Opinião

Litigância regulatória antitruste abre 2024 com a ADPF 1.106

Autores

  • é doutoranda em Direito da Concorrência pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Empresarial Internacional e Direito Econômico na Georgetown University Law Center bolsista Fulbright como pesquisadora visitante na George Washington University head do Doing Business in Brazil 2024 da Associação Brazla co-organizadora de eventos na Georgetown International Arbitration Society (GIAS) bolsista do Center for Transnational Business and the Law (CTBL) bolsista do Institute of International Economic Law (IIEL) professora de Direito no IDP pós-graduada em Direito Econômico e da Concorrência pela Fundação Getúlio Vargas mestre em Administração de Empresas pela Coppead Graduate School of Business e bacharela em Direito (UFRJ) Economia (Ibmec-RJ) e Relações Internacionais (Ibmec-RJ).

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  • é pós-graduada em Direito Eleitoral pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e bacharela em Direito (IDP) e em Administração de Empresas.

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  • é mestrando em Direito (USP) bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e membro-fundador da Liga Acadêmica de Processo Civil da UnB (Laproc).

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25 de janeiro de 2024, 19h14

O Sistema Brasileiro de Direito da Concorrência (SBDC) tem enfrentado um verdadeiro conflito existencial, que é saber qual dos sistemas (europeu ou americano) deveria guiar a estruturação da defesa da concorrência no Brasil. Apesar de parecer uma pergunta meramente filosófica, trata-se, na verdade, de uma resolução imprescindível sobre os próximos passos que o Brasil deve tomar para melhorar a competitividade da sua economia, isto porque há estudos empíricos que demonstram a correlação positiva entre o sucesso de uma política de defesa da concorrência e o crescimento econômico de um país.

As diferenças que demarcam a concepção dos sistemas antitruste europeu e norte-americano também sugerem uma estruturação distinta na divisão da competência entre autoridades incumbidas de defender a concorrência, reguladores setoriais e as cortes.

Isso porque, apesar de o antitruste norte-americano ser estruturado a partir de leis federais e estaduais, o papel que o common law exerce ao preencher os inúmeros conceitos jurídicos indeterminados distribuídos na legislação é crucial. Não à toa, o próprio conceito de litigância regulatória é desenvolvido no direito americano para identificar situações em que a intervenção judicial assume a função de regular a atividade econômica do país [1].

Por outro lado, no sistema antitruste europeu, a função adjudicatória das agências antitruste é muito mais explorada, o que lembra o papel exercido pelo tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A discussão sobre qual dos dois sistemas prevaleceu no cenário global remonta um histórico doutrinário interessante [2], que chama atenção para a extensão da colonização europeia e sua influência na jurisdição das ex-colônias.

Inobstante, a prevalência de características de um sistema ou do outro não traduz o resultado final no que diz respeito ao papel exercido pelas cortes nos sistemas de defesa da concorrência.

Isso porque este papel se desdobrará em quatro funções [3]: (1) a função revisional, que descreve a função do poder judiciário ao revisar decisões administrativas e veículos normativos editados pelas autoridades de defesa da concorrência; (2) a função derivada, que remete à atuação das cortes em julgar as chamadas “ações de reparação de danos concorrenciais” [4] do tipo follow-on; e (3) a função autônoma, que pode ser resumida à atuação independente exercida pelo judiciário em relação às autoridades antitruste, por exemplo, ao julgar a constitucionalidade de uma lei sob a óptica concorrencial ou os limites de competência das autoridades incumbidas de defender a concorrência na sua respectiva jurisdição [5].

ADPF contra a Lei Ferrari
Nestes três pilares, estrutura-se a litigância regulatória antitruste, que assumirá ênfases distintas a depender das características de cada ordenamento jurídico. No caso brasileiro, essa litigância regulatória de fato desdobra-se nas três funções acima, e a recente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 1.106, proposta pela Procuradoria-Geral da República, em 13/12/2023, é um exemplo de atuação do Judiciário brasileiro em sua função autônoma, via controle abstrato de constitucionalidade.

A Lei Ferrari, cuja constitucionalidade encontra-se atualmente questionada, foi promulgada nos idos de 1979 para dispor sobre a concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores de via terrestre, sendo responsável por introduzir um sistema que regula a constituição de redes de distribuição no setor automotivo, estimulando a sua verticalização.

De pronto, é necessário ressaltar que, de acordo com os objetivos nos quais o SBDC foi concebido, a verticalização de setores econômicos não é um problema concorrencial em si. Pelo contrário, o fato de produzirem ganhos de eficiência consubstanciados em economia de escala/escopo e criação de sinergias entre as atividades verticalizadas, além da redução de externalidades, assimetrias de informação e dos custos de transação em geral, a verticalização pode ser inclusive concorrencialmente desejável, desde que tais benefícios sejam de fato repassados ao consumidor final.

O problema surge, na verdade, quando estas verticalizações ocasionam um desbalanceamento do level playing field, por facilitar os chamados fechamentos de mercado. Para Rey e Tirole (1997), a ideia de fechamento de mercado consiste na prática de qualquer firma dominante que nega acesso apropriado a um insumo com o intento de estender o seu poder de monopólio de um segmento do mercado a outro [6]. De uma maneira geral, “fechar mercado” é um gênero que comporta diversas condutas específicas, como o aumento das barreiras à entrada, aumento dos custos do rival, restrição a insumos ou canais de distribuição.

Ao longo dos anos em que a Lei Ferrari esteve em vigor, doutrinadores como a professora Paula Forgioni e o ministro Eros Grau caracterizaram-na como um tipo de isenção antitruste [7], pois, ainda que a verticalização não seja estritamente contrária ao desiderato de um mercado competitivo, ao legislar sobre uma obrigação de exclusividade, o Estado brasileiro estaria excepcionando a aplicação da Lei Antitruste naquele setor em específico, o que, segundo os autores, faria sentido, uma vez que a lei apenas disciplina a concessão de comercialização de veículos novos.

Na jurisdição norte-americana, berço do antitruste, a exclusividade em contratos de distribuição historicamente recebeu um tratamento bastante excepcional em relação a outras condutas que poderiam ser caracterizadas como anticoncorrenciais, a exemplo de cartéis e tentativas de monopolização do mercado.

Um dos principais argumentos sustentados pela jurisprudência das cortes dos Estados Unidos, incluindo sua Suprema Corte [8], é de que restrições de natureza vertical envolvendo cadeias de distribuição geralmente reduzem a competição intramarca para aumentar a competição entre as marcas, o que produziria um efeito ambíguo em relação à concorrência (ou seja, não necessariamente tornando o mercado menos competitivo).

No caso da Lei Ferrari não é diferente. Ao apoiar-se na exclusividade garantida por lei, as montadoras exigem que as concessionárias comercializem apenas veículos novos de sua marca, garantindo, em contrapartida, que maiores investimentos sejam realizados em seu canal de distribuição.

Ora, no contexto de mercados cada vez mais influenciados pelo e-commerce, como é o caso do mercado automobilístico, talvez nunca tenha sido tão importante fortalecer a cadeia de distribuição, que exerce uma função relevante em relação ao consumidor final, prestando serviços auxiliares que podem ser decisivos à decisão sobre adquirir ou não um veículo, dado o alto valor agregado deste produto.

Dispositivos questionados
A Procuradoria-Geral da República, contudo, questionou a constitucionalidade de diversos dispositivos da Lei Ferrari, apontando que violariam os preceitos fundamentais da livre-iniciativa, da liberdade de contratar, da defesa do consumidor, da defesa da concorrência e da repressão ao abuso do poder econômico. Como a Lei Ferrari é anterior à Constituição de 1988, o juízo a ser feito pelo Supremo Tribunal Federal é sobre se a lei deveria ou não ser recepcionada pela Carta Magna.

Em resumo, a PGR afirma que a Lei Ferrari não poderia criar “imunidades” ou “isenções” antitrustes para o setor, impedindo a repressão de condutas abusivas, e que o cenário econômico permitido pela lei permite a colusão horizontal e vertical entre concessionárias e montadoras.

O problema é que a declaração de não-recepção de tantos dispositivos centrais da Lei Ferrari poderá muito bem acarretar a declaração de inconstitucionalidade da integralidade da Lei Ferrari por arrastamento, tendo em vista que restará completamente esvaziada de aplicação, e, se assim for, será dificílimo estimar todos os efeitos econômicos que a total invalidação da Lei poderá acarretar ao setor automotivo, arriscando-se uma absoluta desestruturação, dado o vácuo legislativo de regulamentação na ausência da Lei Ferrari.

Em situações como esta, não é demais lembrar que toda lei deve se presumir constitucional, somente podendo vir a ser declarada inconstitucional se for claramente incompatível com regras ou princípios constitucionais. Considerações abstratas acerca de hipotéticos prejuízos à concorrência e ao consumidor, com base exclusivamente na análise dos dispositivos de lei, não devem provocar a pena de nulidade ab ovo do principal diploma normativo que, há 44 anos, disciplina um setor que representa aproximadamente 22% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.

Ora, a Lei Ferrari aparenta atingir o fim para o qual foi inicialmente pensada, isto é, fortalecer a cadeia de distribuição do setor. Sendo assim, para que a litigância regulatória antitruste produza o efeito que almejamos ao nosso sistema, o prejuízo da atual regulação para os consumidores e para a concorrência deve ser efetivamente demonstrado, não podendo permanecer no plano da conjectura.

Para sair do plano abstrato, aqueles que atuam no setor, dos mais diversos níveis, devem ser ouvidos para que se possa colher o maior número possível de visões acerca do tema, para ser possível, com alguma segurança, formar um quebra-cabeça que retrate, ainda que de forma limitada, a realidade do setor e as múltiplas configurações jurídicas em operação.

Ademais, ressalta-se que a ponderação de valores proposta pela Procuradoria-Geral da República (entre defesa da concorrência, proteção ao consumidor, liberdade de contratação, autonomia privada e até mesmo o desenvolvimento econômico) já foi feita pelo Poder Legislativo no momento da elaboração da lei. A substituição da ponderação de valores do Poder Legislativo pela do Poder Judiciário é uma medida que deve (ou deveria) ser adotada em caráter excepcional, como excepcional é o próprio controle de constitucionalidade, sob pena de se esfacelar o devido processo legislativo para dar lugar às decisões tomadas pelo Poder Judiciário.

O julgamento da ADPF 1.106 será, portanto, uma forma de testar de que forma a função autônoma da litigância regulatória antitruste contribui à otimização da competitividade nacional. Vale lembrar que, no Direito Antitruste, os efeitos líquidos da intervenção estatal, seja ela judicial, legislativa ou administrativa, podem ser pouco óbvios e até ambíguos. Por isso, a necessidade de cautela e quiçá (a tão falada) contenção. Esperemos as cenas dos próximos capítulos.


[1] KESSLER, Daniel P. Introduction. In KESSLER, Daniel P. (Ed). Regulation Versus Litigation: Perspectives from Economics and the Law. University of Chicago Press, 2011.

[2] BRADFORD et Al (2019) revisam a literatura sobre o tema chegando na conclusão de que o sistema europeu prevaleceu sobre o americano (BRADFORD, Anu, et al. The Global Dominance of European Competition Law Over American Antitrust Law, JOURNAL OF EMPIRICAL LEGAL STUDIES, vol. 16, P. 731, 2019 (2019).

[3] Esta taxonomia é uma conclusão parcial fruto dos meus estudos ao longo do doutorado que Ana Sofia está prestes a defender junto à Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Roberto Pfeiffer e coorientação do Professor Bruno de Oliveira Maggi.

[4] As ações de reparação de danos concorrenciais (ARDCs) representam a face privada do combate às condutas anticompetitivos no Brasil. São ações judiciais propostas na esfera cível por agentes privados ou públicos afetados por condutas anticompetitivas, nas quais são pleiteadas indenizações morais e materiais. Essas ações ganharam impulso a partir das novidades promovidas pela Lei nº 14.470/2022. A respeito, de forma ampla: SIGNORELLI, Ana Sofia Monteiro; PEREIRA, Cesar. Arbitragem concorrencial em perspectiva – Da natureza jurídica aos desafios procedimentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.

[5] Chevron U.S.A., Inc. v. Natural Resources Defense Council, 467 U.S. 837 (1984)

[6] LAFFONT, Jean-Jacques; REY, Patrick; TIROLE, Jean, Competition between telecommunications operators. European Economic Review, v. 41, n. 3–5, p. 701–711, 1997.

[7] GRAU, Eros; FORGIONI, Paula A. Restrições à concorrência, autorização legal e seus limites. Lei 8.884, de 1994, e Lei 6.729, de 1979 (“Lei Ferrari”). In: Boletim Latino-Americano de Concorrência. nº 9. Parte 4. Fevereiro de 2000. p. 6- 7.

[8] Por exemplo, no julgamento do paradigmático caso Continental et Al vs. GTE Sylvania (1977), em que a Suprema Corte decidiu pela utilização da regra da razão em casos que envolvessem fixação de preços de revenda (ou “retail price maintenance”)

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  • é doutoranda em Direito da Concorrência pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Empresarial Internacional e Direito Econômico na Georgetown University Law Center, bolsista Fulbright como pesquisadora visitante na George Washington University, head do Doing Business in Brazil 2024 da Associação Brazla, co-organizadora de eventos na Georgetown International Arbitration Society (GIAS), bolsista do Center for Transnational Business and the Law (CTBL), bolsista do Institute of International Economic Law (IIEL), professora de Direito no IDP, pós-graduada em Direito Econômico e da Concorrência pela Fundação Getúlio Vargas, mestre em Administração de Empresas pela Coppead Graduate School of Business e bacharela em Direito (UFRJ), Economia (Ibmec-RJ) e Relações Internacionais (Ibmec-RJ).

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