Opinião

Vagueza e descontexto da Lei 14.713/2023 diante das discussões de direito de família

Autor

  • Aline Vieira

    é assistente Judiciário do TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) especialista em Direito Processual Civil mediadora e ex-professora assistente na PUC-SP.

6 de dezembro de 2023, 18h12

O presente artigo pretende realizar a análise da Lei nº 14.713/2023 a partir de seu projeto, bem como conceitos doutrinários envolvendo guarda e violência doméstica e familiar. Tece críticas à nova lei, associando-as àquelas já existentes em relação à lei que dispõe sobre a alienação parental, notadamente analisando a imprecisão técnica do legislador ao confundir os conceitos de guarda unilateral e compartilhada e a falta de prova robusta para permitir a restrição do convívio do genitor considerado agressor.

Em 31 de outubro de 2023 entrou em vigor a Lei nº 14.713/2023, que estabelece como causa impeditiva ao exercício da guarda compartilhada o risco de violência doméstica e familiar que envolva o casal ou os filhos.

O projeto de lei nº 2.491 foi apresentado pelo senador Rodrigo Cunha em 24 de abril de 2019. Em 11 de abril de 2023, foi encaminhado à Câmara dos Deputados para discussão.

Em parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania afirmou-se que “no que concerne ao mérito, consideramos louvável a medida inovadora abraçada pelo projeto em análise. Os nossos pequenos brasileiros não podem ser expostos à violência, ainda mais à familiar, em hipótese alguma. Violências deixam marcas profundas na formação da criança e do adolescente, ameaçando o seu bem-estar durante o resto da vida. O Parlamento já tem sido enérgico nesse sentido. Recentemente, por exemplo, entregamos à nação a Lei nº 13.715, de 24 de setembro de 2018, que estabeleceu a perda do poder familiar do genitor que tenha sido condenado por crime doloso cometido contra o outro genitor ou contra o descendente. Pais ou mães violentos têm de perder o poder familiar! (…) Os juízes, ao se depararem com riscos de exposição do filho a violência doméstica, têm de agir preventivamente, repelindo o genitor agressor da esfera de convívio do filho. Não é só suprimir o período de sua convivência com o filho, mas também excluí-lo da tomada de decisões do quotidiano do mirim. A guarda, pois, não pode ser compartilhada em hipóteses como essa”.

Para entender a intenção do legislador, é necessário uma breve análise do que vem sendo considerado “guarda compartilhada” à luz da doutrina civilista.

Rolf Madaleno expõe que “na guarda compartilhada ou conjunta, os pais conservam o direito de guarda e de responsabilidade dos filhos, alternando em períodos determinados a sua posse (…) Conjunta é a prática do poder familiar e não a divisão do tempo dos filhos, com alternância da sua guarda, e nesse pecado incide a Lei nº 13.058/2014 ao denominar de guarda compartilhada a alternância e equivalência do tempo de permanência dos pais separados com os seus filhos, e não mais o compartilhamento da gestão, da autoridade parental”.

Maria Berenice Dias aponta que “quando do rompimento do convívio dos pais, acaba ocorrendo uma redefinição das funções parentais, que resulta em uma divisão de encargos. O dinamismo das relações familiares, com o maior comprometimento de ambos no cuidado com os filhos, fez vingar a guarda conjunta ou compartilhada, que assegura maior aproximação física e imediata dos filhos com cada um deles (…) É a modalidade de convivência que garante, de forma efetiva, a corresponsabilidade parental, a permanência da vinculação mais estrita e a ampla participação dos dois na formação e educação do filho, de que a simples visitação não dá espaço”.

José Fernando Simão, analisando o projeto que viria a tornar-se a Lei 13.058/2014, que passou a estabelecer que “na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos”, ponderou que o dispositivo seria nefasto ao preconizar a dupla residência do menor em contrariedade às orientações dos especialistas da área da psicanálise e reconheceu que o legislador confundiu os conceitos de guarda alternada e compartilhada, uma vez que na alternada a criança passaria a ter duas casas, com duplo referencial, criando desordem em sua vida. Compartilhar a guarda seria verdadeiramente ter um convívio mais intenso com o genitor, algo que iria além da mera visita em finais de semanas. Simão exemplifica ainda o que efetivamente seria guarda compartilhada: “o pai deverá levar seu filho à escola durante a semana, poderá com ele almoçar ou jantar em dias específicos, poderá estar com ele em certas manhãs ou tardes para acompanhar seus deveres escolares”.

Flavio Tartuce afirma que, tentando resolver a confusão conceitual, na VII Jornada de Direito Civil, realizada em 2015, foram aprovados os enunciados 603 e 604:

ENUNCIADO 603 – A distribuição do tempo de convívio na guarda compartilhada deve atender precipuamente ao melhor interesse dos filhos, não devendo a divisão de forma equilibrada, a que alude o §2º do art. 1.583 do Código Civil, representar convivência livre ou, ao contrário, repartição de tempo matematicamente igualitária entre os pais.

ENUNCIADO 604 – A divisão, de forma equilibrada, do tempo de convívio dos filhos com a mãe e com o pai, imposta na guarda compartilhada pelo § 2° do art. 1.583 do Código Civil, não deve ser confundida com a imposição do tempo previsto pelo instituto da guarda alternada, pois esta não implica apenas a divisão do tempo de permanência dos filhos com os pais, mas também o exercício exclusivo da guarda pelo genitor que se encontra na companhia do filho.

Em que pese os esclarecimentos que a doutrina já vinha tentando fazer acerca da diferenciação entre guarda alternada e compartilhada, o legislador parece mais uma vez ter confundido os conceitos de guarda e convivência familiar.

A Lei nº 14.713/2023 alterou o §2º do artigo 1.584 do Código Civil, que passou a vigorar com a seguinte redação: “Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar”.

O que o legislador pretendeu, na verdade, foi afastar o genitor violento do convívio da criança. Isso é claramente verificado pelo que dispôs o relatório da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania ao afirmar que “os juízes, ao se depararem com riscos de exposição do filho a violência doméstica, têm de agir preventivamente, repelindo o genitor agressor da esfera de convívio do filho”.

O mais técnico teria sido o legislador apontar que o genitor terá suprimido o direito de convívio. Dizer que o genitor violento não terá a guarda compartilhada significa dizer tecnicamente que ele não terá o direito de exercer a corresponsabilidade pelas decisões importantes da vida da criança, relegando-a à figura materna na guarda unilateral.

Vale ainda apontar que, a contrario sensu, o genitor que não possui a guarda compartilhada terá o direito de visitas, ou mais tecnicamente chamado de direito de convivência, fixado em dias específicos, pois, como já esclarecido por Maria Berenice Dias, “o não guardião pode ter os filhos em sua companhia em períodos estabelecidos por consenso ou fixados pelo juiz”.

Assim, ainda que a intenção do legislador tenha sido afastar a prole do convívio do genitor agressor, acabou por impropriamente negar a ele que decida conjuntamente com a genitora sobre questões como sua educação e criação.

Maria Berenice, em video veiculado em rede social[1], destacou que a lei é descontextualizada já que é indispensável que ambos os genitores assumam os encargos decorrentes do poder familiar. Asseverou que é exíguo o prazo de cinco dias para comprovar a situação e que seria necessária perícia psicossocial para tanto. Demonstrou preocupação de o juiz suprimir o direito de convivência do genitor acusado de violência doméstica e familiar com a mera afirmação de risco e que é importante contar com o bom senso dos juízes que atuam nas varas de família.

Cirúrgicas as ponderações, pois mesmo antes da nova lei já era possivel que o juiz, à luz do caso concreto e com a autorização do artigo 1.586 do Código Civil, regulasse de forma diferente a situação dos filhos, o que obviamente abarcaria situação de violência doméstica e familiar.

Vale ainda destacar que Maria Berenice em outro video esclarecedor definiu quem seria o sujeito passivo da violência doméstica e familiar apontado pela nova lei. Observando que a modificação legislativa não foi introduzida na lei Maria da Penha e sim no Código Civil, entende que a violência deve ser dirigida à criança ou ao adolescente e não à mulher, genitora da criança.

A interpretação se harmoniza com o ordenamento, já que em muitos casos o genitor pode ser violento com a genitora, mas ter condições de decidir sobre as questões importantes da vida da criança, desde que não seja violento e agressivo diretamente com esta, o que deverá ser observado à luz do caso concreto.

Outrossim, a violência contra a criança pode ser das mais variadas ordens. A Lei Henry Borel (Lei nº 14.344/2022) define violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente qualquer ato ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano patrimonial. Remete ainda às definições sobre violência contidas na Lei nº 13.431/2017, que por sua vez trata como violência psicológica o ato de expor a criança direta ou indiretamente a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torna testemunha.

Vale dizer, quando a criança testemunhar violência doméstica ou familiar contra sua genitora, isso será uma forma de violência psicológica diretamente contra a criança, a autorizar o afastamento do convívio do genitor enquanto perdurar a situação.

Contudo, em que pese a gravidade da situação em certos casos, não se pode diante de mera alegação de violência doméstica e familiar, sem provas, baseada apenas em evidência de probabilidade de risco, proibir a convivência parental.

As críticas à nova lei se aproximam àquelas recentemente feitas pela comunidade jurídica e de proteção de direitos humanos à lei de alienação parental, que estigmatiza a mulher, ao taxá-la de alienadora, baseando as acusações em meras probabilidades, com consequências nefastas, que podem levar à alteração da guarda e fixação cautelar de domicílio diverso da criança ou adolescente. 

Aliás, a nova lei trouxe uma situação contraditória em relação ao tratamento da alienação parental e situações de violência familiar diversas da alienação parental. Isso porque a Lei nº 13.431/2017 trata como violência psicológica contra a criança o ato de alienação parental (artigo 4º, II, “b”), de modo que a conduta alienadora seria uma forma de violência abarcada pela Lei nº 14.713/2023, a ensejar a não imposição da guarda compartilhada.

Contudo, a lei de alienação parental (Lei 12.318/2010) assegura à criança a garantia mínima de visitação assistida no fórum em que tramita a ação ou em entidades conveniadas com a Justiça (artigo 4º parágrafo único). Assim, mesmo diante de mero indício de ato de alienação parental, determina que haja acompanhamento psicológico ou biopsicossocial, com um laudo inicial e outro ao final do acompanhamento, priorizando a convivência familiar.

Em sentido diverso, caminhou a nova lei, uma vez que com a mera “evidência de probabilidade de risco” já autorizou a guarda unilateral sem determinar a realização de acompanhamento por equipes multidisciplinares.

A introdução legislativa na lei de alienação parental para prever o acompanhamento psicológico foi fruto das críticas e discussões que foram amadurecendo acerca da importância da convivência familiar, ainda que com o(a) genitor(a) considerado(a) agressor(a). As reflexões devem servir de impulso para críticas e discussões sobre a lei que alterou o § 2º do artigo 1.584 do Código Civil. 

Espera-se que a situação de violência seja transitória e que o Poder Judiciário, com as ferramentas de que dispõe, notadamente os centros de visitação assistida e equipes de assistência psicossocial, possam conscientizar os genitores de seus papéis para uma convivência familiar sadia, à luz da proteção que recebe pelo Estado, conforme dispõe o artigo 224, § 4º da Constituição, assegurando assistência a cada um dos que a integram, sem que haja o rompimento dos vínculos familiares entre pais e filhos. Apenas em último caso, após esgotadas todas as tentativas, o afastamento provisório é um caminho, sem prejuízo de novas reavaliações no futuro, por requerimento judicial do genitor que foi privado do convívio.

Referências bibliográficas
Dias, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.

https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/136476

Madaleno, Rolf. Direito de família. 8. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

SIMÃO, José Fernando. Guarda compartilhada obrigatória. Mito ou realidade? O que muda com a aprovação do PL 117/2013. Jornal Carta Forense, 02 abr. 2014. Disponível em https://professorsimao.com.br/guarda-compartilhada-obrigatoria-mito-ou-realidade-o-que-muda-com-a-aprovacao-do-pl-117-2013/

Tartuce, Flávio Direito civil: Direito de família – v. 5. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.


[1] https://www.instagram.com/p/CzWGCONr1uP/

Autores

  • é assistente judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, especialista em Direito Processual Civil, mediadora e ex-professora assistente na PUC-SP.

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