Opinião

Prazo decadencial do artigo 38 do CPP e os crimes contra a propriedade imaterial

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7 de dezembro de 2023, 11h20

A propriedade imaterial consiste no conjunto de bens intelectuais e direitos da personalidade. Deste gênero, advêm os direitos autorais, copyrights, patentes, designs, entre outros.

A grande maioria dos crimes contra a propriedade imaterial se encontram tipificados em legislação específica, qual seja, a Lei nº 9.279/96. Por serem considerados crimes de natureza especial, esses delitos se submetem às regras constantes nos artigos 524 a 530 do Código de Processo Penal.

O artigo 529 do CPP estipula um prazo decadencial específico aplicável a esse tipo de delito, quando processados mediante ação penal privada, ao definir que “os crimes de ação privativa do ofendido, não será admitida queixa com fundamento em apreensão e em perícia, se decorrido o prazo de 30 dias, após a homologação do laudo”.

Por outro lado, o artigo 38 do CPP disciplina a regra geral referente ao prazo decadencial a ser observado na propositura da queixa-crime e exercício do direito de representação: “salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do artigo 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia”.

Diante de tal cenário, surge-nos a dúvida acerca da aplicabilidade do artigo 38 aos crimes contra a propriedade imaterial, vez que, aparentemente, seriam exceções à regra geral constante no artigo 38 do CPP.

Há quem defenda que, por haver rito específico previsto em lei para esse tipo de delito, a regra geral do artigo 38 do CPP não seria aplicável. Por consequência, uma queixa-crime apresentada após o prazo de 6 meses, contados a partir da ciência da autoria, mas dentro dos 30 dias após a homologação do laudo pericial, seria tempestiva.

Os que defendem essa linha valem-se do argumento de que deve ser aplicado o princípio da especialidade, para que seja afastada a aplicabilidade do artigo 38 e aplicado o 529.

Por outro lado, parte da doutrina sustenta que as regras constantes nos artigos 38 e 529 do CPP devem ser interpretadas de maneira sistemática, ou seja, não deve uma norma afastar a aplicabilidade da outra. Assim, embora os crimes contra a propriedade imaterial possuam procedimento próprio, tal cenário não deve alterar o prazo decadencial de seis meses para o oferecimento da queixa-crime.

Pois bem, ao realizar uma análise conjunta dos artigos mencionados, pode-se concluir que: em se tratando de crimes contra a propriedade imaterial que deixem vestígio, a ciência da autoria do fato delituoso dá ensejo ao início do prazo decadencial de seis meses. Tal prazo deverá ser reduzido para 30 dias se, neste ínterim, for homologado laudo pericial. Neste sentido é o entendimento de doutrinadores, tais como Guilherme de Souza Nucci [1] e Renato Brasileiro de Lima [2].

Vê-se, portanto, que as regras contidas nos diferentes dispositivos, apesar de aparentarem — em primeira vista — contraditórias, na realidade são plenamente compatíveis.

Destarte, a segunda linha aparenta carregar maior perspicácia, não apenas em razão da possibilidade de aplicação simultânea dos artigos em questão, mas também porque adotar interpretação diversa implicaria sujeitar o início do prazo decadencial à vontade do querelante. Afinal, caso assim fosse, o querelante, a qualquer tempo — inclusive passados anos após ter tomado ciência  dos  fatos  e  de  sua  autoria — poderia  pleitear  a  produção  do  laudo pericial, vindo reabrir, a partir da data da ciência da homologação deste, o prazo para oferecimento de queixa-crime.

Este é, inclusive, o entendimento já aplicado pelo STJ (STJ – REsp: 1.762.142 MG 2018/0080852-9, relator: ministro Sebastião Reis Junior, data de julgamento: 13/4/2021, T6 – 6ª Turma, data de publicação: DJe 16/04/2021).

Isto posto, para solução inequívoca da questão ora analisada, é imprescindível analisar o intuito do legislador ao redigir o artigo 529, ou seja, realizar uma interpretação teleológica do dispositivo. Parte da doutrina defende que a regra constante no artigo 529 possui o intuito, tão somente, de impedir que o acusado restasse privado dos materiais apreendidos por tempo indefinido, eis que situação não seria razoável.

Para além disso, há de se considerar que o artigo 529 CPP estipula prazo específico para a admissão de queixa-crime, especificamente, nos casos que se sustentam em apreensão de material que demanda a realização de perícia.

Todavia, nem sempre a queixa-crime que trata da propriedade imaterial é fundamenta mentada em perícia ou qualquer outra diligência complementar. Muitas vezes, a queixa é distribuída anteriormente à requisição de realização de perícia. Nestes casos, tendo sido a peça inaugural apresentada antes da juntada do laudo pericial, por óbvio, essa não teria fundada no que fora descoberto do por meio da perícia.

Afinal, eventuais diligências, tais como a perícia, são desempenhadas com o simples intuito de obter provas capazes de demonstrar eventual materialidade do delito, ou seja, elemento que não se confunde com a autoria. Caso a ciência da autoria somente se dê em momento posterior, a prazo decadencial do artigo 38 sequer se inicia. 

Enfim, na nossa interpretação, o prazo do artigo 529 do CPP somente é aplicável — e ainda, de maneira simultânea ao prazo de seis meses — apenas nas hipóteses em que a queixa é fundada nos elementos constatados a partir da perícia. 

Ou seja, o ofendido deverá propor a queixa dentro do prazo do artigo 38 do CPP, quando ciente da autoria. Todavia, quando a queixa for fundada em diligências realizadas ao longo de uma investigação, o prazo deverá ser reduzido para 30 dias, contados a partir da homologação do laudo.

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