Opinião

O princípio da sustentabilidade e a dignidade humana

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25 de janeiro de 2024, 11h17

A partir de uma visão consagrada na doutrina [1], para dar à dignidade humana uma dimensão jurídica-operacional é preciso compreendê-la como categoria fundante de todo o sistema jurídico, valor que identifica o ser humano [2] e se harmoniza com o pluralismo e a diversidade que se manifestam nas sociedades democráticas [3].

Como tal, esse valor fundamental é expresso (CRFB/88, artigo 1º, III [4]) como princípio jurídico com status constitucional, funcionando como instrumento exegético-conceitual, indutor, orientador, com função interpretativa e reguladora de todo o sistema político-jurídico, ao qual estão submetidas legislações, tomadas de decisão e políticas públicas.

Na tentativa de extrair o seu conteúdo mínimo [5], a dignidade humana identifica: o valor intrínseco de todos os seres humanos; a autonomia de cada indivíduo; e as limitações a ela impostas em razão de relevantes valores sociais e comunitários.

No primeiro plano, o valor intrínseco equivaleria ao elemento ontológico da dignidade humana e estaria ligado à natureza íntima do ser. Desse modo, estar-se-ia diante de um elemento objetivo, porquanto independente de qualquer evento externo, não podendo ser transferido ou extinto. Justamente esse elemento que sustenta o conjunto de direitos fundamentais, como à vida, à igualdade e à integridade.

Na sua concepção mais ampla [6][7], deve-se compreender o direito à vida tanto numa dimensão individual, como na própria existência das condições mínimas para o projeto de vida na Terra, tanto para a presente, como para as futuras gerações (solidariedade intergeracional), perspectiva que incorpora a singular responsabilidade (JONAS, 2007) que temos sobre nossa casa comum [8].

Na análise de João Batista Farias Junior (JUNIOR, 2021), tanto Hannah Arendt [9] quanto Hans Jonas afirmam que nossa liberdade mantém uma relação de estreita vinculação com nossa responsabilidade pelo mundo e pela Terra.

Desse modo, dignidade da pessoa humana e sustentabilidade são institutos tão interrelacionados, que hoje é possível responder com certa tranquilidade à indagação: é concebível a dignidade da pessoa humana diante de um estado de coisas insustentável? Se a resposta for negativa (e certamente é) pode-se dizer que um princípio não existe sem o outro.

Nas palavras de Ingo Sarlet (SARLET, 2023), o pacto político-jurídico intra e intergeracional deve estabelecer diretrizes normativas que assegurem uma distribuição equânime e proporcional de direitos fundamentais entre as gerações presentes (com especial proteção aos vulneráveis) e as futuras .

Decorre daí, portanto, o princípio da sustentabilidade como parâmetro constitucional (artigos 1º, III, 3º, 170, inciso VI, e 225 da CRFB/88) revelando-se verdadeiro paradigma voltado à promoção de um futuro resiliente e possível, à saúde de nossos ecossistemas, à vedação ao retrocesso ambiental e social.

A Constituição está em constante construção e desenvolvimento. Em diversos trechos, sua tessitura aberta permite a incorporação de novos conteúdos de direito fundamental para o aperfeiçoamento do sistema. Não há momento mais oportuno para incorporar a sustentabilidade à dignidade da pessoa humana e vice-versa.

Sobre essa nova realidade, em reforço ao apelo de inúmeros pesquisadores ao redor do mundo, na exortação apostólica laudate deum, destacou o santo padre que estamos vivenciando um problema social global intimamente ligado à dignidade da vida humana.

É preciso sensibilizar nossa geração acerca dos desafios do antropoceno [10], da complexidade e a interligação das grandes questões sociais, econômicas e ambientais, do risco de degradação de ecossistemas, do comprometimento da integridade de processos ecológicos e da perda de biodiversidade, a partir de uma visão mais holística e sistêmica da vida [11], considerando o ser humano como parte integrante da natureza [12].

Nossa era tem a responsabilidade de deixar como legado ecológico e planetário [13] às futuras gerações um planeta vivo que permita uma existência digna, mais justa e igualitária.

Frente à emergência do clima, é necessário concretizar a sustentabilidade em larga escala com valor e propósito, de modo a promover uma agenda de impacto para adequar nossa coexistência às drásticas consequências advindas das alterações que estão sendo projetadas. Mesmo nos cenários mais conservadores beiramos a “vingança de Gaia”[14].

As mudanças climáticas [15] provocadas pelo homem aumentaram sensivelmente a ocorrência de fenômenos extremos, sendo cada vez mais frequentes e intensas fortes chuvas, queimadas, inundações, secas, calor, poluição do ar, branqueamento de corais, perda de biodiversidade, contato com patógenos, acidificação, redução do oxigênio no oceano, degelo, desertificação, tempestades de granizo e neve.

Conforme relatório [16] do Estado Global do Clima, pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), até outubro deste ano, a temperatura média da superfície global ficou 1,4°C acima da média calculada entre 1850/1900 (pré-industrial). Ainda segundo o estudo, o ano de 2023 [17] foi considerado até agora o mais quente em 174 anos de medições, com concentrações de gases tóxicos em níveis recordes.

Desde a revolução industrial, já aquecemos sensivelmente o planeta [18] como resultado da queima de combustíveis fósseis, desmatamento, e do uso insustentável de recursos sobretudo por países já desenvolvidos.

Caso ultrapassados os 2° C (dois graus celsius), as calotas polares derreterão em velocidade rápida o gelo não submerso, o que elevará significativamente o volume de água nos oceanos e liberará na atmosfera uma quantidade significativa de metano represado no permafrost, o que traria consequências ainda mais gravosas para a vida no Planeta.

O Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus (C3S), a agência europeia do clima, divulgou em recente relatório [19], que, com metade dos dias acima do limiar de perigo para extremos climáticos, o ano de 2023 foi confirmado como o mais quente já registrado.

No dia 30 de novembro de 2023, nos Emirados Árabes Unidos, o Presidente do IPCC proferiu discurso durante a cerimônia de abertura da COP28 para destacar que as avaliações científicas são cada vez mais claras e certas sobre as alterações climáticas, os seus impactos e os riscos futuros para a humanidade.

Enfatizou o pesquisador que mudanças rápidas ocorrem em todos os ecossistemas em razão das intervenções do homem. Consequência disso são extremos meteorológicos e climáticos sentidos em todas as regiões do mundo, bem como impactos adversos generalizados e perdas significativas de vidas.

As comunidades mais vulneráveis, que historicamente menos contribuíram para as atuais mudanças climáticas, estão sendo desproporcionalmente afetadas em uma magnitude sem precedentes na história. Os impactos climáticos, alguns já irreversíveis, estão disseminados e se intensificando.

O relatório sobre a lacuna de adaptação (PNUMA, 2023), lançado em 2 de novembro de 2023, demostra que caminhamos para um aquecimento global de 2,6°C até o final deste século se continuarmos com as políticas atuais.

O financiamento necessário para implementar as prioridades de adaptação é estimado em US$ 387 bilhões por ano, e há um reconhecimento global de que as alterações climáticas podem exacerbar as desigualdades em suas múltiplas dimensões.

A avaliação do primeiro balanço global (global stocktake) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima apontou uma lacuna significativa para o atingimento das metas do Acordo de Paris (UNFCCC, 2023).

Será preciso adequar-se às megatendências (Banco Mundial, 2023). Adaptar-se às mudanças tecnológicas, às mudanças climáticas e às mudanças demográficas. É preciso um círculo virtuoso inclusivo para impulsionar o crescimento de forma ambientalmente sustentável, enfrentar a desigualdade, fortalecer a proteção social e melhorar o acesso a serviços de infraestrutura.

A nova taxonomia sustentável brasileira (2023) parece atender em parte esse novo padrão, à medida que procura trabalhar no seguinte eixo: finanças sustentáveis, adensamento tecnológico, bioeconomia, transição energética, economia circular e nova infraestrutura.

Esses modelos têm em comum um pensamento complexo [21] sobre as grandes questões que enfrentamos na atualidade. Procuram resgatar uma cosmovisão possivelmente perdida em razão de uma abordagem exclusivamente centrada no debate econômico.

Em algum momento da nossa história, o ser humano se afastou da natureza e dos outros seres. É preciso voltar a se conectar com o planeta. É necessário agir mais e mais rápido, e o tempo certo para isso é hoje e agora, porque a vida se constrói de caminhos e não nas chegadas.

Nossas escolhas, individuais ou coletivas, públicas ou privadas, devem priorizar atividades que não agravem a emergência climática. E como tratar temas tão importantes com a velocidade necessária para nos adaptarmos aos eventos que prometem modificar profundamente a forma como nos organizamos e vivemos?

A resposta amadurece à medida que a ciência evidencia a interconexão entre ações antrópicas, perda de biodiversidade e fenômenos climáticos cada vez mais recorrentes e intensos, tudo isso combinado com um pool de desigualdades, fome e outros problemas sociais. Neste contexto, a sustentabilidade surge como um dos principais antídotos para o enfrentamento dessas adversidades.

A incorporação da sustentabilidade como princípio constitucional parece tracionar essa agenda. A densificação do seu conteúdo axiológico emerge como mais um reforço à reafirmação da dignidade da pessoa humana como princípio mãe conformador do projeto constitucional comprometido com o futuro da vida e com a concretização de outros direitos fundamentais.


[1] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional Contemporâneo: A construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Tradução de Humberto Laport de Mello. 3ª ed. Belo Horizonte/MG: Fórum, 2014;

[2] SARLET, Ingo Wolfgang. In Dignidade da pessoa humana na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Cita a sugestiva lição de Peter Häberle, Die Menschenwürde als Grundlage der staatlichen Gemeinschaft, in: Joseph Isensee-Paul Kirchhof (Org.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik  Deutschland, Heidelberg: C.F. Muller, 1987, v. I, p. 853;

[3] Rocha, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social, Revista Interesse Público, n. 4, p. 24, 1999;

[4] CRFB/88. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana;

[5] Ibidem;

[6] Miranda, Jorge.: “a dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta.” In Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, op. cit., v. IV, p. 199;

[7] SARLET, Ingo Wolfgang; Fensterseifer, Tiago. As futuras gerações como titulares do Direito Fundamental ao meio ambiente e ao clima (limpo, saudável e seguro)? GenJurídico. 2023. Disponível em https://blog.grupogen.com.br/juridico/areas-de-interesse/ambiental/futuras-geracoes-direito-fundamental/. Consulta realizada em 10/01/2024;

[8] No dia 4 de outubro do ano 2023, na exortação apostólica (LAUDATE DEUM, 2023), o Santo Padre Francisco manifestou[8] profunda preocupação pelo cuidado com a Casa Comum, diante das evidências de que o mundo se aproxima de um ponto de ruptura climática;

[9] ARENDT, Hannah. A condição humana. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015;

[10] SCARANO, Fabio R.; Padgurschi, Maíra C. G.; dos Santos, Laísa M. Freire; Aguiar, Anna Carolina F., Carneiro,  Beatriz L.R.; Pires, Aliny. Para além dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável: desafios para o Brasil. No prelo na revista Bio Diverso, Versão final: 23 de junho de 2021. “O ser humano moderno dessacralizou a natureza ao percebê-la e tratá-la ora como recurso, ora como obstáculo, para seus fins de ganho pessoal que, em geral, envolvem ânsia pelo poder, acúmulo de capital ou ambos. Para alcance desses mesmos fins, passou também a tratar o próximo como commodity, portanto contrariando o imperativo categórico de Immanuel Kant (1724-1804), um dos fundadores da própria modernidade: “age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio”. A resultante desse processo –que a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) chamava de alienação do mundo e da Terra – é o Antropoceno. Esse termo, cunhado por Paul  Crutzen  &  Eugene  Stoermer,  se  refere  à  presente  era geológica que se diferencia do Holoceno por conta dos impactos humanos sobre o planeta. A ciência aponta que, em decorrência da ação humana, indicadores médios referentes à vida no planeta saíram de seus limites históricos”;

[11]CAPRA, Fritjof; LUISI, Pier Luigi. A Visão Sistêmica da Vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. Tradução de Mayra Teruya e Newton Roberval. 1ª ed. São Paulo: Cultrix, 2014;

[12] SCARANO, FABIO R. Volta ao Lar? Uma Breve História da Relação Ser Humano-Natureza. Inspira Ciência: Programa de Formação de Professores da Educação Básica. Vol. 02. Rio de Janeiro: IDG: | Museu do Amanhã, 2020. p.70;

[13] THUNBERG, Greta. O Livro do Clima. Tradução Claudio Alves Marcondes. – 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2023. Vide também reivindicações do movimento estudantil Fridays for Future;

[14] LOVELOCK, James. A vingança de gaia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006.

[15] MARGULIS, Sergio. Mudanças do Clima: Tudo que você precisa saber. 1ª ed.  Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2020;

[16] Provisional State of the Global Climate 2023, publicado em 30 de novembro de 2023. Disponível em https://wmo.int/files/provisional-state-of-global-climate-2023. Consulta realizada em 05 de janeiro de 2024;

[17] Superando os anos de 2016, com 1,29°C acima da média, e 2020, com 1,27°C acima da média.

[18] Após recordes seguidos em junho, julho, agosto, setembro e outubro, o mês de novembro de 2023 foi o mais quente já registrado no planeta, segundo o Serviço Copernicus para Mudança Climática (C3S), tendo apresentado uma temperatura média global de 14,22°C, e 0,32°C acima do recorde anterior para o mês, estabelecido em novembro de 2020. O C3S aponta também que 2023 foi o ano mais quente já medido na Terra. Novembro de 2023 foi também 1,75°C mais quente do que a média de novembro do período 1850-1900, que corresponde à era pré-industrial. Disponível em https://climate.copernicus.eu/. Consulta realizada em 02/01/2024;

[19] Disponível em https://climate.copernicus.eu/copernicus-2023-hottest-year-record. Consulta realizada em 10/01/2024;

[20] https://www.ipcc.ch/2023/11/30/ipcc-chair-opening-cop28/;

[21] MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. 5 ed. Porto Alegre: Sulina, 2015;

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