Opinião

Questões entre as atividades típicas da advocacia e o delito de lavagem de dinheiro

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19 de dezembro de 2023, 16h21

Publicado no último dia 12 [1], o relatório do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) aponta, mais uma vez, a necessidade de o Brasil criar mecanismos para aprimorar a detecção de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, principalmente no setor não financeiro, com foco na advocacia.

Com base nesta exigência — a qual se reitera desde 2009, ano da primeira crítica no relatório do Gafi —, este artigo examinará em que medida o advogado está sujeito às incidências da Lei de Lavagem de Dinheiro.

Para tanto, serão feitas breves reflexões e apontamentos sobre: a obrigatoriedade do advogado em prestar informações aos órgãos de controle (Coaf); a verificação do momento em que o advogado deve se abster de prestar assessoria ou consultoria jurídica; e, por fim, a legalidade na aceitação pelo advogado de honorários com valores provenientes de atividade criminosa.

Conforme pontua André Callegari [2], a reforma da Lei nº 9613/98 inovou quanto à posição do advogado frente ao mencionado delito, sendo possível determinar dois momentos distintos em que se dá tal questionamento: a aceitação de honorários maculados e a obrigação do advogado em fornecer informações como se mero consultor fosse.

No que diz respeito à obrigação em fornecer informações, prevista nos artigos 10 e 11 da Lei nº 9.613/98, o legislador estabeleceu, no artigo 9º, uma lista de setores de atividades sensíveis à lavagem de dinheiro, cujos profissionais devem colaborar com a repressão à prática.

Esses profissionais devem compilar e sistematizar dados sobre os usuários dos seus serviços, bem como comunicar às autoridades competentes sobre atividades suspeitas de lavagem de dinheiro, sem que seja dada ciência ao denunciado.

No que interessa ao presente estudo, o inciso XIV, do artigo 9º, da Lei nº 9.613/98, incluiu entre os sujeitos submetidos à obrigação de comunicação pessoas físicas ou jurídicas que prestam, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, nas mais diversas operações.

Em uma primeira leitura do texto legal, portanto, poder-se-ia inferir que o conceito amplo do termo “de assessoria, consultoria de qualquer natureza” englobaria a atividade advocatícia, nos termos do artigo 1º da Lei 8.906/1994.

Ocorre que, especificamente em relação à atividade do advogado, a discussão é mais complexa. Isso porque a Lei nº 8.8906/94 prevê o sigilo e a inviolabilidade das informações do cliente que estão sob custódia do advogado — tornando a atividade incompatível com o dever de informar. Inclusive com contornos penais [3] quando infringido este dever.

A discussão, que no ano de 2015 foi reforçada por meio da diretiva nº 2015/849, o Parlamento Europeu e do Conselho da UE [4], impulsionou, no Brasil, no final do ano de 2020, que o presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei de Lavagem de Dinheiro da OAB encaminhasse proposta ao plenário do Conselho Federal da entidade, postulando pela exoneração de algumas atividades da advocacia do dever de comunicação às autoridades e incluindo outras [5].

Conforme a sugestão encaminhada, ficariam submetidos ao dever de comunicação ao Coaf os advogados que atuam na compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais ou participações societárias de qualquer natureza; de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos; de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valores mobiliários; de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas; financeiras, societárias ou imobiliárias; e de alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais.

Por outro lado, não se sujeitariam às obrigações de comunicação aqueles que prestam consulta jurídica ou emissão de pareceres para orientar ou determinar a posição jurídica do cliente, inclusive por advogado interno de empresas ou de instituições que não sejam caracterizadas como sociedade de advogados, desde que não caracterizem prestação de serviços na preparação ou execução das operações supramencionadas, de representação em processos judiciais, administrativos, fiscais, arbitrais, de conciliação ou mediação, inclusive as atividades de consultoria, aconselhamento, assessoria sobre o início ou a evitação de um litígio ou procedimento de qualquer natureza.

A proposta enviada ao Conselho Federal da OAB, contudo, foi rejeitada em abril de 2021, sob o argumento de que a matéria já havia sido objeto de deliberação em outros anos, não havendo alteração fática/legislativa apta a modificar o quadro legal.

Expostas as questões atuais que circundam o debate, a conclusão destes autores a respeito do tema, conforme se demonstrará, é no sentido de que as atividades típicas e privativas da advocacia não estão sujeitas à obrigação de comunicação prevista no artigo 10 da Lei nº12.863/2012.

Isto porque o sigilo profissional garantido por lei ao advogado deve ser visto como ponto basilar do estado democrático de direito. Não por outra razão, o legislador assegurou ao advogado, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins.

Além disso, como pontua Carlos Gomes Jara Diez [6], não pode o advogado se tornar um “policial encoberto sob o manto da relação profissional”.  Tendo, a referida sujeição o potencial de colocar em risco a sua liberdade de atuação e a liberdade de seus clientes.

Além disso, nos parece que se, por um lado, a Lei de Lavagem estabelece que as pessoas prestadoras de assessoria ou consultoria de qualquer natureza se submetem ao dever de informação, por outro a Lei 8.906/1994 — de idêntica hierarquia —, garante a tais profissionais o dever de sigilo (artigo 7º). Por esta razão, o conflito aparente de normas deve ser resolvido pelo princípio da especialidade, com a consequente aplicação da norma prevista no Estatuto da Advocacia.

Ditas tais questões, cumpre ressaltar que a prerrogativa da profissão não pode ser entendida como um subterfúgio para a prática do crime de lavagem de ativos, sob pena de, a depender da hipótese, incorrer na prática delitiva.

Segundo Isidoro Blanco [7], assim que o profissional tem ciência de que sua assessoria está sendo utilizada para fins ilícitos, deve se privar de trabalhar com seu cliente, sob pena de concorrer para a prática do delito de lavagem de ativos.

A verificação de tal situação, porém, não é simples. Para tentar sanar as lacunas legislativas, a doutrina sugere, há tempos, a criação de recomendações que sirvam de “standards profissionais para os advogados de consultoria”, e, assim, fixe parâmetros de risco permitido para orientar o profissional em sua atuação.

Nesse sentido, Heloisa Estellita [8] sugere a criação de recomendações que sirvam de “standards profissionais para os advogados de consultoria ou assessoria jurídica estrita no sentido de identificar situações de risco de lavagem que demandassem especial atenção ou, no limite, a recusa na prestação dos serviços pretendidos”, servindo como “padrões de diligência que protegessem os advogados de indevidas imputações de prática de lavagem quando da prestação legítima de seus serviços”.

Sem prejuízo, enquanto tais normativas não são estabelecidas, cumpre lembrar que a colaboração material dos advogados somente terá relevância penal se:

“(1) o agente criar um risco, (2) esse risco não for permitido – (2.1) porque desrespeita normas, atos normativos e regras técnicas profissionais de cuidado ou (2.2) porque viola o dever normal de cautela derivado da experiência geral da vida, que consiste no dever de cuidado ou abstenção nos casos em que (2.2.1) seja previsível o resultado e que (2.2.2) seja exigível o cuidado (3) esse risco não permitido contribuir causalmente para o resultado e (4) o resultado estiver dentro do âmbito de abrangência da norma de cuidado.” [9]

Embasado nestas premissas, o advogado, em situações de dúvida, deve observar os parâmetros acima para, a depender da hipótese, se abster de prestar a consultoria jurídica.

Consolidadas as questões acima, passa-se a última proposta de análise do presente estudo, a (a) tipicidade da conduta do advogado que recebe honorários maculados.

Ainda que óbvia, a premissa universal a ser utilizada no presente tópico deve ser ressaltada: a contratação do advogado reflete a efetiva prestação dos seus serviços, nos termos do caput artigo 1º da Lei 8906/1994.

A norma citada estabelece que há conduta quando ocorre a dissimulação ou ocultação da natureza, origem, localização movimentação ou propriedade de proventos sabidamente ilícitos [10].

Nesse caso, ainda que os valores depositados na conta do escritório de advocacia — referentes à contratação e à prestação de serviços advocatícios — tenham sido obtidos com a prática de determinada infração, observa-se que a conduta é atípica por não haver ato objetivo de lavagem do dinheiro. A transparência/formalidade do pagamento afasta a incidência do dispositivo.

Não há crime uma vez que o recebimento dos valores se deu como contraprestação por serviços prestados e não, como exige o elemento subjetivo especial do tipo, para ocultar ou dissimular a sua utilização [11].

Logo, o pagamento de honorários com dinheiro de origem delitiva ao advogado implica um “ato de transformação do dinheiro em serviços profissionais do defensor”, não gerando por si só “ocultação ou dissimulação de sua origem nem consolidação da capacidade econômica daquele que o entrega”, pois, em princípio, permanece nos limites do risco permitido à atividade profissional respectiva [12].

A doutrina [13] aponta que a solução para o impasse deve ser resolvida pelo princípio do livre exercício da advocacia e indispensabilidade do advogado, desde que, obviamente, os serviços advocatícios sejam prestados. Afinal, a cobrança de honorários segundo práticas habituais jamais poderá imputar ao advogado a responsabilidade penal da lavagem de dinheiro.

Menciona-se, ainda, as denominadas “causas de justificação”, as quais consistem no reconhecimento da preponderância do direito de ampla defesa, devido processo legal e presunção de inocência quando contraposto à incriminação da conduta do advogado que presta serviço indispensável à justiça.

Fica claro, também que não se amoldam à figura típica prevista no caput do artigo 1º da Lei 9613/98 as demais formas previstas em lei (§1º e 2º), em razão da ausência da intenção de ocultar ou dissimular no recebimento dos valores a título de pagamento, tratando-se, apenas, de remuneração por seus serviços.

Portanto, “o mero beneficiário dos valores lavados não participa do crime, mesmo que saiba da sua prática e isso vale para o advogado contencioso e para o consultivo, pois o recebimento de honorários é relacionado com a prestação de serviços prestados em si e não com o conteúdo do serviço” [14].

Diante destas construções teóricas, as conclusões são:

Quanto a obrigação fornecer informações sobre seus clientes, diante da proteção legal específica prevista na Lei nº 8.906/94, esta revela-se inadequada.

Sobre o momento em que o advogado deve se abster de prestar consultoria e assessoria jurídica; por não ser de fácil inferência, a criação de recomendações que sirvam de “standards” e fixem parâmetros de risco permitido para orientar o profissional em sua atuação parece ser a solução adequada.

Por fim, quanto aos casos de recebimento de honorários pelo advogado, é situação de latente atipicidade do crime de lavagem de dinheiro, uma vez que não se trata de ocultação ou dissimulação, mas somente valores recebidos em contraprestação a serviços efetivamente prestados.

Sem prejuízo das conclusões expostas acima, é preciso reconhecer que a discussão ainda está longe de ser pacificada ou concluída. Como apontado no início do presente estudo, estão em tramitação inúmeros projetos de lei [15] que pretendem, por exemplo, obrigar os advogados a fornecer informações sobre seus clientes aos órgãos de controle.

É preciso cuidado.

Enquanto as propostas legislativas não são deliberadas, estes autores reafirmam ser necessário aprofundar o debate sobre a criação de mecanismos e diretrizes de autorregulação dos deveres e responsabilidades dos advogados e sociedades de advogados relacionados à prevenção da lavagem de capitais, como meio apto ao livre exercício profissional.

 


 

[1] Grupo de Ação Financeira Internacional pede mais combate à lavagem de dinheiro. Disponível em:<https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/12/12/grupo-de-acao-financeira-internacional-pede-mais-combate-a-lavagem-de-dinheiro.ghtml>

[2] Callegari, André Luís. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014. p 117

[3] Art. 154- Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

[4] Badaró, Gustavo Henrique. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. Comentários à Lei 9.613/98. 3ª edição. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2016. p. 186

[5] Acesso em 02.11.2021. https://www.conjur.com.br/dl/proposta-oab-preve-advogados-comuniquem.pdf

[6] Ibid. p. 192

[8] ESTELLITA, Heloísa. Advocacia e lavagem de capitais: considerações sobre a conveniência da autorregulamentação. In Exercício da advocacia e lavagem de capitais. Editora FGV, 2017, p. 19.

[9] BADARÓ, Op. Cit., p. 181

[10] ESTELLITA, Op. Cit., p.69

[11] ESTELLITA, Op. Cit, p.70

[12] SANCHEZ RIOS, Op. Cit., p. 190/191

[13] MANZANO, Pérez. Neutralidad delictiva y blanqueo de capitales: el ejercicio de la abogacía y la tipicidad del delito de blanqueo de capitales. Madrid: La Rioja. p. 20. In. Callegari, André Luís. Lavagem de dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014. p 120

[14] BADARÓ, Op. Cit., p. 196

[15] PL 3787/2019, 4341/2012 e 5668/216

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