Opinião

Por uma Defensoria Pública do povo

Autores

  • Diogo Bacha e Silva

    é doutor em Direito pela UFRJ mestre em Direito pela FDSM (com estágio de pós-doutorado em Direito na UFMG) e membro do OJB/FND e da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano.

  • Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

    é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG mestre e doutor em Direito (UFMG) com estágio pós-doutoral com bolsa da Capes na Università degli Studi di Roma III e bolsista de produtividade do CNPq (1D).

  • Domingos Barroso da Costa

    é defensor público no Rio Grande do Sul com atribuição de atuação junto aos tribunais superiores e mestre e doutorando em Psicologia pela PUC-Minas.

  • Arion Escorsin de Godoy

    é defensor público no Rio Grande do Sul doutor em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel).

14 de março de 2023, 15h08

São muitos os eventos recentes que demonstram a importância da jurisdição constitucional e da atuação efetiva de órgãos e instituições cujo desenho constitucional aponta para a proteção ao Estado democrático de Direito brasileiro. Aliás, essa afirmação remete aos termos do artigo 1º, caput, da Constituição, convindo revê-los para, assim, reavivar os sentidos que veiculam, bastante importantes para a construção e compreensão do que se propõe a partir deste texto.

A importância assinalada, inclusive, anuncia-se de uma perspectiva topológica. Afinal, dizemos do primeiro artigo de nossa Constituição, do enunciado normativo que inaugura nossa ordem jurídico-política fazendo menção ao Estado democrático de Direito em que se constitui a República do Brasil [1]. Dessa assertiva já podemos extrair a essência conferida pela Constituição ao Estado brasileiro que, se pode concluir, não é absolutista ou autocrático — na medida em que é "de Direito" —, além de ser governado por representantes eleitos pelo povo [2] em sufrágio universal (CF, artigo 14) — o que materializa nossa República democrática. Em última análise, o sentido normativo que se anuncia pelo artigo é a de que as instituições atuam para e pelo povo, enquanto autores e destinatários da normatividade do Estado democrático de Direito.

O assédio autoritário que assolou nossa sociedade não foi uma construção etérea e espiritual, mas contou com a concreta contribuição decisiva de muitas das instituições — a Presidência da República, o Ministério Público, dentre outras; para citarmos alguns exemplos – que, inclusive por força da própria democracia, tinham como tarefa a proteção do Estado democrático de Direito.

É, portanto, de tentativas de golpe de Estado que diz, antes de tudo, o presente artigo, bem como da necessidade de se realçar a importância e aprofundar as potencialidades dos instrumentos de controle de que dispomos para a proteção da ordem jurídico-política constitucionalmente instituída.

Nesse sentido, cumpre pontuar que os ataques ao nosso Estado Democrático de Direito não são recentes e, até que culminassem nas barbáries observadas nos últimos meses, se desenvolveram crescentemente, à revelia de muitos órgãos que têm por dever constitucional romper os assédios autoritários. Ou seja, não dizemos de algo que prosperou na clandestinidade, mas de movimentos com métodos e líderes conhecidos, além de práticas e objetivos sabidamente ilícitos, o que nos leva à conclusão de que sua manutenção e avanço dependeram, em importante medida, da omissão de instituições e agentes responsáveis por seu controle e repressão, com destaque para o Ministério Público Federal, polícias e Forças Armadas.

Tais omissões vêm sendo apuradas e, não há dúvidas, foram das principais causas das críticas dirigidas ao STF enquanto atuava na defesa de nosso Estado democrático de Direito, no exercício tensionado da jurisdição constitucional. E pode-se dizer de um exercício tensionado da jurisdição constitucional, protetiva em relação aos três poderes e à Constituição, justamente porque, no limite, se deu em superação ao apassivamento da instituição constitucionalmente destacada para provocar o Poder Judiciário em busca da proteção da ordem jurídica e do regime democrático, qual seja, o Ministério Público, como expressamente previsto no artigo 127, caput, da Constituição.

Neste ponto do debate proposto, oportuno relembrar que a instituição a que se atribuem tantas e tão graves omissões nos últimos anos é a mesma que dividiu o protagonismo da chamada "operação lava-jato", o que faz questionar — se há o que possa justificar — a quase exclusividade até há pouco firmemente assegurada ao Ministério Público na busca por tutela a direitos constitucionalmente previstos, em especial àqueles que dizem da garantia do próprio regime democrático.

A Advocacia-Geral da União tem dado provas e amostras concretas, seja pela atuação efetiva, seja pela criação de órgãos internos e todo o debate proposto, de que não há o que justifique a verdadeira cultura de uma espera digna de Penélope pela atuação do Ministério Público na tomada de providências eficazes em coibir a atuação de pessoas ou grupos que invistam contra o nosso Estado Democrático de Direito e suas bases constitucionais. E, segundo entendemos, a AGU não é a única instituição integrante do sistema de justiça legitimada e interessada em atuar com vistas a uma tal proteção, a Defensoria Pública também o sendo, segundo os horizontes que lhe abre o artigo 134 da Constituição.

Nesse sentido, importante ressaltar que, ao contrário do que muitos ainda pensam, as funções da Defensoria Pública não se limitam ao que se poderia esperar de uma espécie de assistência judiciária repaginada, muito menos de uma advocacia dativa institucionalizada. A Constituição de 1988 inseriu a Defensoria no registro do público, o que a diferencia em essência de qualquer tipo de advocacia — inclusive da pública.

Como já tratamos noutras oportunidades [3], ao defini-la como instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, expressão e instrumento do regime democrático enquanto incumbida de assegurar aos vulneráveis amplo acesso à Justiça, o artigo 134 da Constituição, com a redação oportunamente modificada pela Emenda Constitucional 80, alça a Defensoria Pública à condição de garantia fundamental, vinculando-a ao que prevê o artigo 5º, caput e LXXIV, dentre outras garantias que servem exclusivamente à proteção da estrutura constitucional. Ou seja, o sentido constitucionalmente adequado prevê um fim que transcende as relações estabelecidas entre defensores e cidadãos assistidos com o dever público de assegurar a todos os vulneráveis, enquanto categoria jurídico-constitucional que não se fecha, mas permanece em constante construção concreta, que se lhe apresentem o amplo acesso à justiça e o exercício dos direitos fundamentais. O acesso à justiça e a isonomia a que visa passam a mediar a atuação da Defensoria Pública e a comprometê-la essencialmente com os fundamentos do Estado democrático de Direito, como o são a cidadania e a dignidade (artigo 1º, II e III, da CF), e os objetivos fundamentais de nossa República, com destaque para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a redução das desigualdades e a promoção do bem de todos, indistintamente (CF, artigo 3º, I, III e IV).

Essa inscrição na dimensão pública capacita a Defensoria brasileira a ser uma verdadeira Defensoria do Povo — nome que inclusive a designa em diversos países latino-americanos — e que há de ser interpretado, em potência e em realidade, como associando a instituição, na medida em que lhe assegura o amplo acesso à Justiça, a um povo ativo no exercício de sua autodeterminação democrática, capaz de se valer do Direito — e dos direitos — para se afirmar constitucionalmente e ser capaz de transformar a sociedade em que vivemos. Aliás, é justamente em nome desse povo, de sua cidadania, dignidade, liberdade, igualdade e futuro que, assim como a AGU, pode e deve agir a Defensoria Pública na defesa de nosso Estado democrático de Direito. Afinal, ninguém mais legitimado e interessado em uma tal atuação que o povo, especialmente sua parcela mais vulnerável, justo a assistida pela Defensoria, cujas possibilidades de uma vida digna em suas mais diversas dimensões depende do regime democrático. Mais que os líderes de Poderes ou os entes federados — e seu patrimônio — seria o povo a maior vítima dos atentados que ultimamente tanto fustigaram nosso Estado democrático de Direito e, ainda nesse sentido, vale destacar que a Defensoria Pública, diferentemente da AGU, goza de plena independência em relação à União ou aos estados contra os quais inclusive litiga incessantemente.

Essa independência faz da Defensoria instrumento essencial e diferenciado na promoção da resistência do mundo da vida, de "expectativas normativas igualitárias e universalizáveis", diante de um sistema exploratório capitalista que sempre tende a se impor àquele. Neste ponto, reportamos ao belíssimo texto de David Francisco Lopes Gomes [4] para sustentar que a Defensoria Pública, se é de fato uma Defensoria do Povo, tem por principal função a manutenção dessa tensão entre expectativas normativas igualitárias e universalizáveis e um sistema que sempre investe para colonizá-las, tensão essa que, a nosso ver, não só assegura modernidade a nosso constitucionalismo — como defende o autor —, mas o inscreve no registro democrático, ou seja, no registro não autoritário em que os conflitos não são sufocados, mas, pelo contrário, são acolhidos para que as diferenças que os induzem possam produzir mais que indigente igualdade especular, o que está na base do pluralismo a que visa o artigo 3º da CF, em especial em seus incisos I e IV.

Diante dos virulentos ataques dirigidos a nosso Estado democrático de Direito, dos exemplos de atuação da AGU e da necessidade de fortalecer nosso sistema de proteção constitucional, pensamos que nossas breves reflexões e o reconhecimento da potência conferida pela Constituição à Defensoria Pública autorizam a questionar, afinal: onde estariam os núcleos defensoriais de defesa da democracia? Se ainda não existem, pensamos seja o momento oportuno de criá-los, tanto pela Defensoria da União, quanto pelas Defensorias estaduais [5]. Tal possibilidade decorre mesmo do sentido normativo extraído do texto constitucional, especialmente do artigo 134, quando diz "proteção do regime democrático", além da mudança do papel da Defensoria Pública ao longo do nosso processo de constitucionalização enquanto processo de aprendizagem social de longo prazo.


[1] "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito (…)."

[2] Que é soberano e do qual emana todo o poder, exercendo-o "por meio de representantes eleitos ou diretamente", nos termos da Constituição.

[3] Por todas, mencionamos o livro "Educação em direitos e Defensoria Pública: cidadania, democracia e atuação nos processos de transformação política, social e subjetiva" (Curitiba: Juruá, 2014).

[4] "O Brasil e o problema da Modernidade: uma abordagem a partir da história constitucional brasileira", em "Constitucionalismo e história do Direito" (coord. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Belo Horizonte: Conhecimento, 2020).

[5] No curso da atuação em resposta aos recentes e notórios ataques racistas e discriminatórios dirigidos por vereador de Caxias do Sul (RS) ao povo baiano e aos nordestinos, a Defensoria gaúcha criou o Grupo de Atuação de Defesa da Democracia e do Estado de Direito (Gadd) — Resolução DPGE nº 2/23.

Autores

  • Realizou estágio de pós-doutorado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).

  • é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor e mestre em Direito pela UFMG.

  • é defensor público no Rio Grande do Sul com atribuição de atuação junto aos tribunais superiores.

  • é defensor público no Rio Grande do Sul, doutor em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), com estágio de investigação na Universidade de Coimbra, e diretor de Ensino da Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do RS.

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