Opinião

Lei Antiterrorismo e o 8 de Janeiro

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27 de maio de 2023, 7h18

Com os atos praticados contra os prédios públicos do 8 de Janeiro, o que parte da imprensa chamou de "bolsonaristas radicais" veio à tona a discussão sobre a incidência e abrangência da Lei Antiterrorismo (13.260/16).

O terrorismo aparece na Constituição, primeiramente, no artigo 4º, VIII, tendo o Constituinte proclamado o repúdio ao terrorismo como um dos princípios que regem as relações internacionais do país. No capítulo Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, aparece mandado explícito de criminalização [1] ao terrorismo no inciso XLIII [2] do artigo 5º. Interessante notar outro mandado de criminalização da Carta de 1988, previsto no inciso seguinte: XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático [3].

A proibição do terrorismo ou de atos terroristas específicos tem sido objeto de preocupação de diversas convenções internacionais [4], desde a elaboração pela Sociedade das Nações [5], em 1937, de uma Convenção para a Prevenção e Repressão do Terrorismo [6]. Existem, ademais, diversas Resoluções [7] da Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral, acerca do assunto. Em 2006 o órgão lançou a Estratégia Antiterrorista Global, definindo uma série de medidas específicas para combater o terrorismo, tendo como uma de suas metas [8] elaborar uma convenção global sobre o tema.

Um dos desafios, senão o principal, é a ausência de consenso na sociedade internacional sobre a definição do terrorismo. Apesar de coexistirem uma série de tratados, estes aludem a atos terroristas (apoderamento de aeronaves, atentados contra pessoas com proteção internacional, atentados com bombas, etc.), sem definir o termo. Flávia Piovesan, com propriedade, observa que não se alcançou na comunidade internacional um consenso a respeito de sua definição [9].

Na doutrina internacional, Kai Ambos e Anina Timmerman analisam o assunto, concluindo que há uma concordância em alguns elementos para definir o terrorismo como 1) a prática de um ato delitivo que cause a morte ou lesões corporais, ou um dano grave à propriedade pública ou privada; 2) uma intenção específica de difundir o medo, intimidar a população ou obrigar uma entidade a executar ou se abster de executar algum ato. Neste ponto, os autores falam da problemática de se exigir um fim político, o que ajudaria a restringir uma definição ampla, mas deixaria de fora outros contextos [10].

A lei brasileira definiu o terrorismo em seu artigo 2º: o terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.

Após os atos do 8 de Janeiro, veio a lume que a lei comete um erro crasso; como notou a ministra Maria Thereza Assis Moura  ao comentar o projeto de Novo Código Penal (PLS 236/2012), que prevê redação semelhante para o delito  está-se a "considerar terroristas motivos discriminatórios como 'condição da pessoa idosa ou com deficiência [11]', os quais são mais bem próprios de outra categoria de delitos, os denominados crimes de ódio" [12]. Completa: "estes (motivos discriminatórios) sabidamente, não possuem finalidade política e tampouco têm por objetivo causar pânico na população e, aparecendo como figura alternativa e independente de tais objetivos, não gozam de nenhum sentido" [13].

Na verdade, a lei brasileira usa termos semelhantes aos da Lei nº 7716/89, que prevê punição aos "crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional" (artigo 1º). O elemento subjetivo se confunde ainda com o da lei nº 2889/56, que trata do crime de genocídio, punindo "Quem (age), com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal" (artigo 1º, caput [14]).

Joedson Alves/Agência Brasil
Joedson Alves/Agência Brasil

Fazendo breve abordagem do direito comparado, temos que é praticamente unânime a inserção de elementos políticos na tipificação do delito. Na Decisão-Quadro do Conselho da União Europeia (UE) referente à luta contra o terrorismo [15], lê-se que o dolo do autor pode ser "constranger indevidamente os poderes públicos, ou uma organização internacional, a praticar ou a abster-se de praticar qualquer ato, ou  desestabilizar gravemente ou destruir as estruturas fundamentais políticas, constitucionais, económicas ou sociais de um país, ou de uma organização internacional" (artigo 1º). A alínea "d" fala do seguinte objetivo do autor:

"d) O facto de provocar destruições maciças em instalações governamentais ou públicas, nos sistemas de transporte, nas infra-estruturas, incluindo os sistemas informáticos, em plataformas fixas situadas na plataforma continental, nos locais públicos ou em propriedades privadas, susceptíveis de pôr em perigo vidas humanas, ou de provocar prejuízos económicos consideráveis".

Na América Latina, a lei paraguaia [16] fala que o ato de terrorismo pode visar atingir los órganos constitucionales o sus miembros en el ejercicio de sus funciones (Lei 4.024/2010). A lei do Peru se refere ao emprego de armamentos, materias o artefactos explosivos o cualquier otro medio capaz de causar estragos o grave perturbación de la tranquilidad pública o afectar las relaciones internacionales o la seguridad de la sociedad y del Estado [17]. Interessante é a redação da lei boliviana [18], que fala na finalidad de subvertir el orden constitucional, deponer al gobierno elegido constitucionalmente.

Prosseguindo na legislação vizinha, o Uruguai tipifica o terrorismo na lei nº 18.494/2009, declarando ser de natureza terrorista los delitos que se ejecutaren con la finalidad de intimidar a una población u obligar a un gobierno o a una organización internacional, a realizar un acto o a abstenerse de hacerlo. Na Argentina, o terrorismo é previsto como agravante genérica de qualquer delito, consoante o artigo 41 do Código Penal, que traz la finalidad de aterrorizar a la población u obligar a las autoridades públicas nacionales o gobiernos extranjeros o agentes de una organización internacional a realizar un acto o abstenerse de hacerlo. Semelhantes termos se leem na legislação da República Bolivariana da Venezuela [19].

Concluindo, apesar de a mídia e atores jurídicos terem falado em "atos terroristas de 8 de janeiro", parece haver consenso que tais atos  ao menos legalmente  não podem ser assim qualificados. Neste sentido, destaca-se o projeto de Lei 21/2023, que insere a locução "por razões políticas" no artigo 2º da lei. Na justificação do projeto, o senador Alessandro Vieira expõe:

"O atentado contra a Praça dos Três Poderes em 08 de janeiro e os recentes ataques a torres de transmissão de energia levaram a mídia e a população a chamar os indivíduos responsáveis de terroristas. Todavia, embora o termo 'terrorismo' tenha um significado político para além do jurídico, com diversas interpretações ao redor do mundo, os atos realizados não se configuram como terroristas de acordo com a lei penal brasileira. (…)
Dos fatos ocorridos nas últimas semanas, foram preenchidos os requisitos 1 e 3; mas não o segundo. Como não foram realizados por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, não podem ser considerados terroristas. Isso porque dentre os princípios do direito penal insere-se o da legalidade estrita, que proíbe o uso da analogia. Das razões elencadas pela lei antiterrorismo não é possível depreender a motivação política sequer pelo uso de interpretação extensiva.
(…)
Por fim, destaque-se que a inclusão da motivação política vai na mesma linha de tratados internacionais preveem a motivação política, a exemplo da Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas, da Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo e da Convenção Internacional para a Supressão de Atos de Terrorismo Nuclear, internalizadas no Brasil pelos Decreto nº 4.394, de 26 de setembro de 2002, Decreto nº 5.640, de 26 de dezembro de 2005 e Decreto nº 9.967, de 8 de agosto de 2019. Todas estipulam que cada Estado Parte deve adotar as medidas necessárias, incluindo a adoção de legislação interna, que assegurem que os atos terroristas não possam ser em nenhuma circunstância justificados por considerações de natureza política, filosófica, ideológica, racial, étnica, religiosa ou outra similar e sejam reprimidos com penas compatíveis com sua gravidade."

Neste norte, vale a advertência de Zaffaroni: "Tipos penais de terrorismo pode dar origem à impunidade. Antes de mais nada, porque é comum que firam o princípio de legalidade estrita, e com isso podem ser declarados inconstitucionais. Em segundo lugar porque todos pretendem incorporar elementos subjetivos" [20]. De qualquer modo, a lei em vigor é falha, estando em desacordo com os compromissos internacionais que o Brasil assumiu acerca do tema, urgindo sua alteração.


[1] Na lição de Gilmar Mendes e Paulo Branco, "a Constituição brasileira de 1988 adotou, muito provavelmente, um dos mais amplos, senão o mais amplo 'catálogo' de mandados de criminalização expressos de que se tem notícia". MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 491-492. Vide também FELDENS, Luciano. A Constituição Penal. A Dupla Face da Proporcionalidade no Controle de Norma Penais. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 73-80.

[2] A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

[3] A ministra Maria Thereza Assis Moura, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em artigo doutrinário, faz menção à norma que, segundo ela, muito embora não faça referência expressa ao terrorismo, faz alusão a condutas que podem estar a ele associadas (MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis et al. Terrorismo e o direito brasileiro. Um problema de legalidade penal. In: Kai Ambos, Ezequiel Malarino y Christian Steiner (editores). Terrorismo y Derecho Penal, Bogotá: Fundación Konrad Adenauer, 2015. p. 545).

[4] Os tratados internacionais ratificados pelo Brasil sobre o tema são os seguintes: Convenção para a Repressão ao Apoderamento Ilícito de Aeronaves (Decreto nº 70.201/1972); Convenção para a Repressão aos Atos ilícitos Contra a Segurança da Aviação Civil (Decreto nº 72.383/1973); Protocolo para a Repressão de Atos Ilícitos de Violência em Aeroportos que Prestem Serviços à Aviação Civil Internacional (Decreto nº 2.611/1998); Protocolo da Convenção de Segurança Nuclear (Decreto nº 2.648/1998); Convenção sobre a Prevenção e Punição de Crimes Contra Pessoas que Gozam de Proteção Internacional (Decreto nº 3.167/1999); Convenção Internacional Contra a Tomada de Reféns (Decreto nº 3.517/2000); Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas (Decreto nº 4.394/2002); Convenção Interamericana contra o Terrorismo (Decreto nº 5.639/2005); Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo (Decreto nº 5.640/2005); Convenção para a Supressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Navegação Marítima e o Protocolo para a Supressão de Atos Ilícitos contra a Segurança de Plataformas Fixas Localizadas na Plataforma Continental (Decreto nº 6.136/2007).

[5] Foi uma organização internacional, predecessora da ONU, fundada em 1919, através do Tratado de Versalhes, sendo extinta com o advento da Segunda Guerra Mundial.

[6] Assinada por 24 Estados e ratificada somente pela Índia.

[7] As Resoluções 49/60 de 1994 e 1566/2004 contêm um esboço da definição de terrorismo. A Resolução 1267/1999 exigiu que os Taliban entregassem Osama bin Laden às autoridades competentes, para que pudesse ser apresentado à justiça. A Resolução 1269/1999, condenou inequivocamente todos os atos de terrorismo como criminosos e injustificáveis e pedindo aos Estados Membros que adotassem medidas específicas. A resolução 1333/2000 exigiu que as autoridades Taliban do Afeganistão atuassem rapidamente no sentido de encerrar todos os campos de treino dos terroristas. A Resolução 1373/2001 cria o Comitê Antiterrorismo. A Resolução 57/83 de 2002 contém medidas para impedir terroristas de conseguirem acesso a armas químicas, biológicas e nucleares. Internalizadas, temos. Internalizadas, temos a Resolução 2082/2012, renovando o regime de sanções aplicáveis ao Talibã e estabelecendo isenções (Decreto 8.006/13); a Resolução 2161/2014, que trata de sanções a indivíduos, grupos, iniciativas e entidades da Al-Qaeda e associados (Decreto 8.521/15); a Resolução 2178/2014, que trata de combatentes terroristas estrangeiros (Decreto 8.530/2015).

[9] PIOVESAN, Flávia. Comentário ao artigo 4º, VIII. In: CANOTILHO, J.J.Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo: SaraivaAlmedina, 2013. p. 175.

[10] Como objeto de controvérsia para a definição, os professores alemães abordam ainda a questão dos atos das forças armadas durante conflitos armados  sendo ambígua a relação entre o terrorismo e o direito internacional humanitário  ou mesmo em tempos de paz (terrorismo de estado), e também a questão dos movimentos de libertação nacional, havendo divergências se seria um legítimo exercício do direito à autodeterminação dos povos ou a pior forma de terrorismo. AMBOS, Kai e TIMMERMANN Anina. Terrorismo y Derecho Internacional Consuetudinário. In: Kai Ambos, Ezequiel Malarino y Christian Steiner (editores). Terrorismo y Derecho Penal, Bogotá: Fundación Konrad Adenauer, 2015. pp. 26-47.

[11] Assim está redigido o delito no Projeto: "Causar terror na população mediante as condutas descritas nos parágrafos deste artigo, quando: ''1) tiverem por fim forçar autoridades públicas, nacionais ou estrangeiras, ou pessoas que ajam em nome delas, a fazer o que a lei não exige, ou deixar de fazer o que a lei não proíbe; 2) tiverem por fim obter recursos para a manutenção de organizações políticas ou grupos armados, civis ou militares, que atuem contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; 3) forem motivadas por preconceito de raça, cor, etnia, religião, nacionalidade, origem, condição da pessoa idosa ou com deficiência, ou por razões políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas'".

[12] Idem. p. 547.

[13] Idem.

[14] Artigo 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo;  b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;  c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;  d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; Será punido:  Com as penas do artigo 121, §2º, do Código Penal, no caso da letra a;  Com as penas do artigo 129, §2º, no caso da letra b; Com as penas do artigo 270, no caso da letra c; Com as penas do artigo 125, no caso da letra d; Com as penas do artigo 148, no caso da letra e.

[15] Publicada no Jornal Oficial da UE nº L 164 de 22/06/2002 pp. 3-7.

[16] Lei 4024/2010. Artículo 1º- Terrorismo. El que, con el fin de infundir o causar terror, obligar o coaccionar para realizar un acto o abstenerse de hacerlo, a: 1. la población paraguaya o a la de un país extranjero; 2. los órganos constitucionales o sus miembros en el ejercicio de sus funciones; o, 3. una organización internacional o sus representantes.

[17] Artigo 2º do decreto lei 25475/92. Descripción típica del delito. El que provoca, crea o mantiene un estado de zozobra, alarma o temor en la población o en un sector de ella, realiza actos contra la vida, el cuerpo, la salud, la libertad y seguridad personales o contra el patrimonio, contra la seguridad de los edificios públicos, vías o medios de comunicación o de transporte de cualquier índole, torres de energía o transmisión, instalaciones motrices o cualquier otro bien o servicio, empleando armamentos, materias o artefactos explosivos o cualquier otro medio capaz de causar estragos o grave perturbación de la tranquilidad pública o afectar las relaciones internacionales o la seguridad de la sociedad y del Estado, será reprimido con pena privativa de libertad no menor de veinte años.

[18] Artigo 133 do Código Penal.

[19] A Lei Orgánica Contra la Delincuencia Organizada y Financiamiento al Terrorismo, aprovada em 30 de abril de 2012, caracteriza como ato terrorista aquel acto intencionado que por su naturaleza o su contexto, pueda perjudicar gravemente a un país o a una organización internacional tipificado como delito según el ordenamiento jurídico venezolano, cometido con el fin de intimidar gravemente a una población; obligar indebidamente a los gobiernos o a una organización internacional a realizar un acto o a abstenerse de hacerlo; o desestabilizar gravemente o destruir las estructuras políticas fundamentales, constitucionales, económicas o sociales de un país o de una organización internacional.

[20] ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no Direito Penal. 2. ed. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de. Janeiro: Revan, 2007. pp. 184-186.

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