Opinião

A defesa da democracia e os direitos fundamentais

Autor

  • Manoel Gonçalves Ferreira Filho

    é professor emérito e titular aposentado de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Doutor honoris causa da Universidade de Lisboa. Doutor pela Universidade de Paris. Ex-professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence (França). Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Presidente do Instituto "Pimenta Bueno" — Associação Brasileira dos Constitucionalistas.

27 de junho de 2023, 15h22

Não faz dúvida serem os direitos fundamentais a raiz da democracia moderna.

Historicamente, a prova é a de que as primeiras democracias se constroem a partir da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América de 1776 e Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1787 que ambas reconhecem como direitos fundamentais, inalienáveis e imprescritíveis do ser humano a liberdade e a igualdade.

E a institucionalização política que delas decorre visa essencialmente a resguardá-los, pois, como brada o artigo 16 da Declaração francesa:

"Toda sociedade na qual não é assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação dos poderes, não tem Constituição."

Assim, a própria razão de ser do Estado constitucional democrático está nos direitos fundamentais pois ele resulta da lógica da liberdade e da igualdade de todos os seres humanos. Assim defender a democracia é defender os direitos fundamentais, defender os direitos fundamentais é defender a democracia.

É certo que o abuso de direitos fundamentais pode ameaçar a democracia em situações específicas. Cabe defender então a democracia contra esses abusos, mesmo porque esses abusos desnaturam os direitos fundamentais abusados. Esta defesa, todavia, tem de ser feita de acordo com a Constituição, a lei magna de proteção dos direitos fundamentais e não de modo arbitrário, desrespeitando o cerne desses mesmos direitos.

Spacca
Não se pode, em consequência, aceitar a lição de Loewenstein e da democracia dita militante, segundo a qual "se a democracia acredita na superioridade de seus valores absolutos sobre as observações oportunísticas do fascismo, ela deve enfrentar as exigências da hora e todo esforço possível deve ser feito para salvá-la, mesmo com o risco e o custo de violar seus princípios fundamentais". [1]

Isto, na verdade, significaria defender a democracia destruindo a razão de ser da democracia.

Dentre as liberdades públicas uma das mais preciosas é a da livre manifestação do pensamento. Quem o diz é a Declaração de 1789 no artigo 11, aliás, lhe estabelece o regime jurídico, levando em conta o seu aspecto positivo e o seu eventual aspecto negativo.

Dispõe ele:

"A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem: todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, mas será responsabilizado quem abusar desta liberdade nos casos determinados em lei."

Este preceito revela, por um lado, a percepção de que tal liberdade tem valor incomensurável. Com efeito, é condição da difusão da experiência e do saber que são indispensáveis ao progresso. Ao contrário, a inexistência dessa liberdade significa estagnação e mesmo o atraso, como tantas vezes ocorreu no passado, em virtude do cerceamento da difusão de novas ideias, de novas descobertas, de novas verdades científicas.

Por outro, ele enuncia as referidas linhas mestras de seu regime jurídico.

Está nele a proibição a censura que é a primeira das referidas linhas mestras. Igualmente, ser reservada à lei o único limite que a restringe lei esta que — não se olvide — "a expressão da vontade geral, definida pelo povo ou seus representantes" (artigo 6º).

E, terceira linha mestra, a responsabilização de quem abusar dessa liberdade, usando-a de modo prejudicial à sociedade, conforme está no artigo 5º.

Traçam elas o regime jurídico dessa liberdade dos estados democráticos de direito. É este o modelo que já adotava o direito constitucional brasileiro quando nasce em 1824 e adota a Constituição-cidadã de 1988.

Hoje, com o avanço tecnológico, a liberdade de manifestação do pensamento causa preocupação porque pode servir de instrumento para o solapamento das instituições. [2]

Na verdade, não é isto novidade na história. Já se enfrentou mesma preocupação, por exemplo, em face da imprensa.

Ora, a liberdade de imprensa não sufocou a democracia, ao contrário se fez indispensável para a democracia. Com efeito, ela é vital para a difusão da informação entre os eleitores, sem a qual ele não poderia tomar decisões racionais em vista do bem comum.

A mesma acusação já foi feita contra o rádio por Loewenstein nos anos trinta do século passado, a propósito da televisão por Sartori [3], no final do século passado, mas nem por isso a democracia foi destruída.

O pai da democracia militante se indignava porque o rádio explorava as "emoções" em detrimento das "razões" para deturpar as decisões eleitorais. O mestre italiano via a televisão como viciando as opiniões também em detrimento das razões.

Na verdade, rádio, televisão e internet propiciam mais do que a imprensa a exploração do irracional, dos sentimentos, das "emoções" no plano da política. Esta exploração, todavia, é um fenômeno conatural à propaganda[4]. Esta explora esses nichos e tende a se limitar a essa exploração. Vê-se isto dos programas partidários, que hoje são obra não de pesadores como Marx, mas de "marqueteiros".

Entretanto, a própria imprensa, às vezes, não hesita em fazê-lo, por exemplo, nos títulos das notícias, pois é sabido que a maioria dos leitores não vai além delas.

É preciso, todavia, não exagerar o efeito da propaganda sobre o povo, o eleitorado. Com efeito, se este não fosse capaz de racionalmente superar a mera propaganda, a democracia seria inviável. Ou não passaria de uma farsa, porque o verdadeiro poder estaria nas mãos do melhor propagandista.

A nova tecnologia em si mesma é neutra. Ela enseja o envio de mensagens por meio de plataformas que provedores põem à disposição de quem as quiser enviar mensagens — use-se um termo neutro — notícias, imagens, ideias e pensamentos tanto corretos quanto incorretos, verdadeiros ou falsos. Se permite que um indivíduo as dirija a incontáveis receptores o mais rapidamente possível, isto sempre foi o sonho de todos, nisto não há mal, é progresso como o foi a imprensa.

Assim, manda o bom senso que ela seja regulamentada, a fim de que o seu lado negativo seja reprimido e o seu lado positivo sirva à informação indispensável à decisão democrática.

Isto traz ao debate a situação dessa nova tecnologia da comunicação em face do direito positivo brasileiro. Tal exame enseja detectar o seu regime e as eventuais vulnerabilidades deste que permitem o seu mau uso em prejuízo da democracia. E como defender a democracia contra o seu uso abusivo.

Em primeiro lugar, cabe apontar que a nova tecnologia transmite mensagens.

Ora, ninguém negará que mensagens se enquadram na liberdade de expressão do pensamento que prevê a Constituição brasileira.

Assim, estão elas livres de censura, como decorre do artigo 5º, IV e IX e especialmente do art. 220 da Constituição. Este último reza:

"A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição."

Como se isto não bastasse, o seu § 2º explicita:

"É vedada qualquer censura de natureza política, ideológica e artística."

Entretanto, é preciso não perder de vista o disposto na parte final do artigo 5º, IV:

"É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato."

A vedação do anonimato obviamente visa propiciar a responsabilização, seja civil, seja penal, dos que abusem da liberdade de manifestação do pensamento.

Ora, disto decorre que as mensagens transmitidas pelas plataformas não podem ser anônimas. É evidente que divulgar mensagens anônimas ou por meio de robôs — e este é caso frequente — contraria a Lei Magna.

Consequentemente contraria a esta a atuação dos provedores das plataformas que as aceitam. E as aceitam, sem qualquer responsabilidade sobre seu conteúdo, como decorre do artigo 18 da Lei nº 12.925/14.

Na verdade, a posição jurídica dos provedores de plataformas é análoga à dos diretores de jornais, conforme tem sido regulada, na atualidade, a liberdade de imprensa. Com efeito, as plataformas são os jornais da tecnologia contemporânea. Disto resultará a sua responsabilidade solidária pela difusão de mensagens criminosas.

Traz a referência a mensagem criminosas a lembrança de que a liberdade de manifestação do pensamento não é ilimitada. Ela não pode infringir — como a imprensa não o pode — outros direitos fundamentais, como a privacidade, bem como atentar contra as instituições legitimamente estabelecidas, o que evidentemente inclui a democracia.

Entretanto, num Estado de Direito, somente a lei pode definir e proibir e apenar os perversões e abusos que por elas se exprimem. Necessário se torna ajustar a lei penal — nullum crimen sine lege — à sua repressão que não pode ficar à mercê da opinião de qualquer autoridade. Do contrário esta exerceria uma censura que, como se apontou acima, é proibida pela Constituição, mesmo em se tratando de ideias de natureza política ou ideológica.

Arguir-se-á que isto dificultará a repressão, e, sobretudo, retardará que sejam as mensagens criminosas retiradas das plataformas. Mas para acelerar essa retirada há a possibilidade de medidas cautelares de que se tem usado e abusado contemporaneamente, mas sempre em vista de um delito previsto em lei e não com base numa opinião política.

Aliás, embora a difusão de notícias falsas sejam uma arma perigosa de propaganda, exagerar-lhes o poder é pressupor que o cidadão não tem a racionalidade e espírito crítico suficientes para distinguir a mentira da verdade. E esta recusa do poder da racionalidade — retire-se — contraria o próprio alicerce lógico da democracia.

Lembre-se, ademais a repressão penal compete sempre — num Estado de Direito, insista-se — aos órgãos ordinariamente incumbidos de sua tarefa. Ela cabe numa democracia ao Poder Judiciário, com seus auxiliares.

Descabe, inclusive, criar para a repressão das fake news criminosas procedimentos ad hoc ou tribunais de exceção. Estes, aliás, proibidos pelo artigo 5º, XXXVIII da Constituição. Obviamente ela deverá ser feita observando-se os princípios do devido processo legal, como o do juiz natural.

Arguir-se-á que isto dificultará a repressão e, sobretudo, retardará que sejam as chamadas fake news retiradas das plataformas. Por que será isto necessário quando não o é para publicações? Não será tal retirada uma forma de censura?

A conclusão deste trabalho é simples. A defesa da democracia é necessária, mas tem de ser feita respeitando os direitos fundamentais e a Constituição. Nesta, vem claramente indicado o caminho para reprimir os abusos via internet. São eles a meu juízo a 1) proibição de mensagens anônimas, 20 uma lei que defina limites peculiares ao conteúdo de tais mensagens, assim traçando a fronteira entre o lícito e o ilícito, 3) definindo abusos e crimes que se cometam por meio da internet e suas sanções, 4) com a consequente 5) e a responsabilização de dos autores de tais mensagens e dos provedores que as toleraram e divulgaram, 6) bem como o processo judicial que efetive a sua responsabilização, 7) com o respeito do devido processo legal 8) e particularmente a competência do juiz natural.

Desta forma, respeitando constitucional dos poderes e as garantias dos direitos fundamentais se poderá reprimir ou prevenir os malfeitos de eventuais mensagens, sem destruir a democracia, a separação dos poderes, o estado de direito, nem criando tribunais de exceção pretendendo defendê-la.

 


[1]  Karl Loewenstein, “Militant Democracy and Fundamental Rights I”, American Political Science Review, vol. 31, nº 3 (junho 1937) p. 432.

[2] V. Jamie Bartlett, The People vs. Tech – How the internet is killing democracy (and how to save it), Penguin, Londres, 2028.

[3] V. Giovanni Sartori, Homo vidensLa sociedade teledirigida, trad. esp., Ed. Taurus, Madrid, 2ª ed., 1998.

[4] V. meu livro A ressurreição da democracia, Dia a Dia Ed., Santo André, 2020, Parte II, caps. 5 e 6.

Autores

  • é advogado, professor titular aposentado de Direito Constitucional e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence e é presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas (Instituto Pimenta Bueno), além de ex-vice-governador do estado de São Paulo.

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