Direto do Carf

Glosa de despesas por notas fiscais inidôneas: arbitramento ou lucro real?

Autor

  • Thais de Laurentiis

    é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

6 de dezembro de 2023, 8h00

A tributação com base no lucro real pressupõe a existência de escrituração com observância das leis comerciais e fiscais, lastreada em documentos que permitam à autoridade fiscal verificar a exatidão dos lançamentos contidos nas declarações prestadas pelo contribuinte e na sua contabilidade. De pronto, vale reforçar que se entende por contabilidade, na forma da lei, aquela que registra integralmente e fielmente as operações comerciais.

Não à toa o ordenamento jurídico outorga a necessária força probatória aos livros e à escrituração contábil das empresas, conforme dispõe o artigo 417 do Código de Processo Civil (CPC), [1] bem como o artigo 967 do Regulamento do Imposto sobre a Renda. [2] A consequência direta que temos dessa força relaciona-se com a distribuição do ônus da prova no processo administrativo fiscal: nos casos em que a autoridade administrativa pretende decretar a imprestabilidade da escrituração para fins fiscais, caberá a ela provar que os lançamentos efetuados não correspondem à realidade. De outro lado, para os casos em que o contribuinte visa a demonstrar que algum evento está equivocadamente descrito em sua contabilidade, por erros ou inexatidões, deverá produzir prova dessa alegação.

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Pois bem. Caso haja a constatação de que as informações contábil-financeiras não representam com fidedignidade a realidade dos fatos e das operações comerciais, ela poderá ser considerada imprestável pela autoridade fiscal, dando azo ao arbitramento dos tributos devidos aos cofres públicos.

Oportuno lembrar que o arbitramento produzido pela administração não é presunção e, tampouco, sanção em si mesmo. Na realidade, o arbitramento “é forma de apuração do valor a título de tributo que tem por causa conduta ilícita.” [3]

Assim, o lucro arbitrado é uma das bases de cálculo possíveis para o IRPJ, [4] ao lado do lucro real e do lucro presumido (cf. artigo 44 do CTN). No âmbito do imposto sobre a renda, disciplinando a questão, a Lei nº 8.981/1995 determina as situações em que o lucro será arbitrado:

Art. 47. O lucro da pessoa jurídica será arbitrado quando:

I     – o contribuinte, obrigado à tributação com base no lucro real ou submetido ao regime de tributação de que trata o Decreto-Lei nº 2.397, de 1987, não mantiver escrituração na forma das leis comerciais e fiscais, ou deixar de elaborar as demonstrações financeiras exigidas pela legislação fiscal;

II   – a escrituração a que estiver obrigado o contribuinte revelar evidentes indícios de fraude ou contiver vícios, erros ou deficiências que a tornem imprestável para:

a) identificar a efetiva movimentação financeira, inclusive bancária; ou

b) determinar o lucro real. (g.n.)

Decorre deste dispositivo que a manutenção da escrituração, na forma das leis comerciais e fiscais, requer não apenas a simples apresentação dos registros realizados nos livros correspondentes, mas que os registros retratem a verdade dos fatos. Afinal, a existência de fraudes torna a contabilidade e a escrituração de seus livros imprestáveis, fato que impossibilita o Fisco verificar com exatidão o lucro real oferecido à tributação. Dessarte, quer pela inveracidade da escrituração apresentada, quer pela impossibilidade de sua reconstituição pela inexistência de documentação idônea, fato é que o lucro deverá ser arbitrado.

Nesse sentido, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) delimita que, no lançamento de ofício, se presentes as condições acima descritas, o arbitramento é impositivo, e não facultativo (cf. acórdão 1402-00.728, de 29/09/2011). [5]

Apresentadas essas considerações iniciais, vamos ao que viemos na coluna de hoje: casos de glosas de notas fiscais inidôneas, que foram fraudulentamente utilizadas para a dedutibilidade de despesas da base de cálculo do IRPJ, devem inevitavelmente gerar o arbitramento do lucro?

Tais casos são vultosos no Carf, o que resultou em decisões conflitantes ao longo do tempo, que podem ser divididas em três grupos.

No primeiro grupo de decisões, encontram-se os acórdãos cujo entendimento é de que a escrituração de notas fiscais inidôneas caracteriza sonegação e/ou fraude na conduta praticada pelo contribuinte (cf. artigos 71 e 72 da Lei nº 4.502/1964), qual seja, a apropriação de créditos e despesas com base em documentos fiscais inidôneos.[6] Por conseguinte, a constituição do crédito tributário haveria de, obrigatoriamente, observar o regime do lucro arbitrado e não do lucro real, conforme determina expressamente o citado artigo 47, inciso II, da Lei nº 8.981/1995 (vide acórdão 01-06.101, sessão de 03 de fevereiro de 2009 e acórdão nº 1401-005.491, sessão de 18 de maio de 2021). Nesse sentido, argumenta-se que o dispositivo não parece apontar quaisquer temperamento a serem feitos pela autoridade lançadora: verificada a fraude, independentemente da representatividade das glosas em relação aos custos globais do contribuinte, deve ser utilizada a sistemática do lucro arbitrado.

O segundo grupo é composto por julgados que vão no caminho diametralmente oposto. Nesses precedentes também se afirma ser despiciendo saber quanto existe de despesas do contribuinte fundadas em notas fiscais inidôneas, em comparação com os custos de sua atividade. Porém a conclusão que ali se alcança é de que a glosa de despesas relacionadas às notas fiscais inidôneas não deve culminar no arbitramento do lucro. As razões encontradas para tanto são diversas.

No acórdão nº 1201-002.308, de  26 de julho de 2018, a Turma competente consignou, de maneira breve, que a glosa dos custos não é motivo suficiente para contaminar toda a escrituração. Assim, afirmou- se que, apesar do fato de as despesas não estarem devidamente comprovadas, seria perfeitamente possível, por meio da escrituração, determinar o lucro. Outrossim, consta no voto que a utilização do arbitramento no caso concreto seria indevida, uma vez que tal  sistemática tributária  receita como se  lucro fosse. Cumpre consignarmos que, nesse caso concreto, o valor glosado representava 50% dos custos do contribuinte.

O acórdão n° 103-22.230, de 25 de janeiro de 2006, esclarece bem a racionalidade desse segundo grupo de julgamentos: a fraude apurada na contabilização de custos/despesas amparados em notas inidôneas não se confundiria com a fraude na escrituração, à qual faz referência o art. 47, inciso II da Lei n. 8.981/1995.

Ainda no segundo grupo, encontramos decisões que traçam outro caminho argumentativo, asseverando que: “independentemente  do  montante  glosado,  a  desconsideração  de  custos  lastreados em notas fiscais inidôneas não dá causa ao arbitramento do lucro,  vez que a adoção da referida sistemática devolve ao contribuinte o direito de  deduzir  parcela  desses mesmos  dispêndios,  o  que, à luz  da moralidade e  da  legalidade, não é aceitável” (acórdão nº 1401-006.234, de 18 de outubro de 2022 e acórdão nº 1301-001.079, de  06 de novembro de 2012).

Passando então ao terceiro grupo de decisões, podemos constatar a existência de turmas de julgamento preocupadas com a não utilização do arbitramento de forma indiscriminada e, ao mesmo tempo, tendo o cuidado em verificar o regime de tributação mais favorável aos contribuinte, de modo a afastar a possibilidade de tributação do patrimônio ao invés do lucro da sociedade empresária.

Nesse sentido, destaca-se o acórdão nº 1201-005.640, de 17 de novembro de 2022. Está consignado no voto proferido pela Turma 1201 que valores decorrentes das glosas relacionadas às notas fiscais inidôneas (em torno de 30%) não se mostraram significativos em relação ao montante dos custos apropriados pelo contribuinte. Assim, embora entenda que a escrituração de notas inidôneas seja uma fraude que potencialmente poderia ensejar o arbitramento do lucro, pelos montantes de despesas glosadas não serem substanciais no caso concreto, entendeu o Carf que não seria hipótese de afastamento da tributação pelo lucro real.

A situação fática que foi apreciada no acórdão nº 1301-­003.503, de 21 de novembro de 2018, era muito diferente. Ali houve glosa praticamente integral das despesas do contribuinte, e, apesar disso, o lançamento foi efetuado com base no lucro real. Assim, restou decidido que “a glosa praticamente integral dos custos e despesas haverá de ensejar quando  muito  a  aplicação  da  tributação  sob  a  forma  do  chamado  arbitramento  em  face da então imprestabilidade da escrita. Nunca porém a sua glosa, sob pena da subversão do fato gerador, dentro do chamado ‘lucro real’ onde  as  despesas/custos  devem  ser abatidas da receita, assim apurando-se a base de cálculo imponível”. Em outras palavras, embora as premissas sejam as mesmas do acórdão n. 1201-005.640 citado acima, os fatos levaram à conclusão oposta, pois o lançamento do IRPJ com base no lucro real, com a glosa total das despesas com compras no período objeto da autuação, significaria a tributação da receita bruta auferida pela pessoa jurídica, o que é repudiado pela jurisprudência do Carf. No mesmo sentido, foi proferido o acórdão 1302-003.012, de 15 de agosto de 2018.

Confrontando as divergentes posições das turmas ordinárias sobre a interpretação do artigo 47 da Lei nº 8.981/1995, mais especificamente sobre a relevância do quantum glosado pelo lançamento tributário, vis a vis das compras globais do período de apuração em questão pelo contribuinte, a Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) manifestou-se no acórdão nº 9101-006.523, sessão de 4 de abril de 2023, solidificando que “a representatividade das compras inidôneas em relação ao total de custos escriturados não é suficiente para avaliar a necessidade de arbitramento dos lucros, mas também não permite que a autoridade lançadora formalize a exigência na sistemática do lucro real sem perquirir da repercussão da glosa na validade da escrituração apresentada pelo sujeito passivo“.

No seu voto a respeito do tema, a conselheira relatora Edeli Pereira Bessa apresentou importantes considerações sobre o ônus que detém o Fisco no momento de efetuar o lançamento de autos de infração para cobrança de IRPJ e tributos reflexos, uma vez constatada a escrituração de notas fiscais inidôneas.

Inicialmente, a conselheira lembra que os registros de compras são apenas um dos elementos da apuração de custos. Os custos integram um dos grupos contábeis nos quais são registradas as aplicações que se destinam à geração de receitas. Portanto, é possível cogitar-se sobre a existências de situações nas quais as receitas escrituradas foram auferidas sem os custos relacionados às notas fiscais inidôneas, resultando em lucros não declarados e distribuídos. Nesse tipo de caso não haveria lugar para o arbitramento, uma vez que a escrituração se prestaria à apuração do lucro tributável, bastando a glosa das despesas inidôneas.

Daí a necessidade de que a investigação fiscal avance na verificação da escrituração da empresa, de modo a avaliar se ela de fato se presta à apuração do lucro tributável, ainda que glosadas compras baseadas em notas fiscais inidôneas em valores substanciais. Assim, a conselheira conclui que “embora a inidoneidade de parcela representativa dos custos possa viciar de forma irreparável a escrituração, tal constatação é dependente da demonstração de sua repercussão nos demais eventos escriturais, especialmente para excluir a possibilidade de que a pessoa jurídica arcou com outros custos informalmente, para auferir as receitas escrituradas. Sem este aprofundamento da investigação, subsiste a possibilidade de as receitas terem sido auferidas apenas com a contratação dos demais custos ou despesas não glosados”.

A citada decisão foi acompanhada por unanimidade de votos, dando provimento ao recurso especial do contribuinte, tendo votado pelas conclusões os conselheiros Luis Henrique Marotti Toselli, Guilherme Adolfo dos Santos Mendes e Alexandre Evaristo Pinto.

Por tudo quanto exposto, indubitável que o tema em debate representa um primoroso exemplo da atividade jurisdicional atipicamente conduzida pelo Carf, no seio da administração pública e em especial um exemplo da importância da CSRF enquanto órgão com competência para solucionar divergências entre as turmas ordinárias. Isto porque, diante da complexidade dos casos envolvendo glosas de despesas relacionadas a notas fiscais inidôneas, levando a três lógicas de julgamentos diferentes pelas turmas ordinárias, a CSRF: reconheceu a diferença entre os casos e; apresentou decisão final muitíssimo bem fundamentada.

Tal decisão, atenta aos contornos que envolvem a apuração do lucro real, bem ponderou a necessidade de aprofundamento da motivação da atividade administrativa de lançamento tributário, que não pode se amisquir de entrar nos detalhes da escrituração fiscal dos contribuintes para precisamente determinar o adequado regime jurídico tributário nos casos de glosas de despesas inidôneas: o arbitramento ou o lucro real.


[1] Art. 417. Os livros empresariais provam contra seu autor, sendo lícito ao empresário, todavia, demonstrar, por todos os meios permitidos em direito, que os lançamentos não correspondem à verdade dos fatos.

[2] Art. 967. A escrituração mantida em observância às disposições legais faz prova a favor do contribuinte dos fatos nela registrados e comprovados por documentos hábeis, de acordo com a sua natureza, ou assim definidos em preceitos legais (Decreto-Lei nº 1.598, de 1977, art. 9º, § 1º) .

[3] HARET, Florence. Teoria e Prática das Presunções no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2010, p. 209

[4] Para aprofundamento no tema, ver: DANIEL NETO, Carlos Augusto e PINTO, Fernando Brasil de Oliveira. O lucro arbitrado nas hipóteses de omissão de receitas. In 100 anos do imposto sobre a renda no Brasil. PEIXOTO, Marcelo Magalhães e PINTO, Alexandre Evaristo. 1ª ed. São Paulo: MP, 2022, p. 322 e 323.

[5] “CONTABILIDADE QUE NÃO REGISTRA A MOVIMENTAÇÃO FINANCEIRA. CIRCUNSTÂNCIA QUE NÃO CONFERE CREDIBILIDADE AOS REGISTROS CONTÁBEIS. CONTABILIDADE DESCLASSIFICADA. ARBITRADO O LUCRO. Não se pode conferir credibilidade à contabilidade quando materialmente se verifica que ela não reflete a realidade das operações comerciais e bancárias realizadas pela empresa. O artigo 47 da Lei nº 8.981, de 1995, ao usar a expressão de que o lucro será arbitrado, nos casos que especifica, não confere faculdade à autoridade fiscal, mas sim comando impositivo quanto à forma de tributação. Assim verificado que a contabilidade não registra a maior parte das transações realizadas pela empresa, impõe-se o arbitramento do lucro para fins de apuração do IRPJ e da CSLL.” (g.n.)

[6] Caracterização essa, que, evidentemente, é feita pela autoridade fiscal no momento da lavratura do auto de infração.

Autores

  • é advogada, sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com período na Sciences Po/Paris, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, árbitra no CBMA, professora do mestrado profissional do IBDT, professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

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