Opinião

Prescrição em execuções fiscais e o Tema Repetitivo 179 do STJ

Autor

  • Leonardo Mazzillo

    é advogado em São Paulo sócio do escritório WFaria Advocacia pós-graduado em Direito Tributário e pós-graduando em Direito do Trabalho.

8 de dezembro de 2023, 11h13

No ano de 2009, após a fixação do Tema Repetitivo 179 pelo Superior Tribunal de Justiça, consolidou-se o entendimento de que a prescrição tributária seria “consequência da inércia do credor, que não se verifica quando a demora na citação do executado decorre unicamente do aparelho judiciário”. Muito embora esse entendimento sempre tenha agredido nossa percepção de bom senso, a recente publicação de reportagem nesta ConJur [1], noticiando mais uma vitória fazendária em discussão envolvendo prescrição, acabou nos levando a uma nova reflexão que compartilharemos aqui, tanto em relação ao grave erro conceitual contido da tese veiculada no Tema Repetitivo 179 quanto em relação ao verdadeiro desrespeito ao princípio da segurança jurídica e, em última análise, ofensa a diversas garantias constitucionais que esse entendimento tem gerado.

Em termos conceituais, o instituto da prescrição é um dos pilares do princípio constitucional da segurança jurídica, este último alçado por boa parte da doutrina ao status de sobreprincípio, tanto pela importância que desempenha na interpretação da extensão e do sentido de outros princípios constitucionais, quanto pelo seu papel indispensável na pacificação das relações sociais.

O instituto da prescrição evita que relações de cunho obrigacional se perpetuem, afastando a insegurança e a tensão social que seriam causadas por vínculos eternos entre as pessoas. Sendo o tempo verdadeiro “destruidor de provas”, o prazo prescricional serve para que o devedor não seja cobrado tardiamente, quando já não puder mais produzir provas e se defender. Nesse ponto, a prescrição garante a segurança jurídica ao obstar pretensões que não respeitem o contraditório e a ampla defesa. Além disso, o instituto realiza o princípio constitucional da duração razoável dos processos, quando a prescrição vem a ser pronunciada durante o trâmite processual. Em vista dessas rápidas considerações, induvidoso que a prescrição, em essência, configura verdadeira garantia, de raiz constitucional, dando vida ao sobreprincípio da segurança jurídica, bem como a diversos princípios que dele derivam.

Essa circunstância, de que a prescrição tem natureza de garantia e deriva diretamente do sobreprincípio da segurança jurídica e de seus corolários (contraditório, ampla defesa, devido processo legal, duração razoável do processo), parece ter sido absolutamente ignorada na tese veiculada pelo Tema Repetitivo 179 do STJ, segundo a qual “a perda da pretensão executiva tributária pelo decurso de tempo é consequência da inércia do credor…”. Ora, a tese manipula o propósito do instituto da prescrição e confere a ele a natureza de sanção. A tese resume a prescrição ao sofrível brocardo de que o direito não socorre aos que dormem, quando em verdade o instituto não nasceu como sanção nem se consubstancia em mera penalidade, mas sim em verdadeira garantia dada ao devedor de que não permanecerá indefinida ou eternamente com uma espada de Dâmocles sobre sua cabeça.  

E é exatamente com base nessa subversão conceitual que, ignorando a natureza da prescrição com garantia realizadora do sobreprincípio da segurança jurídica e reduzindo-a ao mesquinho papel de sanção, que veio a se consolidar a tese encartada no Repetitivo 179. Mas a fragilidade da tese de que execuções propostas dentro do quinquênio legal não estariam sujeitas a prescrição pela demora na citação, se esta demora for atribuível apenas ao aparelho judiciário, revela-se nos próprios argumentos de seus defensores, especialmente os de prevalência do interesse público sobre o privado e de ausência de culpa do credor.

Em relação à prevalência do interesse público sobre o privado, importante ter em mente que esse princípio não se reveste, nem de longe, de envergadura suficiente para relativizar o princípio da segurança jurídica. Com efeito, é intuitivo considerar que o interesse público — de toda a coletividade — deve prevalecer sobre o privado — de um ou alguns indivíduos. No entanto, esse princípio é expressamente relativizado quando o Estado causa prejuízo ao administrado, circunstância em que a sua responsabilidade é objetiva, a teor do que dispõe o artigo 37, § 6º, da Constituição. Isso porque, se o Estado é uma entidade que corporifica a coletividade e tal entidade causa algum prejuízo, nada mais justo que a própria coletividade pague por isso, afigurando-se odioso pensar nesse ônus recaindo apenas sobre um cidadão. O interesse público prevalece, nesse caso, quando o cidadão é efetivamente protegido e não tem de arcar sozinho com os danos causados pelo Estado.

Trazendo esse raciocínio para o ponto tratado neste artigo, a omissão do Estado na citação tempestiva do contribuinte, além de não justificar o atropelamento do sobreprincípio da segurança jurídica, impõe que o próprio Estado arque com tal prejuízo, o qual, aliás, está sendo causado por ele próprio, o Estado. Não realiza o interesse público se o cidadão é cobrado de uma dívida executada pelo ente fazendário nos últimos dias do quinquênio legal e se o “aparelho judiciário” demora dez anos para realizar uma citação. O instituto da prescrição é exatamente uma garantia para evitar que o cidadão venha a ser cobrado de uma dívida nascida, nesse exemplo, há 15 anos e contra a qual não tem sequer meios de se defender, pelo decurso de tempo, pela impossibilidade material de produzir provas.

Aliás, esse mesmo exemplo demonstra quão falaciosa é a tese de ausência de culpa do credor. A uma, porque no mais das vezes o aparelho judiciário inerte é órgão do mesmo ente estatal credor. A duas, porque se o credor injustificadamente afora a execução quando se avizinha o fim do prazo quinquenal, expõe-se desnecessariamente a risco, o que configura evidente negligência, exatamente uma das modalidades da culpa. A três, porque a prática forense ao longo de mais de vinte anos de militância mostra o total abandono a que é relegada boa parte dos executivos pelos órgãos fazendários, depois do seu aforamento.

Arguir a dita “ausência de culpa” até teria algum sentido se a execução fosse prontamente aforada e, ao longo de anos, o órgão fazendário tivesse envidado todos os esforços para que o “aparelho judiciário” expedisse uma simples citação postal ao devedor. Mas mesmo nesse caso hipotético e improvável, não seria possível mitigar as garantias constitucionais da segurança jurídica, do respeito ao contraditório, da ampla defesa e da duração razoável dos processos para fazer o débito recair sobre o contribuinte. Caberia, sim, responsabilizar o próprio ente estatal que controla de maneira absolutamente ineficiente o “aparelho judiciário”.

Não há, portanto, sob qualquer ângulo que se analise a questão, justificativa juridicamente consistente para servir de arrimo à tese veiculada pelo Tema Repetitivo 179, de modo que, transcorrido o prazo prescricional sem que o credor tenha se desincumbido do ônus pleitear e de viabilizar a citação — que nas execuções fiscais pode ser enviada simplesmente pelos Correios — deve ser reconhecida a prescrição da pretensão fazendária. Aqui, vale lembrar: é um erro, um atentado contra os direitos fundamentais e garantias constitucionais conferidas a todo cidadão reduzir o instituto da prescrição a uma mesquinha sanção por inércia do credor, devendo o instituto ser encarado com a sua verdadeira envergadura de garantia radicada no sobreprincípio da segurança jurídica e em seus corolários contraditório, ampla defesa e duração razoável dos processos. E nessa ordem de ideias, insistimos, não sobrevive o Tema Repetitivo 179 do STJ.


[1] In: Fazenda Pública não pode ter prejuízo por demora em citação, decide TJ-SP. https://www.conjur.com.br/2023-dez-01/fazenda-publica-nao-pode-ter-prejuizo-por-demora-em-citacao-decide-tj-sp/

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