Justiça inabalada

Sob a condução do Judiciário, país reencontra seus valores republicanos

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11 de maio de 2023, 8h00

Resistência: destruída em 8 de janeiro, sede do STF foi reconstruída a tempo da solenidade de Abertura do Ano Judiciário, em fevereiro. 

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2023, que será lançado nesta quarta-feira, dia 10 de maio, no Supremo Tribunal Federal. A publicação ficará disponível gratuitamente na versão online (clique aqui para acessar o site) a partir das 18h e já está à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa (clique aqui para comprar).

Foi estranho e ao mesmo tempo sintomático ver a sede do Supremo Tribunal Federal ser vandalizada pelos bárbaros que invadiram a praça dos Três Poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, na vã tentativa de destruir a democracia brasileira. Estranho porque em um movimento de claras conotações político-partidárias era de se supor que o Judiciário não figurasse como alvo preferencial dos assaltantes das instituições. E sintomático porque desde que se pôs em movimento a marcha antidemocrática o Judiciário foi um dos opositores da tentativa de golpe, senão o principal.

Sobressaíram nesta missão, em 2022, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, fiadores da estabilidade diante de indefinições do Legislativo, de omissões do Executivo e da ofensiva do então presidente contra o processo eleitoral. Há de se registrar que, se a Justiça segue inabalada, deve muito à atuação desses tribunais.

Como efeito colateral, a ação deletéria de Jair Bolsonaro e seus asseclas contra o Judiciário conseguiu reverter anos passados de discussões no plenário e de intrigas nos corredores do Supremo: levou à união das 11 ilhas que compõem a corte suprema. Sob a mira do ex-presidente, os ministros deixaram de lado disputas internas para responder aos ataques externos com unidade e coesão de que só um colegiado orgânico é capaz.

Reprodução
Reportagem foi originalmente publicada no Anuário da Justiça Brasil 2023

A melhor demonstração da ordem unida que impera no tribunal foi dada no acatamento aos chamados inquéritos dos atos antidemocráticos, instaurados pelo então presidente da corte ministro Dias Toffoli, em 2019, e pelo respaldo prestado ao ministro Alexandre de Moraes, relator dos citados inquéritos e presidente do TSE à época das eleições. Refletindo hoje sobre a contestada decisão que tomou há quase quatro anos, Toffoli entende que a medida foi um instrumento indispensável para salvaguardar a democracia. “A defesa da democracia não tem marco final, é constante”, garantiu.

A investigação ganhou corpo e se somou a outras ao longo do tempo, todas com o objetivo de resguardar as instituições republicanas ameaçadas e todas sob a relatoria de Alexandre de Moraes. Também presidente do TSE, Moraes demonstrou habilidade e firmeza para lidar com a situação.

O ápice da violência antidemocrática foi atingido em 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas e depredadas. Mais de duas mil pessoas, que participaram dos atentados e ficaram acampadas na frente do quartel do Exército em Brasília, foram presas em flagrante pela Polícia Federal. “O STF vai fazer Justiça isenta, imparcial, célere, para que isso não se repita mais”, assegurou Moraes.

Em março de 2023, o ministro concluiu a análise de prisões após audiência de custódia, converteu algumas prisões de flagrante para preventiva e colocou boa parte dos manifestantes em liberdade provisória, cumprindo medidas cautelares. Foi um esforço conjunto de todos os atores do sistema de Justiça para garantir o devido processo legal aos detidos.

De muito criticado, o inquérito aberto em 2019 pelo presidente do STF passou a ser visto, então, como ferramenta importante de contraposição. “Se não fosse esse inquérito talvez nós não tivéssemos tido eleições em 2022”, afirmou Dias Toffoli em entrevista ao Anuário da Justiça. Assim, foi mais do que simbólico o fato de o primeiro encontro que selou o pacto dos chefes dos Três Poderes contra a tentativa de golpe, ainda na noite de 8 de janeiro, tenha ocorrido na sede feita em escombros do Supremo Tribunal Federal, conduzido pela presidente da corte, ministra Rosa Weber. “O ultraje só poderia resultar, como resultou, no enaltecimento da dignidade da Justiça, e no fortalecimento do valor insubstituível do princípio democrático”, considerou a ministra, a quem coube a missão de reconstruir a corte em apenas três semanas para possibilitar a cerimônia de abertura do Ano Judiciário, no início de fevereiro.

O Supremo acabou formando um bloco coeso para atender às demandas geradas pelo ambiente político ensandecido que se formou antes, durante e depois das eleições. Além das questões eleitorais propriamente ditas, os ministros discutiram questões como os limites da liberdade de expressão e as regras para o uso sensato das novas tecnologias da informação, bem como as situações criadas pelo relaxamento da legislação sobre o uso e porte de armas.

A regulamentação do funcionamento das plataformas digitais, que está na ordem do dia do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também está no raio de deliberações do Judiciário e é defendida pelo decano da corte, ministro Gilmar Mendes. Igualmente importante diante desse contexto foi a convocação de audiência pública no STF em março para discutir o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). O tema da responsabilidade dos provedores pelo conteúdo publicado é objeto de dois recursos com repercussão geral, de relatoria dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux.

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Outros temas importantes ocuparam a pauta de julgamento dos ministros na temporada. A causa indígena foi objeto de decisão unânime da corte no sentido de que é dever da União e da Funai proteger terras indígenas ainda não homologadas. A Defensoria Pública teve reconhecida pela corte a prerrogativa de requisitar documentos e providências de autoridades públicas. Os ministros também confirmaram pontos controversos da nova lei de improbidade administrativa e definiram que ela não pode retroagir, por não ser uma lei penal. Afirmaram, ainda, constitucionalidade da multa à motorista que se recusa a fazer o exame de bafômetro. Em outra decisão de grande impacto social garantiram ao segurado do INSS o direito de optar pela regra mais benéfica no cálculo do benefício previdenciário, podendo fazer uma “revisão da vida toda” de contribuinte.

Mas, como demonstram os números, as causas que dão entrada nas cinco mil varas e juizados e dão trabalho aos 18 mil juízes de primeiro grau das justiças Estadual, Federal e do Trabalho são de outra natureza. No acervo de processos à espera de julgamento, por exemplo, os temas mais julgados são da área do Direito Civil e do Direito Tributário. Dizem respeito à dívida ativa – questão ligada ao sempre preocupante tema das execuções fiscais –, à cobrança de IPTU e de indenizações por dano moral e por dano material relativos à relação de consumo. Também têm destaque no ranking de maiores demandas do Judiciário as questões relativas ao Direito do Trabalho e do Direito Previdenciário (veja os números no quadro acima).

Enquanto os cães ladravam, a caravana passava. Em 2022, o Judiciário brasileiro recebeu 29,5 milhões de casos novos – 2,5 milhões a mais do que em 2021, mantendo uma taxa de crescimento anual próxima dos 9%. Mesmo julgando quase 28 milhões de processos – dois milhões a mais do que no ano anterior –, o Judiciário viu o acervo de processos pendentes crescer 2,5 milhões em 2022 e atingir 76,5 milhões de casos.

Mais da metade dos processos à espera de julgamento – 39,5 milhões – são de execução, uma antiga e resistente pedra no caminho da produtividade dos juízes brasileiros. Outro número que impressiona é que mais de 65% dos processos de execução pendentes são de execução fiscal, ou seja, são processos com a participação direta do Estado cobrando débitos dos contribuintes. Há ainda um lote de 16 milhões de processos sobrestados, à espera de que as cortes superiores definam jurisprudências controversas para serem aplicadas aos respectivos casos.

Chama a atenção o fato de que é na primeira instância que a Justiça acontece. Assim, 92% dos processos em tramitação concentram-se na porta de entrada do Judiciário, ou seja, nas varas e juizados especiais do país. Isso significa que a maioria dos litígios judiciais são resolvidos pelo juiz de primeiro grau e a massa dos litigantes sequer faz uso do direito ao segundo grau de jurisdição. Quando se fala na grande quantidade de recursos à disposição das partes em juízo, está-se falando de um reduzido grupo de usuários que tem acesso a esse arsenal jurídico.

Resumindo: o grande gargalo da administração de Justiça no país está na base. Como já se afirmou anteriormente, boa parte da encrenca judicial se refere aos processos de execução. Voltando aos números: são 60 milhões de processos em tramitação na primeira instância e são 40 milhões de processos em execução, quase todos na primeira instância. Sobrariam 20 milhões de processos de conhecimento à espera de resolução nas cinco mil varas que existem no país. Visto assim – média de quatro mil processos pendentes por vara – o congestionamento nas varas e juizados parece até digerível.

Vendo o problema de outro ângulo: o tempo médio entre o início do processo e a primeira baixa, em 31 de janeiro de 2023, no Judiciário brasileiro como um todo era de 942 dias. Enquanto o segundo grau puxa a média para baixo com o prazo médio equivalente a 347 dias (menos de um ano), este mesmo prazo para se obter uma decisão num processo na primeira instância era de 1.308 dias (o mesmo que três anos e sete meses), bem longe do prazo razoável preconizado pela Constituição.

Dos processos em tramitação, apenas 6% encontram-se na segunda instância e 1% nos tribunais superiores, onde o prazo de espera já soa como razoável: 266 dias. Mas é nas instâncias superiores que se articulam ideias e soluções para conferir eficiência e eficácia ao Judiciário. Embora possa parecer contraditório que se dê mais atenção às instâncias que melhor funcionam no Judiciário, o fato é que todo ganho de produtividade no topo do sistema acaba contribuindo para que as instâncias inferiores também produzam mais e melhor.

É consenso a necessidade de mecanismos para gerenciar a avalanche de processos que sobem para os tribunais, principalmente quando tratam de temas repetitivos. No Supremo, 15 anos depois da Repercussão Geral, a sistemática deu à corte constitucional racionalidade para trabalhar. “As equipes de assessores e analistas dos gabinetes, atualmente, podem dedicar-se, quantitativa e qualitativamente, a outras classes processuais”, comentou o ministro Edson Fachin ao Anuário da Justiça. O acervo na Corte, que chegou a ter 100 mil processos na fila, vem caindo ano a ano: em 2022 eram 22 mil. Foram 81 mil casos distribuídos no ano, frente a 90 mil julgados.

Outro instrumento que conferiu celeridade aos julgamentos no Supremo foi o Plenário Virtual, que a partir da crise sanitária provocada pela epidemia de covid-19 passou a ser usado largamente. Em 2022, mais de 12 mil decisões colegiadas na corte ocorreram na modalidade virtual – contra 147 no presencial.

A Emenda Regimental 58, editada ao final de 2022, estabeleceu restrições às decisões individuais e fixou o limite de 90 dias para que os pedidos de vista sejam devolvidos para julgamento. Após esse período, os autos estarão automaticamente liberados para voltar à pauta.

Em caso de urgência, o relator deve submeter imediatamente a referendo do Plenário ou da turma medidas cautelares necessárias para evitar grave dano ou garantir a eficácia de decisão anterior. O referendo deverá ser apreciado, preferencialmente, em ambiente virtual, com exceção das medidas urgentes que resultem em prisão.

Já o Superior Tribunal de Justiça ganhou um instrumento para enfrentar um dilema: quanto mais julga, mais processos chegam para serem julgados. Trata-se do requisito de relevância, criado pela Emenda Constitucional 125/2022, em julho, e que ainda aguarda regulamentação para ser aplicado. Pelo dispositivo criado, as partes deverão comprovar que a questão federal é relevante a ponto de inaugurar jurisdição especial, na mesma linha de raciocínio da repercussão geral implantada no Supremo.

O tribunal encaminhou ao Congresso Nacional, em dezembro de 2022, um anteprojeto de lei de regulamentação da matéria. O documento define questões do direito nacional que, do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, ultrapassam os interesses subjetivos do processo. A expectativa entre os ministros é que, com o filtro da relevância, o número de processos recebidos caia até 30%.

O Tribunal Superior do Trabalho apresentou aumento de produtividade de 18,5%. Em 2022, julgou quase 70 mil processos a mais do que em 2021. Pela primeira vez, há perspectivas de redução do acervo processual, diz o presidente da corte, ministro Lelio Bentes. Para ele, a Justiça do Trabalho permanece na vanguarda do Judiciário, ao usar meios tecnológicos para aumentar a produtividade e acelerar a tramitação dos processos.

A Justiça do Trabalho como um todo, registrou um aumento de 10% de casos novos em 2022. Já no TST, a distribuição de processos para os ministros julgarem caiu na mesma proporção, passando de 342 mil para 307 mil. Um reflexo da reforma trabalhista que criou dificuldades de acesso à Justiça, como, por exemplo, o dispositivo que transferiu ao trabalhador os custos com o advogado das empresas em caso de derrota na ação.

O ministro Ives Gandra Filho, no entanto, vê motivos para que o acervo não diminua. Um deles seria o fato de o TST não aceitar questões já resolvidas, mesmo depois de pacificadas pelo STF. “O TST tem sido refratário a aplicar teses definidas pela Suprema Corte, levantando distinguishing s para continuar julgando da mesma forma que fazia antes”, afirmou ao Anuário. Como exemplo, menciona os temas 246 e 725, de repercussão geral, ligados à terceirização.

O TST também precisa também dar uma resposta segura a todos os juízes trabalhistas (e consequentemente ao país) sobre a relação de trabalho de motoristas e aplicativos de transporte, como o Uber. Os primeiros casos na corte datam de 2016. Desde então, há divergências nas turmas e o conflito de entendimentos ainda não foi solucionado pela Subseção de Dissídios Individuais. Enquanto o Legislativo não se manifesta para dar o marco legal da questão, cabe ao Judiciário decidir.

Para a corregedora-geral da Justiça do Trabalho, Dora Maria da Costa, a crise sanitária impôs uma mudança radical nas rotinas diárias do ser humano e o isolamento social trouxe consequências danosas, que precisam ser superadas. “O retorno presencial, além de salutar para o ser humano, traz enorme perspectiva de ganhos de produtividade no âmbito do Poder Judiciário, além do resgate do sentimento de pertencimento à instituição, que, evidentemente, resulta no atendimento mais qualificado do cidadão”, defende. A volta ao trabalho presencial tem sido promovida com base nas diretrizes do CNJ.

Já sob a Presidência de Rosa Weber, em novembro o Conselho Nacional de Justiça definiu os parâmetros para que toda a estrutura da Justiça retorne ao presencial. Foram revogadas resoluções que permitiam aos servidores trabalhar a distância, medida implementada durante a epidemia por seu antecessor, o ministro Luiz Fux. A retomada das atividades é fiscalizada pela Corregedoria Nacional de Justiça.

Na mais alta corte militar do país, o Superior Tribunal Militar, houve uma virada de chave no comando. O ministro Francisco Joseli assumiu a corte com um discurso favorável à pacificação política do país após as eleições presidenciais de 2022. Assim como os últimos chefes da corte que o antecederam expressaram um alinhamento com as ideias do presidente da República da época, Joseli tem afinidades com o novo chefe da nação. Durante os dois primeiros mandatos de Lula, Joseli, que é da Aeronáutica, foi o piloto do avião presidencial.

Joseli é bastante consciente do papel de sua instituição: afirma que o artigo 142 da Constituição Federal não dá margem para que os militares possam interferir em assuntos políticos. “Não é por uma situação episódica que nós vamos mudar a nossa Constituição”, pontua. “Nós, os tribunais superiores, estamos juntos nos esforços para que os objetivos estabelecidos pelo governo sejam todos alcançados, especialmente naqueles que dizem respeito à nossa democracia. Estaremos sempre juntos nessa luta”, diz.

O tribunal aguarda o desfecho do debate sobre os limites de sua competência. Afinal, cabe à Justiça Militar julgar crimes cometidos por militares em ações que não estão relacionadas de forma direta com suas funções típicas, como no apoio a questões comunitárias e no socorro a vítimas de desastres? No caso dos militares envolvidos nos atos terroristas de 8 de janeiro já está decidido: serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal.

Lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2023
Quando:
Quarta-feira, 10 de maio, às 18h
Onde: Salão Branco do Supremo Tribunal Federal. Praça dos Três Poderes, Edifício-sede, Brasília – DF
Versão digital (a partir do dia 10 de maio): http://anuario.conjur.com.br (gratuita)
Versão impressa: Livraria ConJur (R$ 40)

Anunciaram nesta edição
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