Opinião

Advocacia-Geral da União e a nova onda tecnológica

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31 de dezembro de 2023, 13h16

Na última obra publicada por Henry Kissinger, contendo relevantes exemplos históricos de estratégia política, afirma-se que “o líder enfrenta um paradoxo inerente: em circunstâncias que exigem ação, quanto maior a escassez de informações relevantes, normalmente maior o escopo da tomada de decisão” [1]. Assim, numa situação cujos contornos parecem indefinidos e cujo impacto é abrangente, a liderança precisa considerar que “escolhas políticas significativas raramente envolvem uma única variável: decisões sábias exigem uma combinação de percepções políticas, econômicas, geográficas e tecnológicas, todas informadas por um instinto para a história” [2].

Essa advertência é crucial no atual contexto, no qual se forma aquilo que Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar denominam como “onda”, ou seja, “um conjunto de tecnologias que surgem ao mesmo tempo, impulsionadas por uma ou várias novas tecnologias de propósito geral, com profundas implicações sociais”. Essas “tecnologias de propósito geral” são “aquelas que permitem avanços sísmicos no que os seres humanos podem fazer” [3]. Essa nova onda possui um nome bastante difundido, mas ainda pouco compreendido: “inteligência artificial” (IA).

Há quase sete anos, publiquei na ConJur o artigo intitulado “Advocacia-Geral da União na era dos robôs-advogados”. Naquela ocasião, em que inteligência artificial era um conceito incipiente, referi-me a programas computacionais como “ferramentas” e suscitei uma série de indagações gerenciais aplicáveis à advocacia pública federal, voltadas a questões instrumentais como “critérios organizacionais”, “quantidade ideal de membros nas carreiras”, “despesas”, “apoio administrativo” e “concursos públicos” [4].

Ocorre que, desde então, os avanços tecnológicos foram surpreendentes. Hoje, falar em “inteligência artificial” não se resume a tratar de programas computacionais que sirvam como “ferramentas” para as atividades humanas. É muito mais que isso: trata-se de tecnologias cujo funcionamento e cujos impactos ainda não estão completamente decifrados, inclusive para seus próprios criadores. Com efeito, essas tecnologias captam “aspectos da realidade que os humanos não detectaram ou talvez não sejam capazes de detectar”, compreendem “possibilidades que a mente humana não consegue sintetizar ou empregar completamente”, demonstram “atributos que escaparam da conceituação ou da categorização humana” e envolvem “casos em que os humanos não sabem como os programas atingiram seus objetivos” [5].

Portanto, reforça-se a constatação feita por Yuval Harari há alguns anos, no sentido de que “a inteligência está se desacoplando da consciência”. E, nesse contexto, cabe indagar: “o que é mais valioso — a inteligência ou a consciência?” [6].

Atualmente, os mais proeminentes criadores e pensadores na área da tecnologia vêm focando suas reflexões não propriamente na inteligência (algo assumido, progressivamente, por programas computacionais), mas sim na consciência (ou seja, nos valores que diferenciam o ser humano). Nos próximos anos, “talvez precisaremos mudar nossa ênfase da centralidade da razão humana para centralidade da dignidade e da autonomia humanas” [7].

Isso, inclusive, foi muito bem intuído por Aldous Huxley no livro Admirável Mundo Novo, por muitos considerado o maior alerta para o futuro, em termos antropológicos e sociológicos. Vários traços humanos se esmaecem naquele mundo descrito por Huxley, mas ainda permanece nas pessoas “a consciência de serem individualidades” [8].

As palavras de Huxley soam proféticas considerando que, cada vez mais, o traço distintivo humano parece deslocar-se da inteligência para a consciência. Afinal, já existe uma inteligência artificial que avança de forma inexorável (e em ritmo exponencial), podendo inclusive desenvolver textos sobre todo e qualquer assunto, usando algoritmos que tendem a se aprimorar nos próximos anos.

Nesse cenário, gerenciar uma instituição (privada ou pública) significa ir além dos aspectos tecnológicos da inteligência artificial e de questões instrumentais voltadas ao funcionamento de programas informatizados. É por isso que os estudos relacionados aos valores humanos vêm sendo, cada vez mais, adotados pelos principais gestores, até como forma de exercer algum tipo de controle sobre os processos de criação e desenvolvimento de novas tecnologias.

Como bem demonstram Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar, “é promissor o fato de a pesquisa sobre ética na IA ter se ampliado – as publicações cresceram cinco vezes desde 2014. […] Outrora, teria sido estranho encontrar filósofos morais, cientistas políticos e antropólogos culturais trabalhando com tecnologia; hoje, nem tanto” [9].

Neste ano de 2023, no qual a Advocacia-Geral da União celebrou seus trinta anos de existência, vimos diversas iniciativas permeadas por valores como democracia (com destaque para a criação da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia), sustentabilidade (efetivada com a instituição da Procuradoria Nacional de Defesa do Clima e do Meio Ambiente), empatia (fortalecida como iniciativas como o assessoramento jurídico personalizado) e solidariedade (mediante arranjos colaborativos entre órgãos e carreiras). Na nova onda tecnológica que se delineia, o reforço desses valores é fundamental para os enormes desafios gerenciais que se apresentam, observados sempre os princípios que regem a advocacia pública federal [10].


[1] KISSINGER, Henry. Liderança: seis estudos sobre estratégia. Trad. Cássio de Arantes Leite. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2023, p. 13.

[2] Ibidem, p. 15.

[3] SULEYMAN, Mustafa; BHASKAR, Michael. A próxima onda: inteligência artificial, poder e o maior dilema do século XXI. Trad. Alessandra Bonrruquer. 1. ed. Rio de Janeiro: Record: 2023, p. 42.

[4] MACEDO, Rommel. Advocacia-Geral da União na era dos “robôs-advogados”. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jan-30/rommel-macedo-advocacia-geral-uniao-robos-advogados/>. Acesso em 27 dez. 2023.

[5] KISSINGER, Henry; SCHMIDIT, Eric; HUTTENLOCHER, Daniel. A era da IA e nosso futuro como humanos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2023, p. 3-8.

[6] HARARI, Yuval. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Trad. Paulo Geiger. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 398-399.

[7] [7] KISSINGER, Henry; SCHMIDIT, Eric; HUTTENLOCHER, Daniel. A era da IA e nosso futuro como humanos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2023, p. 189.

[8] HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Trad. Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Globo, 2009, p. 116.

[9] SULEYMAN, Mustafa; BHASKAR, Michael. A próxima onda: inteligência artificial, poder e o maior dilema do século XXI. Trad. Alessandra Bonrruquer. 1. ed. Rio de Janeiro: Record: 2023, p. 315-316.

[10] MACEDO, Rommel. AGU deve se legitimar institucionalmente efetivando seus princípios. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jan-08/rommel-macedo-agu-legitimar-efetivando-principios/>. Acesso em 27 dez. 2023.

Autores

  • é advogado da União e mestre em Direito. Foi conselheiro seccional e presidente da Comissão da Advocacia Pública e do Advogado Empregado da OAB-DF (2010-2012), coordenador científico da pós-graduação lato sensu em Advocacia Pública na Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal, coordenador-geral substituto de Processos Judiciais e Disciplinares da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Justiça, coordenador-geral de Análise de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Trabalho e Emprego e coordenador jurídico de Licitações e Contratos da Consultoria Jurídica junto ao Ministério das Comunicações.

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