Direto do Carf

As mulheres podem e devem votar no Carf

Autor

  • Ludmila Mara Monteiro de Oliveira

    é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

13 de dezembro de 2023, 8h00

Passadas mais de sete décadas da morte de Eva Perón, ainda ecoam seus ideais de igualdade, que se fizeram sempre presente em suas manifestações políticas. Os discursos de janeiro e fevereiro de 1947 [1] eram prelúdio do que aconteceria naquele mesmo ano, em setembro: a promulgação da lei que deu às argentinas o direito ao voto e o poder de serem eleitas, gozando das mesmas prerrogativas concedidas até então somente aos homens. Aquela que entrou para história como Evita, dedicando sua brevíssima vida em prol da defesa dos “descamisados” [2], dos direitos da classe trabalhadora, das mulheres, das desamparadas crianças e dos mais necessitados, está gravada a célebre frase “La mujer puede y debe votar” [3], lançada em rádio pública, numa tentativa de fazer com que legisladores e parcela substancial da mídia quebrassem o silêncio sobre o sufrágio feminino.

Spacca

Neste ano, quando completamos 91 anos do voto feminino no Brasil, assistimos ao Supremo Tribunal Federal afastar a tese da limitação da responsabilização por fraude nas candidaturas femininas aos partidos e aos que perpetraram abuso de poder. Isso porque o §3º do artigo 10 da Lei nº 9.504/1997, com as alterações promovidas pela Lei nº 12.034/2009, passou a prescrever, em caráter imperativo, que, quando das eleições proporcionais, cada partido e coligação deveria preencher o mínimo de 30%e o máximo de 70% para candidaturas de cada gênero.

Como bem pontuado pela ministra Rosa Weber, em seu voto condutor, “[e]ssa disciplina normativa – cota de gênero –, apesar de aplicável indiscriminadamente ao sexo masculino e feminino – está voltada a propiciar e a resguardar às mulheres espaço mínimo na participação na política nacional” [4]. O que pretende a norma, ao fim e ao cabo, seria “coibir a discriminação contra as mulheres e estimular a cidadania e o pluralismo político (CF, art. 1º, II e V), obrigando os partidos a fomentarem, para além do período eleitoral, dentro de seus quadros internos e na sociedade como um todo, a participação feminina na política, concretizando, assim, de forma efetiva, o princípio da isonomia de gênero (CF, art. 5º, I)”. Por esse motivo, constatada a ocorrência da fraude, a consequência jurídica há de ser proporcional à afronta aos princípios constitucionais retromencionados, não devendo a cassação do mandato recair, tão-somente, sobre os ombros dos que perpetraram a conduta fraudulenta.

De acordo com o Global Gender Gap Report 2023 [5], dentre os 146 países analisados, o Brasil ocupa a 109ª posição no que se refere à quantidade de mulheres no parlamento. Nunca uma mulher ocupou a cadeira de presidenta da Câmara dos Deputados ou do Senado. Após declinar uma série de dados, conclui a ministra Rosa Weber: “os números assustam e revelam que, apesar de uma pequena e gradual evolução nos últimos anos, a participação feminina na política ainda se mostra aquém do desejável, sendo necessário uma atuação mais energética do Estado para atingir melhores níveis de paridade entre os gêneros” [6].

Se tomarmos o substantivo “voto” ou o verbo “votar” noutra acepção, veremos que a realidade de exclusão da participação feminina não se revela diferente. Nos julgamentos em órgãos colegiados, a exemplo dos que ocorrem Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), são proferidos os acórdãos – isto é, documentos escritos que ostentam um relatório, nos quais são narrados os fatos mais relevantes para o desate das controvérsias, e os votos, que externam o posicionamento jurídico daqueles que participaram do julgamento. Votar, neste caso, significa externar um entendimento acerca de uma problemática. Apresentado o voto daquele que designado para atuar como relator, passa-se à votação do colegiado, com a exposição das razões de decidir de cada um.

A despeito de as mulheres corresponderem à maioria das pessoas matriculadas em cursos de graduação, segundo indicação expressa do Censo da Educação Superior, ao menos desde 2004 [7], elas representam apenas 24% das julgadoras que compõem o Carf, conforme dados divulgados pelo presidente do próprio conselho, Carlos Higino de Alencar, tanto no 9º Seminário Carf de Direito Tributário e Aduaneiro, quanto no 5º Questões Controvertidas no Carf, organizado pela Comissão Especial de Assuntos Tributários (Ceat) da OAB-RJ, ambos os eventos ocorridos no mês passado.

Constatada distorção deu azo à publicação da vanguardista [8] Portaria Normativa MF nº 1.360, de 1º de novembro de 2023, que “dispõe sobre ação afirmativa de gênero para o preenchimento de vagas de conselheiros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais”. Com arrimo no objetivo fundamental da nossa República em “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”ex vi do inciso IV do artigo 3º da CRFB/88 –, no direito fundamental à isonomia entre homens e mulheres – ex vi do inciso I do artigo 5º da CRFB/88 –, bem como em atenção aos compromissos internacionalmente pactuados [9], determinado que “o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF deverá ser composto por, no mínimo, 40% (quarenta por cento) de cada gênero nas vagas de conselheiros”ex vi do artigo 1º da Portaria Normativa MF nº 1.360, de 1º de novembro de 2023.

Ao comentar sobre o diploma, a vice-presidente do Carf, Semíramis de Oliveira Duro afirmou que “a Portaria Normativa n° 1360/2023 demonstra o comprometimento na efetividade da promoção da igualdade de gênero ao estabelecer o equilíbrio quantitativo entre os gêneros e, ao mesmo tempo, representa o reconhecimento da capacidade técnica, competência e dedicação das Conselheiras Mulheres na função pública que exercem” [10].

Deveras bem-vinda a hora em que o Estado extrapola o mero bradar da existência de tratamento isonômico entre homens e mulheres para atuar na realidade, de modo a assegurar as condições para que a igualdade seja materialmente aferida. Digna de todos os encômios é o regramento que, atento às discrepâncias históricas e socioeconômicas existentes entre homens e mulheres, estipula tratamento diferenciado, a fim de que no futuro não mais vejamos importante esfera de poder como é o Carf ter em sua composição menos de um quatro de julgadoras mulheres.

Calha acrescentar que o alijamento de mulheres dos centros de poder não é fato confinado às fronteiras de nosso território. Ao tratar sobre a repartição da receita tributária entre nações, a tributarista Kim Brooks clama por uma maior representação feminina quando da negociação de tratados bilaterais. A partir da análise da composição de comitês que lidam com matéria tributária, tanto na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) quando na Organização das Nações Unidas (ONU), é possível ver que o número de mulheres presentes é pouco significativo [11]. Não se pode afirmar que uma maior participação feminina na formulação do conteúdo dos tratados aumentaria a probabilidade de serem incluídas cláusulas que distribuem a base tributária de maneira mais justa entre as nações. Contudo, Brooks arguiu que as mulheres acadêmicas parecem mais inclinadas a lidar com questões de equidade e tributação do que seus colegas homens [12]. A suposição de Brooks pode, de fato, estar correta, se considerarmos dados de pesquisa realizada nos Estados Unidos que apontam que maiorias minorizadas, a exemplo das mulheres, tendem a melhor compreender os fatores que engendram a necessidade da adoção de ações afirmativas e políticas (re)distributivas [13].

Sendo a paridade de gêneros ainda uma quimera no âmbito do Carf, a Portaria Normativa MF n° 1.360/2023 traz motivos para comemorar, sem deixar de lançar luzes que ainda há o que ser feito para que reduzido o nível de disparidade entre homens e mulheres. A ausência de licença-maternidade ou de outros mecanismos que concedam à gestante a tranquilidade e o tempo necessário para o cuidado da prole atuam contrariamente ao ingresso de conselheiras indicadas pelas confederações e centrais sindicais. Premente, por essa razão, a remoção de tal óbice para que a Portaria Normativa MF n° 1.360/2023 logre êxito em cumprir o seu louvável mister.

A nossa Carta Constitucional atua em favor da causa das mulheres. Basta notar que um dos objetivos fundamentais da República ali estampado é a promoção do bem de todos, não restando espaço para discriminação – inciso IV do artigo 3º da CRFB/88. A dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado Democrático de Direito aqui constituído – inciso III do artigo 1º da CRFB/88 – e, por derradeiro, há o expresso reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres – inciso I do artigo 5º da CRFB/88. Dar mais espaço à elas significa cumprir nossa Constituição e, ainda, oxigenar o Carf, abrindo novos e plurais caminhos para que sua visão de futuro de “ser reconhecido pela excelência no julgamento dos litígios tributários” [14] se concretize. Às mulheres não falta expertise: elas não só podem, como devem integrar o Carf.

– Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 [1] Mais sobre a história de Eva Perón pode ser obtida em seu livro autobiográfico, cf. PERÓN, Eva. A razão da minha vida. Cidade Autônoma de Buenos Aires: Asociación Museo Evita, 2016 [trad. por Gabriela  Maltempo Perez]

[2] Termo de marcante utilização pelos Perón para designar indivíduos mais pobres que, despidos de suas camisas, refrescavam-se na Plaza de Mayo, durante o Cabildo Abierto. Em mensagem de Evita à nação argentina em 1951 é possível depreender o significado do termo com precisão: “Compañeros, quiero comunicar al Pueblo Argentino mi decisión irrevocable y definitiva de renunciar al honor con que los trabajadores y el pueblo de mi patria quisieron honrarme en el histórico cabildo abierto del 22 de agosto. (…) Yo invoco en este momento el recuerdo del 17 de octubre de 1945, porque en aquella fecha inolvidable me formulé yo misma y ante mi propia conciencia, un voto permanente y por eso me entregué entonces al servicio de los descamisados, que son los humildes y los trabajadores. (…) Yo sé que cada uno de los descamisados que me quiere de verdad, ha de querer también que nadie tenga el derecho a descreer de mis palabras y ahora, después de esto, nadie que no sea una malvado podrá dudar de la honradez, de la lealtad y de la sinceridad de mi conducta.” Disponível em: <https://www.educ.ar/app/files/repositorio/html/54/75/b0545801-c3db-4e4c-a51a-754df21d3ca6/14828/14828/data/9d019f0c-c84c-11e0-8238-e7f760fda940/texto1.htm>. Acesso em: 12 dez. 2023.

[3] A mensagem completa dirigida às argentinas foi a seguinte: “La mujer puede y debe votar en mi país. La mujer votará, si los camaradas – ahondando en sus responsabilidades nacionales- ofrecen a todo un vasto y ansioso sector humano, el precioso instrumento de su reivindicación civil: el derecho a elegir y ser elegidas”. Disponível em: <https://amvcaba.com.ar/noticias-ciudad/comuna-3/recordando-en-palabras-a-maria-eva-duarte-de-peron-evita>. Acesso em: 12 dez. 2023.

[4] STF. ADI nº 6338, Rel.ª Min.ª ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 03/04/2023, publicado em 07/06/2023.

[5] Disponível em: <https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2023.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2023.

[6] Idem.

[7] Cf. os resultados do Censo da Educação Superior desde 1995 a 2022 em: <https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-da-educacao-superior/resultados >. Acesso em: 12 dez. 2023.

[8] Malgrado seja a iniciativa novel no âmbito do Carf, a sistemática foi inspirada na política, capitaneada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Poder Judiciário (aqui). Na tarde de ontem (12/12), com o voto de 11 de seus 14 membros, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ampliou o normativo para determinar que todos os tribunais de Justiça do país adotem a paridade de gênero como obrigatória na formação de cargos estratégicos das suas administrações. A deliberação será retomada em fevereiro, por força de pedido de vista (aqui).

[9] A Portaria Normativa do Ministério da Fazenda menciona a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, da Organização das Nações Unidas. Entretanto, calha ainda acrescentar a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável’, que traz dezessete novos objetivos em substituição aos oito Objetivos da Declaração do Milênio e foi endossada por todos os 193 (cento e noventa e três) Estados-membros da ONU. Seguramente muito mais ambiciosa do que sua predecessora, a agenda tenta equilibrar as dimensões ambiental, econômica e social com vistas ao desenvolvimento sustentável, além de pioneiramente frisar ser insuficiente o enfoque na redução da pobreza absoluta. O quinto objetivo ali traçado é o de justamente “[a]lcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Para um maior aprofundamento sobre a imbricação entre direito tributário e direitos humanos, bem como para uma defesa da tributação global como fonte de financiamento aos objetivos internacionalmente pactuados, cf. OLIVEIRA, Ludmila Mara Monteiro de. Justiça Tributária Global: Realidade, Promessa e Utopia. Belo Horizonte: Letramento, 2019.

[10] Disponível em: <http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/2022-1/carf-publica-portaria-de-representatividade-de-genero>. Acesso em: 12 dez. 2023.

[11] Cf. BROOKS, Kim. Global distributive justice: the potential for a feminist analysis of international tax revenue allocation. Canadian Journal of Women and the Law, v. 21, n. 2, p. 267/297, 2009, p. 287/288.

[12] Ibid., p. 288/290.

[13] Cf. REED-ARTHURS, Rebbecca; SHEFFRIN, Steven M. Understanding the public’s attitudes towards redistribution through taxation. In: Taxation and Trust: Legitimizing Redistributive Tax Policies. Antuérpia: Universidade Centrum Sint-Ignatius, maio 2015.

[14] Disponível em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/perguntas-frequentes. Acesso em: 12 dez. 2023.

Autores

  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período de investigação na McGill University; pós-doutora e mestra pela UFMG; vice-presidente da 2ª Seção do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); conselheira da 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf); professora.

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