Opinião

Regra do 'circuito fechado' é abuso regulatório e deve ser extinta

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5 de dezembro de 2023, 16h21

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região se depara, atualmente, com o julgamento de um recurso interposto pela Buser que questiona a abusividade da aplicação da regra do “circuito fechado” ao serviço de fretamento colaborativo de passageiros. A ação foi promovida pelo Sindicato das Empresas de Transportes Rodoviários Intermunicipais do Estado do Rio de Janeiro (Sinterj), no estrito objetivo de estabelecer, pela via judicial, um panorama de restrição à livre iniciativa e aos novos modelos de negócios possibilitados por novas tecnologias.

Apenas para situar os leitores, cumpre destacar que o fretamento colaborativo retrata a prestação de um serviço que se tornou popular com o avanço das interações online e, por consequência, pelo estabelecimento de uma comunidade de consumidores com interesses em comum. É dizer, pessoas que não necessariamente se conhecem no mundo físico, mas que acabam se unindo, por intermédio de uma plataforma digital, para contratar transporte coletivo – um ônibus ou uma van, na prática – do ponto A ao ponto B.

Divulgação

A regra do “circuito fechado”, por sua vez, foi criada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), sem maiores justificativas e sem uma lei federal que a estipulava previamente, para impor ao fretamento coletivo (não o colaborativo) a necessidade de se fazer  viagens de ida e volta com o mesmo grupo de pessoas.

Assim, a agência reguladora concebeu uma regra que prevê que todas as pessoas que se dirigiram até determinada localidade em um ônibus devem, necessariamente, retornar naquele mesmo veículo à origem, sob pena de imposição, pelo Poder Público, de multa e apreensão do veículo do fretador..

Para fazer uma comparação que denota a absoluta violação injustificada do direito constitucional de ir e vir de pessoas no território brasileiro: se aplicável ao transporte individual, a regra criada pela agência tornaria obrigatório que uma pessoa que contratou um transporte via Uber tivesse que retornar, no mesmo veículo, para o local em que o chamou. Se fosse até uma consulta médica, o motorista teria que ficar esperando o retorno do passageiro para levá-lo, necessariamente, ao local de partida. Obviamente que isso não seria aceito pela sociedade, até por critérios de lógica e razoabilidade. Por tal razão, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu, por meio do Tema de Repercussão Geral 967, que “a proibição ou restrição da atividade de transporte privado individual por motorista cadastrado em aplicativo é inconstitucional, por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência”.

No caso específico da ação do Sinterj, contudo, após os debates em primeira instância, o juiz da causa ressaltou a licitude dos modelos de fretamento contratados por meio de aplicativos, mas destacou a necessidade de respeito à aludida regra do “circuito fechado”, porque imposta administrativamente pela ANTT — mesmo que na ausência de qualquer justificativa para criação da regra.

Diante desse contexto, o recurso da Buser busca demonstrar o óbvio: a regra imposta pela agência é absolutamente desmotivada, inconstitucional e não pode ser ratificada pelo Poder Judiciário, sob pena de inclusive interromper serviços atualmente prestados no Rio de Janeiro e prejudicar severamente pessoas que não têm possibilidade de utilização de outro meio de transporte.

A esse respeito, é importante destacar a sensibilidade demonstrada pelo desembargador federal relator, José Antônio Lisboa Neiva, a partir da leitura da decisão liminar proferida no caso, que suspendeu os efeitos da sentença e permitiu a manutenção dos serviços de fretamento colaborativo no Rio de Janeiro.

Em primeiro lugar, a decisão em referência destaca a inaplicabilidade das regras da ANTT ao serviço de intermediação por meio de aplicativos, porque, evidentemente, o serviço prestado pela Buser “distingue-se do transporte regular ou de fretamento, sobretudo porque não exerce o transporte propriamente dito, sendo a sua atuação limitada ao intermédio de pessoas ou grupos interessados no serviço de transporte prestado por terceiros. Assim, em se tratando de serviço alheio à esfera de atuação da ANTT, afigura-se, no mínimo, duvidosa a possibilidade de restrição desta atividade privada pelo seu poder regulatório”.

A esse respeito, também são pertinentes as passagens de parecer juntado ao processo, expedido por Gustavo Binenbojm, professor titular da Faculdade de Direito da Uerj, no sentido de que o fretamento colaborativo difere dos demais modelos regulamentados pela ANTT, especialmente por ser uma “inovação disruptiva que se caracteriza: (i) por ser um serviço sob demanda; (ii) em que não há linhas ou itinerários específicos, nem trajetos obrigatórios; (iii) em que inocorre compartilhamento de infraestrutura pública (ou seja, não se utilizam terminais rodoviários); (iv) em que não há venda de passagens a usuários, mas um preço fechado para os grupos das viagens com rateio do frete; (v) tampouco a garantia de que o transporte efetivamente ocorrerá. Além disso, (vi) o serviço é fechado ao público, pois se exige cadastro prévio”.

Por outro lado, e aqui entrando na esfera da mais absoluta violação de direitos imposta pela regra do “circuito fechado”, mostra-se pertinente ressaltar que a decisão que concedeu o efeito suspensivo descreve que a sentença, “de certa maneira, força a requerente a se submeter, ainda que indiretamente, aos regulamentos editados pela ANTT. E, conforme já dito, o serviço de intermédio realizado pela requerente realmente destoa daqueles que estão sujeitos ao poder normativo da ANTT, sendo tal argumento, em tese, capaz de elidir a conclusão adotada na sentença condenatória. Soma-se a isto, o dever de assegurar a todos o livre exercício da atividade econômica (artigo 170, parágrafo único, da CF/88)”.

Aqui, de fato, não há nenhuma dúvida no sentido de que a regra do circuito fechado impede o livre desenvolvimento da atividade econômica de maneira injustificada. Conforme definido pelo STF em relação ao transporte individual de passageiros, proibições ou restrições dessa espécie de contratação são inconstitucionais por violação aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.

A ação judicial promovida pelo sindicato patronal busca, por meio do Poder Judiciário, impor a uma sociedade empresária exatamente a mesma inconstitucionalidade, só que em relação ao transporte coletivo, em especial porque não há nenhuma justificativa para proibir a celebração de contratos de transporte de um grupo de pessoas do ponto A ao ponto B sem estipulação de retorno. Ao contrário, a previsão da ANTT é inconstitucional e até mesmo ilógica, porque é justamente a liberdade de escolha — inclusive aquela de retornar ao local de origem ou não — que deve prevalecer.

Sob esse contexto, a imposição da regra do “circuito fechado” caracteriza gravíssimo abuso de poder regulatório, porque, como bem destacado pelo parecer de lavra do professor Gustavo Binenbojm, a determinação impede “a entrada de novos competidores por meio da exigência de especificações técnicas desnecessárias, com o que se bloqueia a inovação e a adoção de novas tecnologias e modelos de negócios. Tudo isso com aumento indevido de custos de transação e a criação de limites à livre formação de atividades econômicas”.

Uma regra não pode simplesmente barrar determinada atividade com o intuito de prejudicar uma pessoa — natural ou jurídica — e beneficiar outras. Como se percebe, identificar “para que serve” determinada regulamentação nem sempre é uma atividade simples. Descobrir “a quem” ela serve, por outro lado, é uma tarefa que usualmente consome poucos instantes de pesquisa. É difícil entender qual a razão de regulamentar o transporte coletivo de passageiros, mas é muito fácil perceber quem são os beneficiados e os prejudicados pela regulamentação e pelo ambiente de reserva de mercado.

Diante desse contexto, o parecer em referência conclui que “(i) o circuito fechado não é elemento constitutivo da atividade de fretamento; e (ii) a sua imposição como condição necessária à atividade é incompatível com a Constituição (sobretudo à luz do regime de liberdade econômica) e com as competências atribuídas à ANTT pela Lei no 10.233/2001, a revelar hipótese de abuso de poder regulatório, dado que cria, ilicitamente, reserva de mercado no setor de transporte terrestre de passageiros, em favor das transportadoras autorizadas para a prestação regular. No mais (iii) ainda que fosse possível o estabelecimento do circuito fechado como condição para o exercício da atividade de fretamento, tal imposição demandaria a observância do devido processo regulatório, com motivação robusta, lastreada em dados empíricos, para comprovar a proporcionalidade da medida. No entanto, (iv) as evidências trazidas pela Consulente indicam que a regra do circuito fechado, além de ilegal, causa restrições desproporcionais e antieconômicas e impediria a ocorrência de diversas externalidades positivas à sociedade”.

Embora essa não represente uma relação de causa e efeito necessária, a história demonstra que a imposição de procedimentos mais complexos para empreender em setores de interesse público gera, ao menos no Brasil, patologias como a reserva de mercado e a má qualidade de serviços. Realisticamente, quem deseja viver em um mundo pré-Uber ou 99, arcando com os custos de consumir um serviço ruim que só se mantinha por excesso de regulação danosa?

Se pensarmos, por exemplo, na experiência dos consumidores ao utilizar uma rodoviária, invariavelmente chegaremos à conclusão de que o serviço é ruim. E o que normalmente está por trás de um serviço ruim? O excesso de regulamentação e a dificuldade de obtenção de concessão para empreender no setor. Isso gera uma manutenção de status daqueles que prestam o serviço, o que ocasiona, na realidade brasileira, uma perda geral de qualidade.

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