A necessária revisão sobre a pena de multa no Brasil
14 de dezembro de 2023, 15h21
Em sessão virtual no último mês de outubro, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, responsável pelos casos criminais na Corte Superior, decidiu revisar novamente o entendimento fixado pelo próprio STJ na Tese nº 931, para avaliar se o fato de o réu ser representado pela Defensoria Pública pode levar à presunção de que o acusado não possui capacidade de arcar com a pena de multa.
Explico melhor o que significa essa revisão:
No Direito Penal brasileiro existem três espécies de pena: as penas privativas de liberdade, as penas restritivas de direitos e a pena de multa.
A pena de multa, segundo o Código Penal, consiste no pagamento de uma determinada quantia em dinheiro, previamente fixada em lei, destinada ao Fundo Penitenciário do estado ou da União (NUCCI, 2014).
O valor da multa penal a ser pago pelo condenado é definido pelo juiz criminal, a partir dos seguintes critérios: primeiro, o juiz define qual a quantidade de “dias-multa” que o condenado deverá pagar. Em seguida, o juiz define qual será o valor de cada “dia-multa”, podendo fixar esse valor entre o piso de 1/30 do salário-mínimo e teto de cinco salários-mínimos. Atualmente, considera-se que, independentemente da condição financeira do acusado, o juiz deve aplicar a pena de multa, se houver sua previsão na lei penal.
Entretanto, o que temos notado na prática é um descolamento da lei penal com a realidade da sociedade brasileira.
Para o crime de tráfico de drogas, por exemplo, que representa cerca de 28% das prisões no Brasil, conforme dados de 30/6/2023 da Secretaria Nacional de Políticas Penais (BRASIL, 2023), a pena prevista é de 5 a 15 anos de reclusão e pagamento de 500 a 1.500 dias-multa. Se considerarmos que o valor mínimo de um “dia-multa” é de 1/30 do salário-mínimo, logo, o valor mínimo de multa para um condenado a tráfico de drogas é de R$ 22 mil em dezembro de 2023, valor este absolutamente incompatível com a capacidade de pagamento de quase a totalidade dos condenados por essa espécie de delito.
Esse descolamento da lei penal com a realidade social brasileira ocasionou uma gravíssima crise no sistema penitenciário, que ainda não foi solucionada. Ocorre que, se o condenado não efetua o pagamento da pena de multa, ele fica impossibilitado de ter sua punibilidade extinta.
Ao permanecer com a pena de multa “em aberto”, o condenado permanece com direitos políticos suspensos (ficando impedido de regularizar o título de eleitor, votar e ser votado e de participar de concurso público), fica impedido de ter sua reabilitação criminal (de modo que os crimes cometidos continuarão aparecendo na folha de antecedentes) e permanece com o débito em aberto perante a Justiça Criminal, o que ocasiona em bloqueio das contas bancárias e restrições ao CPF, bem como limites e impedimentos às opções de crédito, abertura de contas em banco e acesso a determinados benefícios sociais (IDDD, 2022).
Por outro lado, toda pena de multa gera um novo processo de execução da pena de multa, movido pelo Ministério Público, que ocasiona em mais gastos ao Poder Judiciário.
O que se vê, portanto, é que a fixação da pena de multa àqueles que não possuem capacidade de pagá-la funciona como um verdadeiro mecanismo de perpetuação da pena e impossibilitador da almejada ressocialização do condenado em situação de pobreza, assim como serve como fato gerador de desperdício de recursos públicos.
Por esse motivo, em 2021 o STJ definiu, em sede de primeira revisão do Tema 931, a tese de que se o condenado comprovar ser incapaz financeiramente de pagar a multa penal, o Judiciário poderá reconhecer a sua extinção da punibilidade (desde que ele já tenha cumprido a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos), dispensando-o de pagamento da multa aplicada.
A tese do STJ foi, evidentemente, um avanço para o sistema penitenciário, mas manteve uma grave falha, que foi a de possibilitar a extinção da punibilidade somente àqueles que comprovarem não ter condições financeiras de pagar multa penal.
Ocorre que a maioria dos condenados não possui advogado particular e nem mesmo possui condições de comprovar ou não sua frágil situação financeira. Não raras vezes nos deparamos com casos de condenados em situação de rua, absolutamente incapazes de comprovar renda e gastos mensais.
Essa transferência do ônus da prova ao condenado, na prática, demonstrou não resolver completamente a situação, resultando na manutenção de diversos processos de execução improdutivos e geradores de perpetuação da pena aos mais pobres.
Por essa razão, avaliamos como necessária a revisão da Tese 931 pelo STJ, para que se possa reconhecer a possibilidade de presumir (no sentido de presunção relativa) a incapacidade financeira dos condenados assistidos pela Defensoria Pública, e extinguir da punibilidade daqueles que não possuem condições de pagar a pena de multa de uma maneira mais efetiva.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Políticas Penais. Quantidade de tipificações penais. Data de referência: 30/6/2023. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiN2Q1ZmFmZWItNDNhMi00OTFjLTgyZGYtMjc1MmFiZDhmNGQ4IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em 8/12/2023.
INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. Mutirão Carcerário. Pena de multa, sentenças e exclusão: caminhos e estratégias para garantir a cidadania à pessoa condenada. São Paulo, 2022. Disponível em: https://iddd.org.br/wp-content/uploads/2022/08/boletim-iddd-mutirao-carcerario-v2-1.pdf. Acesso em 8/12/2023.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 10ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
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