Trabalho

No admirável mundo novo, velhos problemas ganharam outros significados

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11 de dezembro de 2023, 8h25

*Entrevista publicada no Anuário da Justiça do Trabalho 2024, lançado na última quinta-feira (30/11). A versão online é gratuita, acesse pelo site do Anuário da Justiça (clique aqui para ler). A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui ).

O maior desafio da Justiça do Trabalho nos conturbados dias de hoje, possivelmente, não seja o de julgar a legalidade das infinitas novas formas de relação de emprego ou trabalho, mas o de chegar até as pessoas que sobrevivem trabalhando na informalidade, sem qualquer tipo de relação de emprego ou trabalho.

A opinião, manifestada em entrevista ao Anuário da Justiça do Trabalho, é do sociólogo Fausto Augusto Junior, diretor técnico do Dieese, o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, um dos mais tradicionais e respeitados centros de estudo e pesquisa do trabalho e do sindicalismo do país.

“Quando olhamos o mundão vemos 40 milhões de pessoas que não têm CLT. São 25 milhões por conta própria, quase seis milhões de trabalhadores domésticos e cinco milhões de empregados sem carteira assinada”, diz Fausto, sem disfarçar a perplexidade. “Faz o que com essas pessoas?”

Ele tenta, mas sabe que a resposta não é fácil. Tanto mais que o outro problema, o da multiplicação e, a seu ver, da precarização das novas formas de relação de trabalho, está servido à mesa de legisladores e juízes, empresários e trabalhadores em busca de definições e regras. “Não dá para ficar com a cabeça do século 20 no século 21. Claramente vamos para uma outra ordem global. É o admirável mundo novo que temos que enfrentar, com os velhos problemas que ganharam um significado novo”, diz.

Fausto Augusto Junior, 48 anos, é bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutor em Educação pela USP. Desde 2020, é o diretor técnico do Dieese, onde ingressou em 1996 como auxiliar técnico. É também professor da Escola Dieese de Ciência do Trabalho.

Divulgação/Dieese

O Dieese é um centro gerador de inteligência e estatística da classe trabalhadora. Produz um conhecimento de classe que possibilite que o sindicato e, também, governos e a sociedade em geral tomem decisões a partir de novas visões. É responsável, entre outras, pela elaboração da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos que produz índices econômicos de referência como o custo da cesta básica e o valor do salário mínimo necessário.

ConJur – Como está a situação do trabalho hoje no Brasil?
Fausto Augusto Junior –
Estamos próximos aos oito milhões de desempregados. A taxa de desemprego vem caindo, esse é um dado positivo. Mas, por outro lado, temos dois fenômenos acontecendo. Um é estrutural: quando a taxa de desemprego começa a cair, normalmente ela cai pela informalidade. Só depois a economia vai caminhando para a formalização. Estamos vivendo este momento. O outro fenômeno é que a renda média está estacionada. Desde 2016, fica naquele miolo dos R$ 2.200, R$ 2.300. Essas são duas características do cenário atual.

ConJur – A informalidade no Brasil é sinônimo de precariedade?
Augusto Junior –
O Brasil sempre foi um país com um percentual muito grande de trabalho precário, entre 40% e 50%, a depender do ciclo econômico. Dentro desse trabalho precário estão tanto os informais como os formais. Por exemplo: o MEI (microempreendedor individual), formaliza. O problema é que esse MEI, muitas vezes, tem uma remuneração que é abaixo do salário-mínimo e acaba não contribuindo todos os meses. Mesmo tendo uma formalização, é precário. Houve uma explosão de MEIs. Estamos perto de 15 milhões, mas apenas sete milhões de MEIs são adimplentes. Muitas vezes, ele é só um trabalhador, não é um empreendedor. O MEI é uma das pernas da precarização do trabalho no Brasil.

ConJur – Quais são as outras?
Augusto Junior –
Temos o informal clássico, aquele que vive de bicos, isso sempre foi uma coisa muito grande em nosso país. Temos a questão do MEI em si. Quando surgiu, era um mecanismo interessante para formalizar um grupo de trabalhadores. O problema é que a reforma em 2017 aprovou a liberação da terceirização. Agora a terceirização pode ser indistinta. E ainda temos a figura do autônomo, que é uma excrescência, porque um funcionário que trabalha para uma pessoa só é empregado.

ConJur – E os trabalhadores por aplicativos?
Augusto Junior –
Os aplicativos são uma nova forma de lidar com a realidade: temos desde o antigo informal, que acabou sendo intermediado pelo aplicativo, até o empregado, o entregador que trabalhava para a pizzaria, que passou a trabalhar para o aplicativo. E você tem o aplicativo que não é aplicativo, que nada mais é do que um modelo novo, para algo que já existia. O pessoal que trabalha com manutenção sempre trabalhou com ordem de serviço. Ele ia à empresa, pegava uma ordem de serviço e executava o serviço. Agora ele recebe a ordem de serviço pelo aplicativo. Na verdade, só a comunicação ficou mais rápida. Começamos a contratar o prestador de serviço por meio do aplicativo. Isso é uma fraude.

ConJur – O MEI se desvirtuou no propósito de impulsionar o empreendedorismo?
Augusto Junior – Abrir uma empresa Simples não é uma coisa tão simples como parece. Apesar de ser Simples, não é tão fácil. Precisa ter um contador, emitir notas, fazer a burocracia de uma empresa. O profissional autônomo tradicional tem dificuldade de lidar com uma empresa Simples. Para essa faixa de trabalhadores foi útil no processo de pejotização.

ConJur – Todos esses mecanismos foram criados para restringir direitos?
Augusto Junior –
Sim e não. Quem era celetista e está vindo para essa legislação mais flexível, sim, está se precarizando, perdendo direitos. O outro lado da moeda são os informais precarizados. A tese é que se criou uma forma de vínculo mais flexível para botar esse povo para dentro da formalidade. Só que, na prática, acontecem as duas coisas. Uma parte vem para a formalidade e outra parte desce de nível de formalização. O pessoal da Justiça do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho diz que qualquer medida desse tipo é para reduzir direitos. Só que quando olhamos o mundão vemos 40 milhões de pessoas que não têm CLT. São 25 milhões por conta própria, quase seis milhões de trabalhadores domésticos e cinco milhões de empregados sem carteira assinada. Faz o que com essas pessoas?

ConJur – Faz o que com essas pessoas?
Augusto Junior –
Essa é uma realidade que o Brasil não enfrenta e que a gente precisa enfrentar. Estamos perdendo a nossa janela de oportunidade, porque ainda temos uma população jovem, mas uma parte grande dessa população jovem – 30 milhões de pessoas – está fora do mercado de trabalho. Uma pessoa que vai ganhar R$ 1.320, vai pegar duas conduções para ir trabalhar, duas conduções para voltar, vai gastar para almoçar e ainda vai pagar a vizinha para cuidar do filho dela ou dele, esta pessoa prefere ficar em casa. Ela faz a conta e vê que é mais caro sair para trabalhar do que ficar no chamado trabalho reprodutivo. Metade da população brasileira tem uma renda média individual abaixo de R$ 800. Então, reduzimos a nossa força de trabalho por falta de oportunidade ou por uma renda que não é suficiente.


ConJur – E como fica a Justiça do Trabalho no meio de tudo isso?
Augusto Junior –
O primeiro dilema é que a Justiça do Trabalho sempre atuou pensando no trabalhador industrial. Mas a indústria já não é mais a locomotiva da economia e já não é o setor que mais emprega gente. O setor de serviços já a ultrapassou há muito tempo. O próprio conceito de setor está bastante complicado. As empresas já não estão num setor só. Uma empresa é do setor industrial, porque produz aço, mas os recursos dela estão no mercado financeiro e ela faz parte de um grupo que atua no setor de comércio e no setor de serviço. Estamos falando agora de uma mudança estrutural no setor de serviço que está ampliando a sua participação real no mundo.

ConJur – A terceirização parece ter sido feita sob medida para esta reconfiguração dos setores?
Augusto Junior –
A terceirização talvez seja a mãe de todos os problemas nessa discussão sobre relação de trabalho. Os trabalhadores já não são mais prestadores de serviço para a pessoa física. Veja a quantidade de mecânicos vinculados a seguradoras, rodando nossas cidades seja para consertar o carro na rua, seja para consertar o eletrodoméstico na sua casa. São prestadores de serviço contratados pelas seguradoras que oferecem um serviço a partir do seu seguro.

ConJur –
Um seguro que eu fiz apenas para ser ressarcido no caso de uma batida ou o roubo do meu carro.
Augusto Junior – Mas que foi agregando serviços. A principal agregação é o socorro ao carro. Quem faz o socorro? Um mecânico. E quem é esse mecânico? Um MEI ou um PJ. Que tem uma ordem de serviço emitida por quem? Pela empresa de seguros.

ConJur – Não faz tanto tempo, o Tribunal Superior do Trabalho vedava a terceirização da atividade-fim.
Augusto Junior – A Súmula 331 que regulava a terceirização dizia que não podia terceirizar atividade-fim. Com a lei da terceirização, isso acabou. A terceirização hoje está muito mais vinculada à estratégia do negócio do que às instituições legais que poderia ter. Quando se abriu a terceirização, outros problemas passaram junto. A terceirização também abriu a fragmentação sindical. Porque, antes, o trabalhador que trabalhava na montadora, não estava longe do sindicato. Aí, terceirizou e o pessoal virou prestador de serviço. Embaixo de qual sindicato? Algum sindicato de prestação de serviço. Isso ajuda a entender por que a gente tem 13 mil sindicatos.

ConJur – E o que o sindicato tem a ver com isso?
Augusto Junior –
A taxa de sindicalização é baixa, mas a taxa de cobertura é alta. Porque as convenções coletivas valem para o filiado e para o não filiado. O problema não está aí. O problema está em que temos convenções coletivas diferentes e, normalmente, as convenções dos grandes setores são melhores do que as do setor de serviços. Aí ocorre perda de direitos, pela mudança do trabalhador de categoria.

ConJur – A reforma trouxe alguma vantagem para os trabalhadores?
Augusto Junior – Não. Houve uma redução do negociado sobre o legislado, porque agora as duas partes têm de concordar que vão a dissídio. Imaginava-se que o negociado sobre o legislado poderia dar algo diferente. Não deu. Porque, de um lado, os sindicatos têm receio de fazer uma negociação dessa natureza e, de outro, as empresas não veem segurança jurídica para isso.

ConJur – Como se explica que 30% das demandas trabalhistas se referem à rescisão do trabalho?
Augusto Junior – Um dos problemas que a gente tem no Brasil é que a Justiça do Trabalho, na prática, é uma Justiça para o desempregado. O trabalhador só entra na Justiça quando perdeu o emprego. Ninguém entra na Justiça do Trabalho trabalhando. Porque se reclamar enquanto está no emprego corre o risco de ser demitido. A Justiça pode até punir a empresa que fizer isso, mas não pune. Às vezes é erro, não é fraude, que poderia ser corrigido se o sindicato apontasse o erro. Seria interessante, mas não pegou.

ConJur – Como o sistema precisa ser aperfeiçoado?
Augusto Junior – A Justiça é mediadora e árbitra. Esse é o caminho que deveria ser trilhado. Precisamos aperfeiçoar não só a Justiça do Trabalho, mas a fiscalização, a Previdência, para incorporar metade da população. Não é possível que a gente continue tendo uma compreensão de Justiça do Trabalho que se limita a uma parte dos trabalhadores.

ConJur – Esse é um dilema também para os sindicatos?
Augusto Junior –
Eles terão que aprender a filiar gente não mais na porta da fábrica, mas dentro das suas casas. Mas é um problema da Justiça também. Como é que a Justiça vai lidar com relações que vão entrando no seio da própria família? Enfrentar a informalidade, do ponto de vista do Estado, é construir políticas para começar um processo de formalização. Mas, do ponto de vista da Justiça do Trabalho, ela precisa tratar das relações de trabalho e tratar das relações domésticas. O dilema é que para uma parte da população a Justiça do Trabalho não existe.

ConJur –
Sempre foi assim?
Augusto Junior – A gente já sabe que a informalidade no Brasil é estrutural. O Brasil nunca teve menos de 40% de informalidade. Se ela é estrutural, nós, enquanto sociedade, já devíamos ter construído mecanismos para garantir Justiça, proteção social, representação sindical para esses milhões de trabalhadores. Antes os informais eram estruturais, mas limitados. Agora não. Agora este mundo começa a invadir o mundo tipicamente industrial.

ConJur – Esse fenômeno é somente local?
Augusto Junior –
É global. Se os sindicatos e a Justiça do Trabalho ficarem limitados ao mundo industrial, tradicional, eles cada vez vão representar menos. De alguma forma a gente vai precisar socialmente fazer um debate, sob pena de ter uma elite de trabalhadores cada vez menor que vai ter todos os direitos, e uma grande maioria que não vai ter.

ConJur – O que podemos esperar do futuro?
Augusto Junior – Temos três grandes transições para lidar. A primeira é a questão da transição escola-trabalho. As portas de entrada do jovem no mercado de trabalho, principalmente no mercado formal, estão se fechando. Antes havia funções no comércio, nos serviços, na construção civil que eram a porta de entrada do jovem. Essas funções estão se automatizando. Onde o jovem está entrando? Nas diferentes pontas do mercado informal, e o aplicativo é uma delas. A outra questão é a transição geracional, ou seja, o envelhecimento da nossa população. Ter 60 anos hoje é muito diferente de ter 60 anos há 30 anos. O trabalhador contribuiu, chegou na idade e se aposentou, mas continua no mercado de trabalho, muito produtivo. O mercado de trabalho tem preferido esse idoso ao jovem, justamente por ter experiência.

ConJur – E qual é a terceira transição?
Augusto Junior – Cada vez mais você vai precisar de pessoas que ajudam no cuidado dos idosos. Onde estão os que mais conseguem emprego após um curso de formação? Na área de saúde, na área de cuidados. Então os cuidadores de idosos, as enfermeiras, as técnicas de enfermagem, eles saem do curso e arrumam emprego. Não acontece isso mais com o torneiro mecânico, com o trabalhador industrial.

ConJur – De que forma a crise climática afeta as relações de trabalho?
Augusto Junior – Segundo a OIT, três grandes setores serão muito afetados pela transição climática: construção civil, turismo e agricultura. No Brasil são 15 milhões de empregos nesses três setores. São novos desafios, novas ocupações, novas doenças profissionais. E tudo isso, de alguma forma, tem a carapaça da quarta grande revolução tecnológica.

ConJur – O futuro chegou?
Augusto Junior – A inteligência artificial vai trazer desafios que nós não imaginamos. Estão mudando as formas de interação pessoal, o próprio caráter das pessoas, a forma de fazer democracia. Está mudando o Judiciário. A legislação terá de ser revista assim como os posicionamentos jurídicos. A pandemia foi um marco. O século 21 efetivamente começou em 2022. Até a pandemia, a gente vivia os paradigmas do século 20. Agora, claramente a gente vai para uma outra ordem global, uma outra forma de encarar o mundo. E isso vai inevitavelmente se colocar perante a Justiça. Esse é o “admirável mundo novo” que de alguma forma nós vamos ter que enfrentar, com os velhos problemas, que ganharam outro significado.

ANUÁRIO DA JUSTIÇA DO TRABALHO 2024
4ª edição
Número de Páginas: 260
Editora: ConJur
Versão impressa: Livraria ConJur, clique aqui para saber mais
Versão digital: disponível gratuitamente no site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br), acesse

Anunciaram nesta edição:
BFBM – Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados
Corrêa da Veiga Advogados
Décio Freire Advogados
Didier, Sodré & Rosa Advocacia e Consultoria
Duarte Garcia, Serra Netto e Terra Advogados
Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados
JBS S.A
Machado Meyer Advogados
Moro e Scalamandré Advocacia
Original 123 Assessoria de Imprensa
Sergio Bermudes Advogados
Warde Advogados

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