente, a questão da “economia do cuidado” foi a temática escolhida para redação do Enem de 2023. É um assunto que permeia de forma sensível e contundente o trabalho tão essencial desempenhado há anos por milhares de mulheres nos lares do mundo inteiro.

Os candidatos, em sua maioria jovens, tiveram que discorrer sobre os “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”, assunto extremamente impactante, mas pouco visualizado em livros ou redes sociais e muito menos tratado em rodas de conversas ou na mídia formadora de opinião. Aclarar essa temática para um público que se candidata à formação acadêmica profissional é um alento.

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Com efeito, a evolução das condições laborais e da infraestrutura social e normativa mínima para a existência do Trabalho Decente, perpassa pelo necessário diálogo social e inclusão dessas temáticas nos programas de ensino em todos os níveis. Para confirmar essa necessidade basta lembrar da Convenção nº 155 da Organização Internacional do Trabalho, que é expressa no seu item 14 que os Estados devem adotar medidas no sentido de promover, de maneira conforme à prática e às condições nacionais, a inclusão das questões de segurança, higiene e meio ambiente de trabalho em todos os níveis de ensino e de treinamento, incluídos aqueles do ensino superior técnico, médico e profissional, com o objetivo de satisfazer as necessidades de treinamento de todos os trabalhadores. Inegável que a obscuridade da realidade desses trabalhadores, com prevalência feminina, é um obstáculo a discussão das medidas essenciais para a melhoria estrutural e do meio ambiente vivenciado.

Promover a reflexão sobre essa questão em um momento tão essencial no histórico de desenvolvimento acadêmico e profissional de jovens e adolescentes — o Enem — invariavelmente deixará a marca ao longo de suas vidas e, espera-se, uma postura mais ativa para a melhoria dessa realidade.

De fato, o trabalho doméstico e de cuidados, tradicionalmente realizado por mulheres, é uma pedra angular na sustentação da vida cotidiana e, também, da economia global. No entanto, apesar de sua importância, é frequentemente desvalorizado e precarizado, refletindo desigualdades de gênero e raciais profundamente enraizadas.

O trabalho de cuidado, geralmente associado às tarefas de manutenção da casa e ao cuidado de crianças, idosos e pessoas doentes, muitas vezes não é reconhecido como um trabalho “produtivo” e, portanto, não é valorizado economicamente ou socialmente da mesma maneira, e isso, se torna mais acentuado devido às profundas desigualdades socioeconômicas e às heranças históricas, como o patriarcado e o legado da escravidão, que moldam as relações de trabalho.

Mas para falar sobre um tema que é tanto um reflexo de nosso passado quanto uma realidade persistente em nosso presente, não podemos esquecer que existe uma parcela da população ainda mais invisível, para não dizer opaca, que clama para ser enxergada com dignidade e respeito pela nossa sociedade: as empregadas domésticas, que em sua maioria são mulheres negras ou de grupos étnicos marginalizados.

Apesar de estarmos vivenciando uma nova era repleta de avanços tecnológicos, culturais, políticos e sociais, quando falamos sobre a economia de uma nação, raramente consideramos o trabalho que acontece nos bastidores, nos lares, cuidando da vida cotidiana. No Brasil, as empregadas domésticas são a espinha dorsal de muitas famílias, mas o seu trabalho permanece em grande parte invisível e desvalorizado.

O trabalho doméstico e de cuidado dessa categoria muitas vezes é visto como uma extensão da visão inadequada sobre “obrigações tradicionais” das mulheres, o que contribui para a sua desvalorização, refletindo em salários mais baixos e menos reconhecimento social para as trabalhadoras da área.

Atualmente, ainda existem muitas empregadas domésticas trabalhando na informalidade, sem contratos de trabalho ou direitos trabalhistas garantidos, o que as torna particularmente ainda mais invisíveis e vulneráveis a abusos e exploração.

No Brasil, o cenário da invisibilidade doméstica é uma questão complexa e profundamente enraizada na história e cultura do país. Após a abolição da escravatura no Brasil, o trabalho doméstico surgiu como uma das poucas opções para muitos ex-escravizados e suas descendências, especialmente mulheres, que não tinham acesso ao mercado de trabalho qualificado.

Sem alternativas, muitas dessas mulheres se sujeitaram a trabalhar por moradia e alimentação ou através de acordos informais como diaristas ou empregadas mensalistas, em uma variedade de funções como lavadeiras, cozinheiras e babás, as quais, apesar de demandarem alta especialização, não são juridicamente reconhecidas como espécieis profissionais distintas do gênero jurídico “trabalho doméstico” [1].

Ainda hoje, apesar de progressos legislativos, o país enfrenta formas contemporâneas de exploração laboral, que afetam desproporcionalmente as camadas mais vulneráveis da população.

Embora existam avanços recentes na legislação brasileira, como a Lei Complementar 150 de 2015, a PEC das Domésticas (Emenda Constitucional 72/2013) e a Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista), que ampliou os direitos das trabalhadoras domésticas, ainda há desafios significativos na implementação e fiscalização e garantia desses direitos.

De fato, após décadas e décadas de lutas por direitos, a própria Lei Complementar 150/2015 criou, em desfavor da categoria, outra espécie de trabalhadoras domésticas, as diaristas, que seguem desprotegidas juridicamente. Ainda, optou-se por não tipificar os diversos tipos de trabalho realizados no ambiente doméstico. Desconsiderou-se, assim, que o trabalho das cuidadoras (de idosos, crianças e pessoas com deficiência) é distinto daquele das trabalhadoras que realizam o trabalho de limpeza e conservação da casa. Ao negar que o trabalho doméstico deve ser definido conforme o tipo de trabalho realizado, exclui-se igualmente a possibilidade de limitação das atividades a serem realizadas no ambiente doméstico. Segue-se, então, infelizmente, com a lógica de que o trabalho doméstico deve contemplar tudo aquilo que uma mulher preta conseguir fazer no horário estipulado pela patroa.

Além disso, somente em 2023 [2], no Brasil, foram resgatados mais de 1.443 trabalhadores do trabalho análogo à escravidão, incluindo aquelas em situação de escravidão doméstica. Atrelado à falácia racista existente por trás da ideia de que trabalhadoras domésticas são “como se fossem da família” e, portanto, não precisam ter acesso a direitos trabalhistas [3], a prática de morar no local de trabalho cria uma dependência que dificulta a saída de condições abusivas, confundindo as fronteiras entre vida profissional e pessoal e frequentemente resultando em disponibilidade constante sem compensação adequada.

A desigualdade racial e socioeconômica intensifica a situação, refletindo a escassez de oportunidades educacionais e profissionais para pessoas negras e de baixa renda, perpetuando um ciclo de pobreza e exclusão e mantendo trabalhadores em condições de precariedade.

Com a pandemia, muitas dessas trabalhadoras perderam seus empregos ou tiveram que enfrentar condições de trabalho ainda mais precárias, enfrentando a exposição ao vírus sem proteções adequadas. Uma simples pesquisa no site do IBGE oferece uma visão sobre o impacto exato, mostrando a porcentagem de empregadas domésticas que foram afetadas pela perda de trabalho e as mudanças no mercado após a crise sanitária.

No entanto, segundo Luiza Batista Pereira, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad): “A empregada doméstica sempre é invisibilizada, não só agora na pandemia”. Ressalta ainda que, “a situação das trabalhadoras domésticas no Brasil nunca foi uma situação confortável. Primeiro porque temos essa herança escravocrata, o Brasil colônia ainda nos dias atuais só que de uma forma diferente. São 85 anos de luta, 48 anos que conquistamos o primeiro direito, e ainda hoje esses direitos não são respeitados da forma como devem” [4].

Trabalhadoras domésticas e negras lutam contra a maré da exploração e da informalidade. Muitas vivem realidades de abuso e negligência, onde a falta de direitos trabalhistas, educação e liberdade social é a norma. Enfrentam jornadas desumanas sem reconhecimento legal, sujeitas à violência e ao isolamento. A falsa noção de pertencimento à família de seus empregadores mascara a dura realidade do trabalho muitas vezes análogo à escravidão.

O “quase da família” ou “como se fosse da família” encobre uma verdade incômoda: a exploração muitas vezes disfarçada de intimidade. Trabalhadoras domésticas vivem em um limbo, no qual o profissionalismo é trocado por uma falsa familiaridade, tornando-os reféns de um ciclo de disponibilidade constante e compensação injusta. Essa falsa intimidade fecha portas para negociações justas e abre janelas para abusos, em que o medo de romper laços silencia gritos por ajuda. Essa perspectiva desvaloriza o trabalho doméstico, barrando o caminho para sua merecida profissionalização.

Trabalhadoras nessas condições têm dificuldade em escapar da pobreza, pois são mal remuneradas e não têm acesso à educação e oportunidades de emprego que poderiam melhorar suas condições de vida.

A luta contra essa dinâmica comum e injusta exige vigilância, denúncia e ação corajosa. Medidas emergenciais e apoio continuado são vitais para resgatar e reintegrar essas mulheres, garantindo-lhes dignidade, acesso à justiça, saúde e oportunidades de reintegração na sociedade e no mercado de trabalho. Somente com uma frente unida de fiscalização e políticas públicas efetivas podemos começar a reparar essas vidas despedaçadas e prevenir futuras explorações.

E há que se reconhecer que esse grave cenário relativo ao trabalho escravo doméstico e de precarização dos direitos das trabalhadoras do cuidado é fruto de uma ideologia racista e sexista, que encontra meios de manter essas mulheres aquém da teia protetiva de direitos trabalhistas. Teia esta que possibilita àqueles que a acessam, crescimento individual e coletivo, ocupação de espaços tradicionalmente embranquecidos, acesso à educação, saúde, alimentação.

A negação sistêmica de direitos é um dos efeitos do “racismo por negação”, de que sempre nos falou Lélia Gonzalez [5] e que precisa ser combatido por toda sociedade. Optar pelo silenciamento é, como indica o verbo, uma escolha.

A promoção da visibilidade e valorização do trabalho de cuidado no Brasil necessita, com urgência, passar por uma série de mudanças estruturais, incluindo a implementação efetiva de legislação trabalhista, a promoção da igualdade de gênero e raça, a educação e a mudança cultural, além de uma maior valorização social do trabalho que sustenta as bases do cotidiano e do bem-estar das famílias. Ora, não há vida produtiva sem que exista alguém para realizar o trabalho doméstico e de cuidado.

As trabalhadoras domésticas são pilares essenciais na estrutura social do Brasil, e é hora de dissipar a invisibilidade que envolve seu trabalho. Valorizá-las significa avançar em direção a uma sociedade mais justa e equitativa.

Cada um de nós tem um papel a desempenhar: como empregadores, legisladores, ou simplesmente como cidadãos conscientes. Ao reconhecermos a importância do trabalho de cuidado, fortalecemos a própria fundação de nossa própria realidade em comunidade.

Nesse contexto de invisibilidade do trabalho de cuidado, um aplauso para o Enem 2023 que trouxe à tona e levou o assunto para discussão e análise de um público jovem e promissor, gerando um movimento explosivo de opiniões no seio de uma sociedade que permanecia inerte e de olhos ainda cerrados para uma realidade há anos existente.

A esperança ressurge para que seja lançada uma lente de aumento na invisibilidade das mulheres, especialmente negras.

Este artigo é apenas uma reflexão inicial, mas centrada na ideia de que os direitos sociais não devem ser nunca esquecidos e que a sua constante reconfiguração diante dos contextos da contemporaneidade não apenas ajuda na retomada de seu significado original, como permite colocar em majorado relevo o contraste com os problemas históricos, especialmente para grupos de trabalhadores mais vulneráveis – passou da hora de toda a sociedade ter a atenção e o cuidado necessário para quem promove o cuidado e, portanto, confere sustentáculo à vida em sociedade!


[1] Santana, Raquel Leite da Silva. As cuidadoras na sala de visita: regulamentação jurídica do trabalho de cuidado à luz da trilogia de Carolina Maria de Jesus. Editora Dialética, 2022.

[2] https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2023/junho/mte-resgatou-1-443-trabalhadores-de-condicoes-analogas-a-escravidao-em-2023

[3] RAMOS, Gabriela Pires. “Como se fosse da família”: o trabalho doméstico na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. 2018. 170 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.

[4] https://www.brasildefators.com.br/2021/05/04/a-empregada-domestica-sempre-e-invisibilizada-nao-so-agora-na-pandemia

[5] GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa… Diáspora Africana: Filhos da África, 2018,… Leia mais em https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/o-racismo-brasileiro-na-obra-de-lelia-gonzalez/.

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