Opinião

EUA: entrelinhas da proposta de alteração dos regulamentos de antidumping e subsídios

Autores

  • Amanda Athayde

    é professora doutora adjunta de Direito Empresarial de Concorrência Comércio Internacional e Compliance na Universidade de Brasília (UnB) consultora no Pinheiro Neto Advogados nas práticas de Concorrencial Compliance e Comércio Internacional doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) ex-subsecretária de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia ex-chefe de Gabinete do Ofício do MPF junto ao Cade e do Gabinete da Superintendência-Geral do Cade coordenadora do Programa de Leniência Antitruste ex-analista de Comércio Exterior do Ministério de Desenvolvimento Indústria e Comércio (MDIC) cofundadora da rede Women in Antitrust (WIA) e idealizadora e entrevistadora do podcast Direito Empresarial Café com Leite.

  • Mírian Campos

    é mestre em direito econômico internacional pela Universidade de Stanford e mestre em relações internacionais pela Universidade de Brasília analista de comércio exterior desde 2014 com passagem pelos Ministérios da Indústria Comércio Exterior e Serviços (MDIC) e da Economia.

3 de dezembro de 2023, 7h04

Em maio de 2023, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos (USDoC) publicou consulta pública sobre uma proposta normativa que altera diversos dispositivos dos regulamentos referentes a antidumping (AD, na sigla em inglês) e medidas compensatórias de subsídios (CVD, na sigla em inglês) [1]. As novas regras têm, na superfície, o objetivo de revisar procedimentos, normatizar práticas e aprimorar metodologias e análises relativas a distorções de preços e custos.

Vários aspectos dos regulamentos de AD/CVD foram contemplados na proposta de revisão apresentada pelo USDoC. Alguns dos tópicos são mais procedimentais, como tratamento de referências, citações e hiperlinks fornecidos nas submissões ou a utilização de memorandos de análise e cálculos de processos anteriores. Outros tópicos, no entanto, parecem ter impacto substancial para as investigações, bem como para a metodologia de cálculo dos direitos antidumping e das medidas compensatórias aplicadas pelo USDoC, merecendo análise, nas entrelinhas, do que pode estar por vir.

O escritório de advocacia Sidley resume a natureza das regulamentações propostas da seguinte forma:

Esta atualização se concentra em três das novas ferramentas mais importantes apresentadas nesses regulamentos propostos: (1) ferramentas para lidar com a suposta “inação” governamental relacionada aos direitos de propriedade (incluindo propriedade intelectual),3 questões de direitos humanos, trabalhista e ambiental; (2) instrumentos para fazer face ao potencial excesso de capacidade e ao excesso de oferta de determinados fatores de produção importantes no mercado internacional; e (3) ferramentas para lidar com subsídios transnacionais. Essas ferramentas podem resultar em novas investigações, processos administrativos mais rigorosos com maiores encargos e taxas substancialmente maiores de AD/CVD em processos futuros. Eles também podem ser inconsistentes com a lei atual dos EUA e as obrigações do país perante a Organização Mundial do Comércio (OMC)” (tradução nossa).

Trataremos, neste artigo, de três principais controvérsias: (1) inações de governos estrangeiros que beneficiariam produtores estrangeiros; (2) Particular Market Situation e (3) subsídios transnacionais.

Três principais controvérsias
Uma das propostas mais controversas consiste no que o USDoC chamou de (1) “inações de governos estrangeiros que beneficiariam produtores estrangeiros” (“foreign government inaction that benefits foreign producers“). De acordo com o departamento, “a inação do governo estrangeiro pode resultar em custos e preços que são injustificadamente suprimidos e criar condições desiguais entre produtores e fornecedores em países nos quais os governos fornecem propriedade fraca, ineficaz ou inexistente (incluindo propriedade intelectual), direitos humanos, proteção trabalhista e ambiental, e produtores e fornecedores em países nos quais os governos fornecem e aplicam tais proteções”.

Isso incluiria, por exemplo, o não pagamento de taxas, multas e penalidades, assim como a inexistência, a inefetividade ou a não aplicação de regras de propriedade intelectual, direitos humanos, direitos trabalhistas e direito ambiental. O DoC considera que a falta dessas proteções impacta os custos e os preços dos produtos, criando condições de concorrência desiguais para os produtores norte-americanos. A consequência dessa inação do governo estrangeiro, portanto, estaria na possível adequação do custo das empresas investigadas com base em métodos alternativos de cálculo, a fim de ajustá-lo ao que o USDoC entende que seria praticado se os produtores, efetivamente, cumprissem a legislação que inexiste ou não é aplicada.

Nesse caso, a tendência é o uso da chamada “melhor informação disponível” (best information available, ou BIA, na sigla em inglês), que, nos termos da experiência do USDoJ, tende a ser a pior informação, do ponto de vista da empresa investigada. Com isso, a estimativa dos custos e preços normais do país exportador podem ser majorados, resultando em maiores margens de dumping.

Outro tema polêmico é a proposta de novos regramentos sobre (2) Situações Particulares de Mercado (Particular Market Situation ou PMS, na sigla em inglês), estabelecendo os elementos que o USDoC consideraria na determinação de situações particulares de mercado que distorcem os custos de produção. Nesse sentido, o USDoC apresentou 12 exemplos de cenários em que ocorreria a PMS, que não constituem, contudo, uma lista exaustiva[2].

A proposta atual do USDoC é baseada em uma consulta anterior em que foram discutidos três tópicos principais: (i) quais informações deveriam ser consideradas na determinação da PMS, que distorcem os custos de produção; (ii) quais informações não deveriam ser obrigatoriamente consideradas na determinação da PMS; e (iii) quais ajustes que o USDoC poderia fazer em seus cálculos quando determinada a existência de PMS. Dois dos 12 casos exemplificados pelo USDoC envolvem situações em que o governo estrangeiro deixa de cobrar taxas ou impostos sobre insumos relevantes aplicados no produto investigado. Nesses casos, a quantificação da distorção de mercado consistiria exatamente no valor do imposto ou taxa não cobrados. Os demais casos exigiriam uma análise mais qualificada por parte do USDoC, que teria de determinar se é possível estimar o valor da distorção de mercado nos cálculos do custo de produção. De acordo com a proposta, caso não seja possível quantificar as distorções com precisão com base nas informações apresentadas nos autos, o USDoC poderia utilizar qualquer metodologia “razoável”, com bases em informações relevantes disponíveis, para ajustar os cálculos.

A terceira polêmica diz respeito aos (3) subsídios transnacionais, que se referem a subsídios conferidos pelo governo de um país que não o país de origem do produto investigado. Nesse caso, o USDoC pretende excluir o dispositivo normativo que o impede de considerar como subsídio o benefício conferido por um governo que não o governo do país de origem do produto investigado. Com a eliminação da atual restrição a esse tipo de investigação, seria possível o USDoC realizar investigações de subsídios transnacionais. A justificativa para essa proposta é a de que estaria havendo ocorrências frequentes de países oferecendo subsídios a produtores estrangeiros, e que permitir essa prática seria inconsistente com o próprio propósito da legislação antissubsídio dos EUA.

Além dessas, há outras propostas controversas, como as que dizem respeito aos seguintes temas: mandatos; tratamento de empréstimos como subvenções (após três anos sem pagamentos de juros e principal); determinação do benefício de aportes de capital; determinação do benefício de um perdão da dívida; tratamento de certos benefícios relativos a subsídio de imposto de renda; questões relacionadas ao prêmio cobrado no seguro de crédito à exportação e utilização de metodologias alternativas na atribuição de subsídios à exportação e subsídios internos a determinados produtos exportados e/ou vendidos por uma empresa. Contudo, via de regra, esses temas não constituíram preocupação central dos governos que se manifestaram na consulta.

Repercussão internacional
O USDoC recebeu 55 comentários sobre as propostas, sendo seis de governos estrangeiros (Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, México e Vietnã) e o restante de entidades privadas, como, escritórios de advocacia, empresas, câmaras de comércio e associações.

No caso do México, a principal preocupação é quanto à eliminação da restrição que impede o USDoC de aplicar medidas compensatórias contra subsídios transnacionais (subsídios fornecidos por um governo para a produção em outro país). O governo mexicano argumenta que a medida não encontra amparo nos acordos da OMC e que não está claro como o departamento faria a investigação de um suposto subsídio fornecido por um governo que não é parte na investigação.

A proposta quanto aos subsídios transnacionais é, também, o principal tema criticado pelo governo sul-coreano, juntamente com as alterações propostas em relação à definição de PMS. A Coreia alega que o conceito de PMS deve ser utilizado como uma exceção, não como regra, e que os direitos antidumping não se destinam a fornecer uma ferramenta para endereçar preocupações decorrentes de questões como subsídios governamentais, diferentes níveis de proteção ambiental ou padrões laborais, excesso de capacidade global ou potenciais impactos causados por economias não de mercado. Segundo o governo sul-coreano, os acordos da OMC e a legislação norte-americana já teriam instrumentos mais adequados para tratar desses assuntos.

A China, por sua vez, alega que muitas das alterações propostas violam princípios básicos do direito internacional, assim como regras da OMC, e afirma que as propostas “aumentarão indevidamente o âmbito das investigações, ampliarão injustamente a discricionariedade do Departamento de Comércio, aumentarão irresponsavelmente o ônus da prova sobre a parte demandada e prejudicarão injustificadamente os direitos legítimos das partes interessadas, com o efeito adverso de perturbar a cadeia industrial internacional, a cadeia de abastecimento e o comércio internacional” (tradução nossa).

O governo chinês opõe-se particularmente à proposta de regulamento sobre a inação de governo estrangeiro que beneficie produtores estrangeiros, tais como direitos de propriedade intelectual, direitos humanos, trabalhistas e ambientais, alegando que essas questões não são compatíveis com a natureza das investigações de defesa comercial e que afetam aspectos de soberania nacional. Relativamente à regra proposta para empréstimos, a China afirma que o USDoC os estaria tratando incorretamente como subsídios, uma vez que o período-limite proposto de três anos não está em linha com as práticas usuais. Finalmente, a China critica a proposta de retirada do dispositivo que impede o USDoC de realizar investigações sobre subsídios transnacionais, afirmando que tais investigações violariam o Acordo da OMC sobre Subsídios e Medidas Compensatórias, além de serem inconsistentes com a legislação e prática dos EUA. O Vietnã também se opõe de forma veemente a essas propostas.

O governo canadense afirma que os regulamentos propostos pelo USDoC são injustos e impõem encargos indevidos às partes. No que diz respeito à metodologia para definição de PMS, o Canadá argumenta que as alterações ignoram requisitos legais, como a demonstração de que a situação impede uma comparação adequada, a questão da particularidade e o nexo causal. O Canadá alega que diversas outras alterações são inconsistentes com a legislação atual e que aumentariam inadequadamente a margem de discricionariedade da autoridade investigadora, prejudicando a previsibilidade do processo.

O Brasil, apesar de manifestação breve, também expressou preocupação com as mudanças propostas, especialmente no que diz respeito aos tópicos de inação do governo estrangeiro que beneficiam os produtores estrangeiros e à regulamentação para determinar a existência de uma situação particular de mercado. Sem elaborar os argumentos em detalhes, o governo brasileiro alega que essas mudanças têm o potencial de ampliar significativamente a discricionariedade da autoridade investigadora dos EUA e que a proposta incorpora conceitos estranhos aos acordos de defesa comercial da OMC. Segundo o governo brasileiro, as alterações poderiam levar a autoridade investigadora norte-americana a revisar aspectos relacionados a leis, políticas e padrões nacionais de outros países. Finalmente, o Brasil afirma que o nível de evidência exigido pelo USDoC para a caracterização de uma PMS, segundo a nova proposta, inspira preocupação.

Não houve nenhuma publicação oficial ou comentário subsequente do USDoC sobre as propostas de alteração ou sobre as contribuições recebidas na consulta pública. Ainda resta ver se, e como, os regulamentos serão efetivamente alterados. Caso o resultado seja semelhante ao conteúdo submetido à consulta, é de se esperar bastante insatisfação e questionamentos, até mesmo perante o órgão de solução de controvérsias da OMC, que se encontra atualmente paralisado justamente por falta de aprovação pelos Estados Unidos.


[1] Todo o material foi disponibilizado ao público por meio do portal oficial eRulemaking, sob o número de processo 230424-0112, disponível em https://www.regulations.gov/.

[2] Além das situações em que o governo estrangeiro deixa de cobrar taxa ou imposto sobre insumos relevantes para o produto investigado, há, também, situações envolvendo empresas estatais e outros tipos de entidades públicas; o fornecimento de assistência financeira; políticas de conteúdo nacional e transferência de tecnologia; a aplicação de legislação ambiental, trabalhista e de propriedade intelectual e a relação entre fornecedores de insumos e produtores do produto investigado que os preços praticados não reflitam princípios de mercado. A descrição dos exemplos, na versão original integral, pode ser verificada aqui: Relação dos 12 exemplos de PMS incluídos pelo USDoC na nova proposta de redação do Código de Regulamentos Federais (Code of Federal Regulations), § 351.416 (redação original em inglês):

(1) A significant input into the production of subject merchandise is produced in such amounts that there is considerably more supply than demand in international markets for the input; the record reflects that, regardless of the impact of such overcapacity of the significant input on other countries, such overcapacity is likely to contribute to distortions of the price or cost of that input in the subject country; and those distortions can be addressed by the Secretary in its calculations of the cost of production;

(2) A government, state-owned enterprise, or other public entity in the subject country owns or controls the predominant producer or supplier of a significant input used in the production of subject merchandise; such ownership or control of the producer or supplier is likely to contribute to price or cost distortions of that input in the subject country; and those distortions can be addressed in the Secretary’s calculations of the cost of production;

(3) A government, state-owned enterprise, or other public entity in the subject country intervenes in the market for a significant input into the production of subject merchandise; such intervention is likely to contribute to price or cost distortions of that input in the subject country; and those distortions can be addressed in the Secretary’s calculations of the cost of production;

(4) A government in the subject country limits exports of a significant input into the production of subject merchandise; such export limitations are likely to contribute to price or cost distortions of that input in the subject country; and those distortions can be addressed in the Secretary’s calculations of the cost of production;

(5) A government in the subject country imposes export taxes on a significant input into the production of subject merchandise; such taxes are likely to contribute to price or cost distortions of that input in the subject country; and those distortions can be addressed in the Secretary’s calculations of the cost of production;

(6) A government in the subject country exempts an importer, producer or exporter of the subject merchandise from paying duties or taxes associated with trade remedies established by the government relating to a significant input into the production of subject merchandise;

(7) A government in the subject country rebates duties or taxes paid by an importer, producer or exporter of the subject merchandise associated with trade remedies established by the government related to a significant input into the production of subject merchandise;

(8) A government, state-owned enterprise, or other public entity in the subject country provides financial assistance or other support to the producer or exporter of the subject merchandise, or to a producer or supplier of a significant input into the production of the subject merchandise; such assistance or support is likely to contribute to cost distortions of the subject merchandise or distortions in the price or cost of a significant input into the production of subject merchandise in the subject country; and those distortions can be addressed by the Secretary in its calculations of the cost of production;

(9) A government, state-owned enterprise, or other public entity in the subject country takes actions which otherwise influence the production of the subject merchandise or a significant input into the production of subject merchandise, such as domestic-content and technology transfer requirements; those actions are likely to contribute to cost distortions of the subject merchandise or distortions in the price or cost of a significant input into the production of subject merchandise in the subject country; and such distortions can be addressed in the Secretary’s calculations of the cost of production;

(10) A government or other public entity in the subject country does not enforce its property (including intellectual property), human rights, labor, or environmental protection laws and policies, or those laws and policies are otherwise shown to be ineffective with respect to a either a producer or exporter of the subject merchandise, or to a producer or supplier of a significant input into the production of the subject merchandise in the subject country; the lack of enforcement or effectiveness of such laws and policies is likely to contribute to cost distortions of the subject merchandise or distortions in the price or cost of a significant input into the production of subject merchandise; and those distortions can be addressed in the Secretary’s calculations of the cost of production;

(11) A government or other public entity does not implement property (including intellectual property), human rights, labor, or environmental protection laws and policies; the absence of such laws and policies is likely to contribute to cost distortions of the subject merchandise, or distortions in the price or cost of a significant input into the production of subject merchandise in the subject country; and those distortions can be addressed by the Secretary in its calculations of the cost of production; and

(12) A business relationship between one or more producers of the subject merchandise and suppliers of significant inputs to the production of the subject merchandise is such that prices of the inputs are not determined in accordance with market-based principles, such as through a strategic alliance or noncompetitive arrangement; such a relationship is likely to contribute to cost distortions of the subject merchandise or distortions in the price or cost of a significant input into the production of subject merchandise in the subject country; and such distortions can be addressed in the Secretary’s calculations of the cost of production.

Autores

  • é professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, concorrência, comércio internacional ecompliance, consultora no Pinheiro Neto, doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I — Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros e autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.

  • é mestre em direito econômico internacional pela Universidade de Stanford e mestre em relações internacionais pela Universidade de Brasília, analista de comércio exterior desde 2014, com passagem pelos Ministérios da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) e da Economia.

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