Opinião

Reforma tributária: constitucionalidade do elefante na sala da Federação

Autor

  • Pedro Merheb

    é pesquisador do Observatório do Poder Legislativo do IDP e monitor das matérias de Organização do Estado e Direito Administrativo.

18 de dezembro de 2023, 17h15

Recentemente, o economista Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda do Município de São Paulo,  expressou em um evento sobre a reforma tributária que o Congresso bebeu muito dos economistas, e deveria ter feito o mesmo em relação aos advogados, visto que, para algumas rodas de operadores do direito tributário, a Federação é infensa a uma unidade como o Comitê Gestor, e essa observação não pode passar ignorada.

A questão se agravou com o anúncio da provocação do Supremo Tribunal Federal pelo governador Ronaldo Caiado (GO) para derrotar o Comitê Gestor com mesma causa de pedir articulada pelo deputado Orleans de Bragança (PL-SP), em um mandado de segurança impetrado na Corte ainda durante a tramitação na Câmara dos Deputados.

A festejada reforma tributária sobre o consumo (PEC 45-A) foi solenemente aprovada no Senado Federal, e já se encontra sob os cuidados do relator Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) na Câmara dos Deputados. A euforia em torno da aprovação do nosso IVA caboclo, no entanto, não apagou alguns focos controversos do substitutivo.

Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados
câmara dos deputados reforma tributária

Enquanto o impacto econômico da reforma tributária predominava nos embates sobre a adoção do IVA, as implicações estruturais sobre a arquitetura federativa brasileira foram marginalizadas do debate público até que, às vésperas da discussão pelo Plenário da Câmara dos Deputados, os gestores sub-nacionais despertaram para o fato de que a unificação de tributos de esferas distintas não é possível sem a centralização da administração tributária, provocando esperada reatividade de lideranças políticas de todas instâncias políticas e federativas.

Este fato, porém, não é uma novidade introduzida pelo parecer do relator na Câmara dos Deputados. O alcunhado “comitê gestor” das PECs 45 e 110, era, em linhas mais tímidas e superficiais, o embrião do que veio a se tornar Conselho Federativo sob os auspícios do relator Aguinaldo Ribeiro, consagrado no artigo 156-B do substitutivo aprovado pelo Plenário.

A Morte e Vida do Comitê Gestor, aproveitando o título de um conhecido auto de Natal pernambucano, ocorreu antes da promulgação da PEC 45-A. O relator Aguinaldo Ribeiro, talvez incomodado com a característica soviética da denominação proposta para o órgão e os comentários anedóticos que atraía, decidiu apresentá-lo sob uma identificação que mitigasse as inquietações relacionadas à sua (in)compatibilidade com uma organização federativa de Estado, perfilhando assim o Conselho Federativo, decisão que não fez senão agravar o alarde durante a fase revisora da reforma.

O ciúme, perfeitamente compreensível, do Senado em conceber uma unidade de representação federativa paralela foi purgado pelo engenho e arte do senador Eduardo Braga (MDB-AM) que ressuscitou o Comitê Gestor do texto inicial, desta vez em termos mais modestos do que aqueles traçados pela Câmara dos Deputados, a qual, ao reproduzir textualmente a proposta auspiciada pela Secretaria da Fazenda, ensaiava o mais exótico e agressivo dos jaboticabais concebidos pela República — e o fazia não porque fosse esta a vontade da Secretaria, mas porque nem sempre a comunicação entre a política econômica e o direito é atentamente conduzida pelos seus operadores, provocando ruídos indesejados por todos.

Ironicamente, o comitê gestor engendrado pelo relator Eduardo Braga, destituído de poderes regulamentares e reduzido a uma unidade operacional, guarda mais afinidade com o modelo imaginado pela Secretaria da Fazenda que com aquele concebido pelo Deputado Aguinaldo Ribeiro.

O aperfeiçoamento técnico, porém, da sua figura não foi bastante para denodar o que talvez seja um dos pontos mais críticos da reforma tributária: a sua constitucionalidade. Feitas essas considerações, analisemo-la.

Comitê gestor à luz da forma federativa de Estado
O debate sobre a validade do Comitê Gestor opera em duas dimensões: uma constitucional, relativa a sua validade sob a forma federativa de Estado, e outra eminentemente burocrática, relacionada à sua estrutura e operacionalização das suas competências. Este texto contempla exclusivamente a primeira em suas reflexões.

Considerando que a forma federativa de Estado é uma limitação material ao poder de reforma da Constituição, seria constitucional uma Proposta de Emenda que reconfigurasse a autonomia fiscal das unidades federativas para centralizar da administração e distribuição das receitas tributárias?

Ao consignar limitações materiais ao poder de reforma, não pretendera o constituinte senão evitar um processo de erosão constitucional, por reformas que envileçam o tratamento constitucional dos bens jurídicos que conformam a identidade da Constituição, não cogitando, em absoluto, a petrificação sobre tais bens ou temas correlatos.

O próprio constituinte acautelou-se em destacar que é defeso ao parlamento a deliberação de propostas de emenda tendentes a abolir o núcleo essencial, expressão importada do direito constitucional italiano pelo ministro José Paulo Sepúlveda Pertence [1], de quaisquer dos bens jurídicos enumerados pelo § 4º do artigo 60 da Constituição, e não de qualquer proposta a eles relacionadas. Feito este registro preliminar, passemos à análise do Conselho Federativo à luz do núcleo essencial da forma federativa do Estado, objeto deste texto.

Ao manifestar-se sobre a forma federativa em que o Estado brasileiro se constitui, o constituinte de 1988, com a excelência característica da sua técnica, tratou de capitular em um só dispositivo (1) a estrutura da Federação (2) o fundamento cardinal de qualquer arranjo federativo que se preze: a autonomia.

A autonomia das unidades federativas é a condição sem a qual não é possível que um Estado se organize como federação e, por conseguinte, é seguro deduzir que é precisamente neste instituto que repousa o núcleo essencial da forma federativa do Estado constitucional de 1988.

Assim, para verificar a compatibilidade da centralização tributária preconizada pelas PECs 45/110, por meio do Conselho Federativo, com a forma federativa de Estado, traduzida pelo caractere lógico da autonomia, duas interrogações:

O Comitê Gestor implica, em alguma medida, a superposição de um ente federativo sobre outro ou beneficia desmedidamente um ente em prejuízo de outro?

Os eixos apresentados pelas disposições que compõem o artigo 156-B do substitutivo aprovado pelas duas Casas tendem pela equanimidade da representação das unidades federadas em sua composição, o que refuta a conjectura de que a sua mera existência é uma violação à harmonia federativa — embora o equilíbrio provinciano tivesse prevalecido sobre o mérito dos membros enquanto prioridade na condução do debate sobre a representatividade do comitê.

Se a centralização das competências tributárias não tem o condão de desequilibrar as relações federativas e tal risco é diligentemente atenuado por salvaguardas estruturais antecipadas pelo constituinte derivado reformador, a tese de que tal fenômeno, por si só, viola a forma federativa do Estado é refutada à luz do substitutivo aprovado.

A centralização da administração tributária dos entes federativos reduz, efetivamente, a autonomia dos entes federativos?

O artigo 156-A, § 1º, V e VI, da proposta em comento disciplina o Imposto Sobre Bens e Serviços e informa que os entes federativos serão autônomos apenas para definir a alíquota do Imposto sobre Bens e Serviços incidente sobre a universalidade das operações verificadas em seu espaço de competência [2]. Ou seja, os entes federativos seguem autônomos para definir o montante da alíquota vigente em sua esfera, mas não para modulá-la a fim de atender as tentações de uma ou outra atividade econômica.

Se pelo costume perverso a que placidamente aderimos ao longo da nossa história federativa, a burocracia fazendária dos entes federativos é competente para promover isenções, alíquotas, fatos geradores, regimes diferenciados nos limites em que lhes são circunscritos em prejuízo do mandamento constitucional encimado no artigo 37, XII, pelo qual as administrações tributárias da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios devem de forma integrada, e não hostil, como nunca esconderam preferir algumas gestões, essa realidade está com os dias contados.

Embora essa realidade soe inócua a partir da cultura de autonomia fiscal em que nos acostumamos, ao ponto de que, para alguns, tal instituto apenas seria concebível sob uma discricionariedade absoluta e desimpedida para promover políticas fiscais sem qualquer ponderação sobre o impacto econômico na vizinhança federativa, a conservação dessa malandragem galvanizada como um corolário da nossa forma de Estado representa um ônus compartilhado pelo contribuinte e pelo fisco. Portanto, o prejuízo não é à autonomia e, sim, à predação fiscal, que expande distorções alocativas e incentiva a rivalidade.

Os entes não deixam de ser autônomos para traçar os rumos da sua gestão fiscal, mas deixam de sê-lo para promover a insegurança jurídica ao ônus do contribuinte e da Federação. Enfim, o substitutivo exibe notável madureza sobre fenômeno da centralização tributária por meio do Comitê Gestor em relação aos textos iniciais que o antecederam, o que permite considerações mais seguras e acertadas sobre a sua constitucionalidade.

No entanto, assim como a reforma como um todo, a eficácia limitada da sua norma instituidora termina por onerar o legislador infraconstitucional com a responsabilidade de reproduzir o mesmo zelo pela validade constitucional do Comitê Gestor de forma que (a) não obstrua o seu funcionamento e (b) nem esterilize os seus trabalhos, o que, todos sabemos, é indizivelmente difícil.

Por essa razão, não podemos dizer que o tratamento atualizado pelo Senado Federal é perfeito, em especial quanto à misteriosa competência para “decidir o contencioso administrativo”.

A previsão expressa da competência para decidir o contencioso administrativo (artigo 156-B, III) permite concluir, não sem franzir a testa por alguns segundos, que o Comitê Gestor foi discretamente alçado à condição de Carf do IBS. Assim, o nosso IVA caboclo terá como instâncias recursais em seu processo administrativo um Carf para a CBS e um “Carfizinho” para o IBS, o que enseja os mais variados e temerosos questionamentos, como: (a) a competência para julgar os recursos ao Comitê Gestor será dos 54 membros que, além das outras atribuições, ainda deverão se reunir para arbitrar controvérsias relacionadas a litígios tributários? (b) a instrumentalização dos recursos administrativos no Comitê Gestor será feita por lei complementar ou pelo regimento interno do órgão?

Essas e outras questões merecem urgente endereçamento, razão pela qual não poderia ter sido mais oportuna a instalação da Comissão para o Processo Administrativo Tributário no Senado.

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[1] STF. MS 23047 MC, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 11-02-1998.

[2] Art. 156, § 1º (..)
V – cada ente federativo fixará sua alíquota própria por lei específica;
VI – a alíquota fixada pelo ente federativo na forma do inciso V será a mesma para todas as operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Constituição;
PEC 45-A. Art. 156-A, § 1º, V. Redação final do substitutivo aprovado pelo Senado Federal.

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