Repensando as Drogas

Pesca de provas: da atitude suspeita à entrada franqueada

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1 de dezembro de 2023, 8h00

Os casos seguintes, devidamente adaptados a fim de evitar qualquer identificação, resultaram em prisão por flagrante prática de tráfico de drogas.

Caso 1
A Polícia Militar estava em patrulhamento pelo bairro A, e recebeu a denúncia de populares da rua X, local de venda de drogas, de que havia fluxo de usuários.
Deslocamos para o local, onde deparamos com os autores Caio e Tício, ambos em atitude suspeita, e, ao serem abordados, foi encontrada uma bucha de maconha com o autor Caio, além de 100 (cem reais) com o autor Tício.
Ao serem questionados sobre a origem da droga, ambos confirmaram que foi adquirida no bairro B, e que tinha mais droga na residência de Caio. Deslocamos até lá.
A irmã do infrator Caio franqueou a entrada destes militares em sua residência.
No local foram encontrados mais dois tabletes de maconha e duzentos reais.”

Caso 2
Durante patrulhamento, a Polícia Militar se deparou com Fulano, que estava em atitude suspeita, já que andava pela rua atrás de postes e árvores.
Diante disso, a equipe se aproximou para abordá-lo, decorrente da fundada suspeita.
Antes de ser abordado, o autor jogou um invólucro no rio. 
Com o autor foi encontrada uma embalagem de papel para embalar cigarro de maconha.
O autor afirmou que tinha mais drogas em sua casa.
No local, a entrada foi franqueada pela mãe de Fulano.
Foi encontrada na residência mais uma bucha de maconha.”

ConJur

Caso 3
Durante realização de patrulhamento policial, encontramos o senhor Beltrano, desembarcando da motocicleta de placa AAA 0000, que era conduzida pelo senhor Fulano. Eles estavam parados no viaduto. Devido à atitude suspeita, eles foram abordados.
Com eles foram encontrados um tablete de maconha e a quantia de R$ 175,00 (cento e setenta e cinco reais).
O senhor Beltrano afirmou ser usuário de drogas, e que em sua residência havia plantado maconha para uso próprio, apesar de não dispor mais das plantas, que tinham sido transformadas em maconha para fumar.
Diante da informação, deslocamos até a residência de Beltrano, o qual franqueou a entrada da Polícia Militar.
Atrás da televisão da residência, foi encontrada mais certa quantidade de substância semelhante a maconha.”

Essas situações de prisão em flagrante por tráfico de drogas, apesar de serem três casos diferentes, repetem-se exaustivamente, e podem ser resumidas em um “modelo-padrão”: um ou dois homens, geralmente entre 18 a 39 anos, a grande maioria pardos ou negros, avistando a viatura policial, demonstram “atitude suspeita” e são objeto de busca pessoal.

Por uma boa vontade confessional, o abordado, que traz consigo alguma quantidade de droga, assume que tem mais substâncias ilícitas em sua residência, para onde se deslocam todos, flagrados e policiais militares.

No local, a entrada é “franqueada”, ou seja, autorizada pelo abordado ou por algum parente (mãe, pai, irmã etc.).

Encontram-se algumas outras porções de droga, e, por fim, o sujeito é preso em flagrante por prática de tráfico de drogas.

Três são as principais questões problemáticas das situações narradas, que, a seguir, serão analisadas de forma breve.

O perfilamento racial
O primeiro caso narrado (caso 1) é muito interessante. Caio era pardo e Tício, branco. A que residência se dirigiram os militares, com os sujeitos em “atitude suspeita”? Do primeiro, óbvio.

A tese do perfilamento racial é objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus HC 208.240/SP, impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Em breve síntese, a DPE-SP sustenta que, no caso concreto, a prisão em flagrante do paciente é nula, uma vez que a a abordagem policial se deu com base em filtragem racial, isto é, fundada exclusivamente na cor da pele da pessoa suspeita[1].

O caso ainda não foi julgado, em virtude de pedido de vista de ministro.

Apesar de, como apontado pelo jurista Lenio Streck, ser problemática a construção, pelo Supremo Tribunal Federal, de tese abstrata e geral em processo de Habeas Corpus, a partir de um caso concreto[2], o julgamento do HC impetrado pela Defensoria Pública paulista tem uma grande virtude: expor nacionalmente o problema e, de algum modo, enriquecer o debate, sobretudo pelas diversas entidades que ingressaram na ação como amicus curiae.

O resultado é aguardado.

A (quase) sempre não observância do artigo 244 do CPP
Esse ponto tem intrínseca relação com o ponto anterior, mas neste momento será analisado sem a ótica do racismo, mas, sobretudo, do fishing expedition [3], que é a colheita de provas de forma aleatória, sem existir de fato amparo legal para tanto, a fim de atribuir responsabilidade penal a determinadas pessoas.

Um dos amparos legais para se evitar esse tipo de situação é justamente artigo 244 do CPP, cuja redação dispõe:

Art. 244.  A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

O preceito legal disciplina a busca pessoal sem mandado judicial. São duas as possibilidades legais.

A primeira no caso de prisão. Apesar de a lei não ser clara o bastante, é possível afirmar que o termo prisão se trata tanto da prisão em flagrante, nos casos do CPP, artigo 302, incisos, bem como da prisão determinada por decisão judicial (seja a prisão preventiva, CPP, artigo 312 e 313, seja a prisão para o início de cumprimento de pena, de acordo com a LEP, artigos 105 e seguintes).

Estas possibilidades de buscas pessoais não interessam no presente texto, mas somente a segunda possibilidade disciplinada pelo artigo 244: a fundada suspeita.

Grande parte dos casos analisados, que simbolicamente são representados pelas três narrativas acima, denota que a polícia militar, força de segurança pública responsável pela maioria das buscas pessoais em que drogas são apreendidas com determinadas pessoas, utiliza o termo “atitude suspeita” como uma fórmula genérica, sem explicitar, exatamente, quais as circunstâncias concretas que colmatam a regra, isto é, a fundada suspeita, vetor do CPP, artigo 244.

E, quando o histórico da ocorrência tem a boa vontade de tentar explicitar a “atitude suspeita” da pessoa que sofreu a busca, a comunidade jurídica é surpreendida com descrições, com o devido respeito, cômicas; por exemplo, o abordado que, por andar pela rua atrás de postes e árvores, sofreu a sua busca pessoal.

Há também o famoso e batido “o flagranteado, ao avistar a viatura policial, demonstrou nervosismo”. Já deparou o autor do texto com abordagem em pessoa que havia “acabado de sair de uma rua escura”, e, portanto, estava em atitude suspeita.

O que, afinal, é a atitude suspeita?

Não existe resposta; são várias as respostas, a depender do caso concreto.

O Superior Tribunal de Justiça vem se deparando com diversas situações em que, de algum modo, o questionamento é feito, sob tese recursal de violação ao citado artigo 244 do CPP.

Vem se formando naquele tribunal, principalmente pelas mãos do ministro Rogerio Schietti Cruz, pensamento consolidado no sentido de que não basta a mera invocação genérica da “atitude suspeita” para autorizar a busca pessoal. É preciso, de fato, existir uma circunstanciada situação que demonstre que naquele caso a exigência legal foi satisfeita. Nesse sentido, o recente julgado:

RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. BUSCA PESSOAL. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES. FLAGRANTE AMPARADO EM ELEMENTOS SUBJETIVOS. ILEGALIDADE POR ILICITUDE DAS PROVAS. ABSOLVIÇÃO. RECURSO PROVIDO.
(…).
3. No caso, a busca pessoal realizada ocorreu de modo irregular, pois não havia fundada suspeita de prática delituosa, uma vez que, “No momento em que o denunciado percebeu a presença militar, mudou abruptamente sua direção de caminhada e demonstrou bastante nervosismo. Diante da situação, os militares realizaram a abordagem do denunciado, identificando-o e localizando na posse direta deste 02 (duas) buchas de maconha e a importância de R$ 194,00”.
4. Recurso especial provido para reconhecer a nulidade das provas obtidas mediante busca pessoal, bem como das provas derivadas, e absolver o recorrente das imputações trazidas na denúncia (art. 386, VII, do CPP).
(REsp n. 2.069.822/MG, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, julgado em 21/11/2023, DJe de 28/11/2023.)

Da inviolabilidade do domicílio
A inviolabilidade do domicílio é uma garantia fundamental de cidadãs e cidadãos contra o poder arbitrário estatal. Está disciplinada na CRFB, artigo 5º, XI, cujo texto assim está redigido:

XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

O grande trunfo para justificar os diversos ingressos forçados em domicílio (leia-se, casa de pobre) pelas forças de segurança pública por todo o país é a ressalva da própria norma constitucional: a expressão “salvo em caso de flagrante delito”.

Em síntese, os profissionais de segurança pública afirmam a existência um fator aleatório, por exemplo, “um forte odor de drogas vinda da residência”, ingressam no domicílio, geralmente durante a madrugada, o que, inclusive, nem mesmo é autorizado pela Constituição que se faça por decisão judicial, encontram ínfima quantidade de droga, e prendem pessoas por suposto flagrante de tráfico de drogas.

A jurisprudência ainda aceita esse tipo de situação. E não são poucos os julgados. Simbolicamente, tem-se o seguinte:

APELAÇÃO CRIMINAL. ART. 33 DA LEI Nº 11.343/06. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. NULIDADE DA PROVA. FUNDADAS RAZÕES DA OCORRÊNCIA DO ESTADO FLAGRANCIAL. EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO. PRECEDENTE DO STF (RE Nº 6023.616). PRELIMINAR REJEITADA. MÉRITO. ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS. CIRCUNSTÂNCIAS DA PRISÃO E FORMA DE ACONDICIONAMENTO DOS ENTORPECENTES. AGENTE PRESO EM FLAGRANTE NO ATO DE EMBALAR DROGAS PARA A COMERCIALIZAÇÃO. CONDENAÇÃO MANTIDA. DOSIMETRIA DA PENA. CULPABILIDADE NEGATIVA. MOTIVAÇÃO IDÔNEA (QUANTIDADE EXPRESSIVA DE ENTORPECENTE). ALTERAÇÃO DA FRAÇÃO. DESCABIMENTO. RECURSO DESPROVIDO. (…) – Comprovado nos autos que quando da diligência policial, precedida de denúncia anônima, um dos agentes empreendeu fuga e, em seguida, constatou-se um forte odor de maconha proveniente da residência, tem-se a justa causa a ensejar o ingresso dos militares no domicílio, inexistindo, no presente caso, a alegada ilegalidade arguida pela parte. (…)
Recurso desprovido.  (TJMG – Apelação Criminal  1.0000.23.141328-7/001, Relator(a): Des.(a) Nelson Missias de Morais , 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 23/11/2023, publicação da súmula em 24/11/2023)

Entretanto, o corte analítico da inviolabilidade do domicílio no presente texto é diverso, já que deve ser feito sob a conjunção da soma “atitude suspeita + entrada franqueada”. Ou seja, o fato de a pessoa ser presa na rua, longe de sua casa, numa abordagem já extremamente questionável (CPP, artigo 244), e, além disso, ser ela conduzida a sua residência, onde será a entrada “franqueada” aos policiais.

Nesse tipo de situação é por demais claro que não está presente a hipótese da CRFB, artigo 5º, XI; afinal de contas, o crime em tese cometido pelo sujeito abordado, “em atitude suspeita”, ocorreu na rua, e não dentro de casa. Só um esforço hermenêutico muito elástico para dizer que existe flagrante delito no interior da residência mesmo se o dono da casa comete crime fora dela, ainda que a quilômetros de distância.

O STJ também vem decidindo esse tipo de situação de forma reiterada. A conclusão tem sido em sentido semelhante ao que já debatido no item anterior: é nula a prova obtida, apreensão de drogas no interior da residência, por violação ao artigo 5º, XI, da CRFB. Há julgado recente a respeito, com riqueza de detalhes.

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS. BUSCA PESSOAL E INGRESSO EM DOMICÍLIO. AUSÊNCIA DE FUNDADAS RAZÕES ILICITUDE DAS PROVAS OBTIDAS. NULIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
(…).
7. Outrossim, em recentes julgados da Sexta Turma desta Corte Superior, tem-se entendido que “[a] constatação de indícios da prática de tráfico de drogas em via pública pelas forças policiais não autoriza, por si só, o ingresso forçado no domicílio do autuado como desdobramento automático do flagrante realizado fora da residência” (AgRg no HC n. 773.899/AM, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/3/2023, DJe 31/3/2023).
(…)
(AgRg no HC n. 820.634/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 10/10/2023.)

Fixadas as premissas até aqui expostas, encerra-se o texto com duas singelas conclusões.

As ideias apresentadas não buscam “defender bandido”, como muitos dizem, mas o pacto civilizatório estabelecido a partir de 1988. Na mesma fonte de onde derivam as bases institucionais do Poder Judiciário e do Ministério Público estão as garantias constitucionais de todas as pessoas, boas ou más. A Carta Magna é democrática e abraça a todas e todos.

A segunda, e na opinião pessoal do autor, a mais importante. A jurisprudência defensiva do STJ tem o êxito de desestimular condutas contrárias ao ordenamento jurídico e, em última instância, defender as populações mais vulneráveis. Afinal de contas, a maioria, talvez totalidade dos domicílios invadidos são de gente pobre.

Para cada abordagem pessoal e ilegal ingresso em domicílio em que se acha droga, já houve a mesma conduta em várias outras pessoas e em várias outras casas, sem que droga alguma fosse encontrada. Isso jamais chega ao conhecimento do Poder Judiciário ou Ministério Público. Ou alguém acredita que o êxito na “pesca de provas” é de 100%?

PS.: Este texto é uma homenagem a dois juristas do Sul.
O primeiro, de Curitiba, o colega paranaense promotor de Justiça Jacson Zilio.
Caro, Zilio, repensar as drogas, e repensar a guerra às drogas, incomoda a muita gente. Siga firme, você não está só.

O segundo homenageado é o juiz catarinense e professor Alexandre Morais da Rosa. Durante as pesquisas para a elaboração deste artigo, descobriu o autor que, de forma muito mais profunda, o tema foi abordado na semana passada por Alexandre [4]. O presente texto, portanto, pensado dias antes e publicado nesta semana, trata-se de coincidência, e não de plágio. Ficam aqui os agradecimentos.


[1] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=503355&ori=1

[2] https://www.conjur.com.br/2023-out-26/senso-incomum-obstaculos-epistemologicos-construcao-tese-hc/

[3] https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal/

[4] https://www.conjur.com.br/2023-nov-22/busca-pessoal-e-domiciliar-no-cpp-entre-procedimentalistas-e-substancialistas-criminais/

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