Controvérsias Jurídicas

Representação eleitoral autêntica das populações e lideranças locais

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

9 de fevereiro de 2023, 12h14

A Nova República, instituída com a promulgação da Constituição de 1988, foi responsável por inaugurar um dos mais longos períodos democráticos na história do Brasil. Tirante os arroubos autoritários do governo de turno, de modo geral, há previsibilidade das eleições, com a posse dos eleitos para o exercício de mandatos definidos, com a permanente supervisão da Justiça Eleitoral no zelo pela legalidade do pleito.

Spacca
O maior pilar do sistema democrático eleitoral brasileiro repousa no § 4º do artigo 60, ao elencar em seu inciso II o voto direto, secreto, universal e periódico como cláusula pétrea, insuscetível de proposta de emenda constitucional tendente a aboli-la. Estabelece o artigo 14, § 1º que "O alistamento eleitoral e o voto são: I – obrigatórios para os maiores de dezoito anos; II – facultativos para: a) os analfabetos; b) os maiores de setenta anos; c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos". Dessa forma, configura-se o que denominamos de sufrágio universal, garantindo a todos os cidadãos aptos a votar o direito de participação igualitária na escolha dos dirigentes da nação.

Porém, há no sistema eleitoral pátrio um desarranjo que somente pode ser traduzido pela frase de George Orwell, em A Revolução dos Bichos: "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros". Ao longo desses mais de 200 anos de existência como país soberano e independente, assistimos ao processo de ampliação da garantia do direito ao voto, ao passo que também testemunhamos a edificação de um sistema eleitoral que acentuou a disparidade do valor do voto de casa eleitor a depender de seu domicílio eleitoral.

A Constituição de 1824 determinava que a escolha de senadores e deputados federais seria feita por eleições indiretas, em duas fases: na primeira os eleitores paroquiais escolhiam os eleitores provinciais, que posteriormente, elegeriam os senadores e deputados. Para ter direito ao voto, o cidadão precisava ostentar uma renda líquida de 100 mil réis anuais, enquanto que para poder ser votado o valor saltava para 200 mil réis. O candidato a deputado federal precisava de uma renda líquida anual de 400 mil réis e o ingresso na lista dos senadores a serem escolhidos pelo imperador exigia, no mínimo, 800 mil réis. Desta forma, a Constituição do Império diferenciava flagrantemente os cidadãos em categorias de privilégios conforme seu poderio econômico.

O segregacionista sistema eleitoral imperial foi revogado pela Constituição de 1891, abolindo o voto censitário e instituindo a igualdade de todos perante a lei. Todavia, preservou e introduziu limitações de outras ordens. No total, apenas 5% da população da época tinha acesso às urnas, tendo em vista que as mulheres continuaram excluídas do direito de participar do pleito e os homens deveriam ter 21 anos de idade e comprovada alfabetização. O sufrágio universal apenas foi garantido no código eleitoral promulgado pelo governo provisório de 1932, que além de garantir às mulheres o direito ao voto, também reduziu o limite de idade dos eleitores para 18 anos. No final do século passado, o direito ao voto foi estendido para os analfabetos e maiores de 16 anos de idade em caráter facultativo.

Não há como negar que ao longo de nossas constituições houve incontestável avanço na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, eliminando-se as barreiras jurídicas que impediam a universalização da participação popular nas eleições. Porém, o mesmo não pode ser afirmado no que tange ao valor igualitário do voto entre os cidadãos. O que se nota ainda no sistema eleitoral contemporâneo é uma antiga e grave deformação no modelo de escolha de deputados e senadores, que atribui ao voto dos brasileiros de determinados Estados um peso superior se comparado com outros.

Conforme preceitua a mais clássica tradição republicana, os deputados federais são eleitos nos diferentes Estados da federação por voto direto, secreto, universal e periódico, sendo que o número de eleitos deveria ser proporcional à população de cada um. Infelizmente esse mecanismo de representação apenas repousa no plano do dever ser, tendo em vista que na prática, nossas Constituições e legislações eleitorais incluíram ressalvas ou critérios especiais de cálculo, distorcendo a pretensa proporcionalidade. À guisa de exemplo, cita-se o critério estabelecido pela Constituição de 1891 de fixação de um número mínimo de deputados federais eleitos por Estado, independentemente de sua população ou eleitorado.

A distorção ganha contornos ainda mais graves quando é fixado também número máximo de deputados eleitos por Estado, como fez a Constituição do Estado Novo de 1937, ratificada pelas Emendas Constitucionais de 1977, 1982, 1985 e, finalmente, pela Constituição de 1988. As Cartas de 1946 e 1967 não estabeleceram patamares mínimo e máximo de representação parlamentar, mas definiram uma metodologia de cálculo que previa uma determinada proporção de habitantes para cada deputado federal até um limite máximo, e a partir daí, uma proporção maior, estabelecendo uma modalidade regressiva de representação parlamentar. A Constituição de 1967 dispunha, por exemplo, que o número de deputados federais fosse determinado por lei conforme proporção que não excedesse um deputado para cada 300 mil habitantes, até 25 deputados, e, acima desse limite, um deputado para cada milhão de habitantes.

O estabelecimento de mínimo e máximo de deputados por Estado desaguou nos fenômenos da sub-representação de Estados populosos e super-representação de estados menos povoados. Nossa atual Constituição perpetuou o desbalanceamento representativo dos Estados no Parlamento, uma vez que o artigo 45, § 1º, determina que o "número total de deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população", ressalvando-se que nenhuma unidade federativa deve ter "menos de oito ou mais de setenta deputados".

A deformidade no modo de eleição dos deputados federais compromete a representatividade popular no Congresso e vai de encontro ao princípio da igualdade do valor do voto, constante no artigo 14:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular.

Ao permitir que os deputados federais de alguns estados sejam eleitos com o total de votos muito abaixo do que é exigido em outros, a Constituição confere, de forma reflexa, pesos diferentes aos votos dos eleitores, a depender do Estado de onde tenha domicilio eleitoral.

A democracia não é um modelo pronto, acabado, que prescinde de aperfeiçoamento. Os países com maior tradição democrática nos servem de exemplo ao demonstrar que a democracia é um organismo vivo, em constante transformação, de modo a se adequar aos valores e exigências da sociedade em determinado período histórico. Assim, não há como travarmos um debate sadio sobre reforma política, sem que o tema da deformidade representativa da Câmara dos Deputados seja abordado.

Há aqueles que argumentam que os limites mínimo e máximo de representação são salutares por assegurarem o equilíbrio federativo, evitando-se a sobreposição dos interesses dos estados mais populosos sobre os demais. Contudo, no sistema bicameral brasileiro, é de competência do Senado representar diretamente os estados e o Distrito Federal, razão pela qual participam da composição da Casa com três membros cada unidade federativa.

É discutível que os pisos e tetos funcionem como medidas eficazes para garantir a representação mais adequada dos interesses legítimos dos estados pouco populosos. Em face do número comparativamente pequeno de seus eleitores e dos custos reconhecidamente menores das campanhas eleitorais neles realizadas, não são raros os casos de políticos das regiões Sul e Sudeste, e até mesmo do Nordeste, transferirem seu domicílio eleitoral para estados do Norte, objetivando garantir a eleição para senadores ou deputados federais, o que dificulta a representação autêntica das populações e lideranças locais.

Mediante tais ponderações, urge o restabelecimento do equilíbrio de forças, de modo a assegurar o princípio da igualdade absoluta de todos os cidadãos brasileiros, consagrada na célebre expressão "one man, one vote" (a cada um dos eleitores deve corresponder um voto).

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!