Retrospectiva 2023

Guias sobre acordos de sustentabilidade ambiental e defesa da concorrência no mundo

Autor

  • Leonardo Rocha e Silva

    é sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados Master of Laws (LL.M.) pela University of Warwick bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).

22 de dezembro de 2023, 11h17

O ano de 2023 foi importante para as empresas que querem atingir metas de sustentabilidade ambiental mais ambiciosas, dependem de acordos com concorrentes nesse processo, mas têm receio de que tais arranjos sejam questionados e objeto de pesadas sanções, com base nas leis de defesa da concorrência em vigor hoje, em mais de 125 países, de acordo com a OCDE. Tais leis normalmente proíbem acordos entre concorrentes, também chamados de cartéis, que tenham por objeto ou efeito a fixação ou manipulação de preços, divisão de mercados atuais e potenciais, a redução de oferta e a limitação da concorrência por meio de trocas de informações concorrencialmente sensíveis (envolvendo custos, preços, estratégias etc.).

Autoridades de defesa da concorrência do Japão, da Comissão Europeia, do Reino Unido, da Holanda e da Nova Zelândia lançaram, em 2023, documentos definitivos com orientações sobre a compatibilidade de acordos entre concorrentes que tenham por objetivo o atingimento de metas de sustentabilidade ambiental (os chamados acordos de sustentabilidade ambiental) com as leis de defesa da concorrência.

A International Chamber of Commerce (ICC) divulgou recentemente um relatório [1] em que traz um resumo não só dos guias sobre antitruste e sustentabilidade lançados este ano, mas também de decisões relacionadas a este tema por várias autoridades. Como a atuação das autoridades de defesa da concorrência contra acordos entre concorrentes pode ter o efeito de frear importantes iniciativas das empresas para o atingimento de metas de sustentabilidade ambiental mais ambiciosas, vale conhecer como as autoridades do Japão, da Comissão Europeia, do Reino Unido, da Holanda e da Nova Zelândia se propuseram a cuidar desse assunto. É o que se apresenta a seguir, aproveitando o material compilado pela ICC, com comentários adicionais.

Japão. Em março de 2023, a JFTC divulgou um guia [2] com orientações abrangentes, que cobrem não só acordos de cooperação entre concorrentes, mas também as condutas unilaterais dos agentes econômicos com poder de mercado e as análises de operações de fusão, aquisição e joint ventures. A JFTC apresenta em seu guia exemplos de condutas que podem suscitar dúvidas sobre compatibilidade com a lei de defesa da concorrência, fornecendo esclarecimentos sobre iniciativas relacionadas a P&D, estabelecimento de padrões, compras conjuntas e compartilhamento de dados entre concorrentes.

A JFTC apresenta no guia uma análise de algumas categorias específicas de cooperação, como: (1) o estabelecimento de normas/padrões de sustentabilidade ambiental; (2) a pesquisa e o desenvolvimento conjuntos; (3) as alianças tecnológicas; (4) as compras conjuntas; (5) a logística compartilhada; (6) a produção conjunta de equipamentos originais e (7) as alianças de vendas e compartilhamento de dados. Para cada tipo de acordo, o guia traz fatores a serem considerados na avaliação da JFTC, juntamente com exemplos práticos.

A JFTC menciona, no documento, a criação de um canal de comunicação para que as empresas procurem a autoridade quando quiserem minimizar os riscos de que seus acordos de sustentabilidade ambiental sejam considerados incompatíveis com a lei de defesa da concorrência japonesa.

Comissão Europeia. Em junho de 2023, a Comissão Europeia publicou um guia[3] sobre acordos horizontais (que envolvem concorrentes diretos) com um novo capítulo inteiro dedicado aos acordos de sustentabilidade. O guia fala da aplicação da isenção antitruste prevista no parágrafo 3º, do artigo 101, do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) para acordos de sustentabilidade. Ao contrário de outras jurisdições, a Comissão Europeia adota uma definição ampla de acordos de sustentabilidade, que engloba desenvolvimento econômico, ambiental e social, incluindo, portanto, direitos humanos e direitos dos animais.

O guia deixa claro, por exemplo, que não são proibidos acordos de sustentabilidade que tenham por único objetivo assegurar o cumprimento de tratados internacionais que ainda não estejam em vigor. O guia estabelece uma “zona de proteção flexível” para os acordos que estabelecem padrões de sustentabilidade, incluindo requisitos mínimos que são vinculantes para as empresas participantes, sob certas condições. Estas condições incluem a garantia de que o padrão não seja imposto a empresas e de que o padrão não conduza a um aumento significativo do preço ou a uma redução significativa da qualidade dos produtos, a menos que as partes envolvidas detenham uma participação de mercado inferior a 20% no mercado relevante em que atuam. Além disso, as empresas devem ter a liberdade de adotar padrões de sustentabilidade mais rigorosos dos que os previstos nos acordos. O guia deixa claro que as empresas podem cooperar para atingir um padrão de sustentabilidade mais elevado do que o exigido pela regulamentação aplicável.

O guia indica como se pretende aplicar a isenção antitruste para os acordos de sustentabilidade que limitam a concorrência, mas obedeçam a quatro condições cumulativas: (1) apresentem ganhos de eficiência objetivos, concretos e verificáveis (por exemplo, produção mais limpa); (2) sejam indispensáveis para o alcance dos benefícios visados; (3) não eliminem totalmente a concorrência e (4) permitam o repasse dos benefícios para os consumidores.

As empresas que pretendem celebrar acordos de sustentabilidade podem solicitar à Comissão Europeia que forneça orientações informais para garantir a conformidade com o tratado (TFUE) que contém as regras de defesa da concorrência.

Ainda que esse guia com um capítulo sobre acordos de sustentabilidade tenha sido bem recebido, houve críticas [4] relacionadas às dificuldades impostas às empresas para a demonstração do preenchimento das condições para a isenção antitruste.

Melhor sorte tiveram as empresas interessadas em acordos de sustentabilidade envolvendo especificamente produtores agrícolas e outros agentes da distribuição, do transporte e/ou da embalagem de produtos agrícolas. Em dezembro de 2023, a Comissão Europeia divulgou um guia [5] específico com um tratamento bem especial para tais acordos de sustentabilidade, com base em um outro fundamento legal, o artigo 210-A, do Regulamento (CE) nº 1308/2013, que é muito mais favorável do que o guia geral, lançado em junho de 2023, e não submete as empresas ao processo de demonstração das condições para reconhecimento da isenção antitruste que estão detalhadas no guia lançado em junho.

Este guia específico facilita a atuação dos agentes europeus da cadeia do agronegócio para o atingimento de metas de sustentabilidade ambiental, na medida em que indica que tais agentes não serão penalizados pela aplicação da legislação antitruste, mesmo que os seus acordos restrinjam a concorrência, desde que eles preencham as condições detalhadas no guia e tenham por objetivo, por exemplo: a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas; o uso sustentável da água e do solo; a transição para uma economia circular, incluindo a redução do desperdício de alimentos, a prevenção e o controle da poluição; a proteção e restauração da biodiversidade; a redução da utilização de pesticidas e/ou a saúde e o bem-estar dos animais.

Reino Unido. Em outubro de 2023, a CMA lançou o “Guia de Acordos Verdes”[6], que contém princípios fundamentais que as empresas devem adotar para moldar os acordos entre concorrentes que visem ao atingimento de metas de sustentabilidade ambiental. Em seu guia, a CMA confirma que dará tratamento especial aos “acordos para mitigar os efeitos das mudanças climáticas”. A CMA indica, também, que permitirá, inclusive, acordos que não beneficiam diretamente os consumidores dos produtos dos “mercados relevantes” afetados pelos acordos, mas são positivos para “todos os consumidores do Reino Unido” de uma maneira mais ampla. Para a CMA, isso é necessário dada a “natureza excepcional” das mudanças climáticas. Ou seja, a CMA reconhece que há necessidade de ações urgentes, inclusive de forma colaborativa por parte das empresas concorrentes, que podem ser avaliadas levando-se em conta os seus efeitos mitigadores das mudanças climáticas para todos os consumidores do Reino Unido. A CMA reforça que tais acordos não devem ser adiados ou impedidos pelo temor da aplicação da lei de defesa da concorrência.

Em dezembro de 2023, a CMA divulgou o resultado da sua análise [7] do programa “Shared Impact Initiative”, da organização Fairtrade Foundation UK, com base nas orientações do guia sobre acordos de sustentabilidade ambiental. A Faitrade submeteu à CMA o seu acordo pelo qual (1) varejistas/revendedores do Reino Unido comprometem-se a adquirir volumes de café, banana e cacau certificados pela Fairtrade como produtos ecologicamente sustentáveis, por um período de três a cinco anos; e (2) os varejistas pagam um preço mínimo e um prêmio definidos pela Fairtrade para os produtos adquiridos ao abrigo da “Shared Impact Initiative”.

O objetivo declarado da iniciativa é utilizar acordos de fornecimento de longo prazo entre os varejistas e os produtores certificados pela Fairtrade para dar aos produtores a segurança de que precisam para investir em práticas sustentáveis, incluindo práticas agrícolas que reduzam o impacto ambiental da produção. A Fairtrade disse à CMA que a certificação de produtores é feita em condições justas, objetivas e não discriminatórias, abertas aos produtores elegíveis capazes de investir em iniciativas de sustentabilidade ambiental de longo prazo.

A divulgação da orientação dada à Faitrade foi bem importante para as empresas que atuam no Reino Unido, mas também para outros agentes econômicos, na medida em que pode, inclusive, afetar produtores brasileiros de café, banana e cacau, por exemplo.

Holanda. Em outubro de 2023, a ACM, autoridade que lançou duas minutas de guia para o tratamento de acordos de sustentabilidade em 2020 e 2021 [8], publicou um documento chamado de “Policy Rule” [9], tratando da aplicação, na Holanda, das regras definidas pela Comissão Europeia para os acordos de sustentabilidade entre concorrentes com benefícios que compensam as restrições à concorrência e satisfazem as condições de isenção antitruste definidas no TFEU. Mais uma vez, a ACM agiu para reforçar a mensagem de que, na sua visão atual, as empresas podem colaborar para atingir metas de sustentabilidade ambiental sem serem processadas por violação à lei antitruste.

A “Policy Rule” da ACM deixa claro que as empresas podem firmar acordos para o cumprimento de metas de sustentabilidade ambiental criadas na Holanda ou na Europa, mas que ainda não estejam sendo totalmente implementadas – por exemplo, na área da reciclagem de resíduos. A “Policy Rule” também esclarece que as empresas podem concordar em atingir de forma eficiente metas de sustentabilidade ambiental, como a redução das emissões de CO2, se o consumidor receber uma parte “apreciável e objetiva” dos benefícios gerados pelos acordos.

As empresas que tiverem dúvidas sobre seus projetos de acordos de sustentabilidade podem entrar em contato com a ACM para discutir os termos de tais acordos sem o risco de uma investigação antitruste. O canal de comunicação das empresas com a ACM para discussão sobre os aspectos dos seus acordos de sustentabilidade ambiental tem funcionado bem, e já foram divulgados os resultados de análises importantes feitas pela ACM para empresas que a procuraram.

Nova Zelândia. Em dezembro de 2023, a CCNZ lançou o seu guia [10] sobre acordos de sustentabilidade ambiental. O documento fornece exemplos de colaborações que são menos ou mais propensas a levantar preocupações concorrenciais, como, por exemplo, campanhas conjuntas de conscientização, acordos sobre padrões ou embalagens sustentáveis, restrições na cadeia de fornecimento ou compartilhamento de infraestrutura.

O guia contém um roteiro para que empresários interessados em iniciativas conjuntas relacionadas à sustentabilidade ambiental não deixem de cumprir a legislação de defesa da concorrência. Para a CCNZ, os empresários devem considerar os objetivos da colaboração proposta e até que ponto a colaboração é necessária para alcançar metas de sustentabilidade ambiental. Tais agentes devem, também, considerar se a colaboração afetará a concorrência, se envolverá concorrentes diretos ou potenciais e se afetará a maneira como cada empresa conduz seus negócios em relação aos seguintes aspectos: (1) como os preços são definidos; (2) a quantidade de bens e serviços fornecidos; (3) a gama de bens e serviços fornecidos e/ou os incentivos para melhorar e inovar.

O documento, portanto, orienta as empresas que consideram a colaboração para fins de sustentabilidade ambiental a seguir um processo para entender os potenciais efeitos da colaboração na concorrência e buscar aconselhamento jurídico ou a aprovação da autoridade, se necessário. A CCNZ disponibilizou um canal de comunicação para que as empresas discutam os termos das propostas de colaboração, evitando, assim, investigações desnecessárias em relação ao cumprimento da legislação de defesa da concorrência.

Comentários finais
Como visto, os documentos produzidos e divulgados por essas cinco autoridades de defesa da concorrência são ferramentas necessárias, ainda que imperfeitas, para que as legislações de defesa da concorrência não sejam indevidamente percebidas como óbices intransponíveis para que as empresas ajam de forma colaborativa na busca de sustentabilidade ambiental.

Talvez, mais relevante do que os próprios guias seja a indicação de que tais autoridades do Japão, da Comissão Europeia, do Reino Unido, da Holanda e da Nova Zelândia colocaram à disposição dos administrados canais de consultas próprios para que as empresas se sintam mais encorajadas a discutir com os órgãos estatais os termos dos projetos de colaboração sem os riscos de investigações e punições pelo descumprimento da legislação de defesa da concorrência. O objetivo é que não haja nem cartel nem greenwashing. [11]

Tomara que tais iniciativas relevantes sirvam de inspiração para o nosso Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica)  que, sem dúvida, pode e deve ter um papel proativo na orientação das empresas brasileiras [12] que estão interessadas em projetos de cooperação entre concorrentes para aceleração das metas de sustentabilidade ambiental, mas ainda têm receio de que tais acordos sejam considerados ilícitos com base na Lei nº 12.529/2011. A edição de um guia do Cade com avaliação de acordos de sustentabilidade ambiental seria um grande feito da autarquia em 2024!

 

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[1] Vide: https://iccwbo.org/news-publications/policies-reports/how-competition-policy-acts-as-a-barrier-to-climate-action/

[2] Vide: https://www.jftc.go.jp/en/pressreleases/yearly-2023/March/230331.html

[3] Vide: https://competition-policy.ec.europa.eu/document/fd641c1e-7415-4e60-ac21-7ab3e72045d2_en

[4] Vide: The Undue Reliance on Article 101(3) TFEU in the Assessment of Sustainability Agreements in the 2023 Horizontal Guidelines (pymnts.com)

[5] Vide: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_23_6370

[6] Vide: https://www.gov.uk/government/news/cma-launches-green-agreements-guidance-to-help-businesses-co-operate-on-environmental-goals

[7] Vide: https://www.gov.uk/government/publications/cma-informal-guidance-fairtrade-environmental-sustainability-agreement

[8] Vide: https://www.acm.nl/en/publications/second-draft-version-guidelines-sustainability-agreements-opportunities-within-competition-law

[9] Vide: https://www.acm.nl/en/publications/policy-rule-acms-oversight-sustainability-agreements

[10] Vide: Collaboration-and-Sustainability-Guidelines-30-November-2023.pdf (comcom.govt.nz)

[11] Veja o vídeo com o Webinar que realizamos sobre o tema: https://www.youtube.com/watch?v=jy_WfUX2vMk

[12] Vide: https://www.migalhas.com.br/depeso/331669/acordos-de-cooperacao-entre-concorrentes-para-promocao-de-medidas-de-desenvolvimento-sustentavel–qual-deve-ser-o-papel-do-cade

https://br.lexlatin.com/opiniao/como-concorrentes-parcerias-cooperacao-sustentabilidade

https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/agenda-esg-e-perguntas-para-o-cade/

 

Autores

  • é sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados, Master of Laws (LL.M.) pela University of Warwick, bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).

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