O futuro do trabalho

Trabalhadores e empregadores caminham para o fim do trabalho

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1 de dezembro de 2023, 8h25

Vivemos uma era de crises. Temos a crise climática, a crise da democracia, a crise da informação. E temos a crise do trabalho, da qual pouco se fala ainda, mas que já produz efeitos devastadores tanto em termos econômicos quanto sociais. Se quisermos ser mais radicais, podemos dizer que esta crise está inserida na crise maior do capitalismo, que faz da desigualdade um dos grandes desafios da civilização contemporânea. Da resolução que se der aos problemas contidos nessas crises, verdadeiras revoluções que estão modificando a maneira de ser e de ter, depende o futuro da humanidade e do planeta.

A crise do trabalho, que é o objeto de nossa análise, tem vários fatores desencadeadores dos quais o mais notório é o avanço tecnológico. Não é a primeira vez que as máquinas ameaçam substituir o homem na produção de bens e serviços. A Revolução Industrial, no final do século 18, foi uma destas fases aterradoras em que se imaginou que, com a entrada das máquinas na fábrica, não haveria de ter mais trabalho para os humanos.

Não foi o que aconteceu, muito pelo contrário. A Revolução Industrial proporcionou uma longa era de prosperidade e de produção de riqueza, principalmente a partir da segunda metade do século 20. Também formatou o mundo do trabalho tal qual ainda ele é conhecido: com capital e trabalho, com patrões e empregados, com direitos e obrigações formalmente estabelecidos. Não apenas o operário e o sindicato foram forjados dentro das fábricas, mas também a jornada, o salário-mínimo, as férias e o descanso semanal e, em diferentes proporções dependendo do tempo e do lugar, toda a gama de direitos trabalhistas.

Mas ao contrário do que acontece hoje com a revolução da tecnologia da informação, a Revolução Industrial substituiu, basicamente, o trabalho humano braçal, mas não supriu o trabalho intelectual. Por isso o temor de que, finalmente, as máquinas vão assumir o controle é, hoje, muito mais real do que sempre foi no passado. A Inteligência Artificial chegou pintando obras de arte e compondo música de qualquer gênero e grau para nos dizer que não existem limites para a cognição e a criatividade dessas maravilhosas máquinas modernas.

Mas este caso de sucesso profissional é uma exceção. A tecnologia incorporada aos meios de produção tem beneficiado muito mais o capital do que o trabalho, como bem o disse o filósofo e sociólogo italiano Domenico de Masi, morto recentemente: “O progresso tecnológico, cada vez mais capaz de livrar o homem do cansaço e do estresse, em vez de ser valorizado por tais potencialidades liberatórias, é usado para acelerar os ritmos e endurecer a servidão à máquina e ao lucro em tal medida que Taylor ou Ford jamais teriam ousado.” E acrescenta uma informação assustadora que corrobora a afirmação anterior: “Em 2017, graças às novas tecnologias e ao esforço de bilhões de trabalhadores, o planeta produziu 3,5% a mais em relação ao ano anterior, mas 80% desse excedente foi para as mãos de apenas 1.200 pessoas.”

Quando aplicada ao trabalho, a tecnologia criou até um neologismo – uberização, conceito tomado por empréstimo da Uber, a empresa dona do aplicativo de transporte de passageiros urbanos que veio substituir o bom e velho táxi dos humanos tradicionais. A nova expressão pode ser traduzida também como precarização do trabalho e serve para designar uma forma de labor desprovida de garantias e de direitos trabalhistas em que o trabalhador assume todos os riscos do empreendimento e tem como patrão um aplicativo, que, por sinal, rejeita ser reconhecido como patrão de quem quer que seja.

Além da Uber, existem outras empresas de aplicativos, ou aplicativos de empresas se preferirem, para entrega de comida em domicílio, como o Ifood ou o próprio Uber Eats, ou de intermediação de serviços gerais, como o GetNinjas, ou de viagens de ônibus de longa distância, como a Buser e assim por diante. Tem até o Beauty Date, que intermedeia a visita da madame ao salão de beleza, ou o Dr. Consulta, para marcar a visita ao médico. Até o Sistema Único de Saúde tem o seu digi-sus para agendar as consultas de seus milhões de usuários no sistema público de saúde. São milhares ou milhões de oportunidades de trabalho, só que uma relação de trabalho muito diferente daquela forjada pelas fábricas pós-Revolução Industrial.

O algoritmo, que controla as redes sociais e não deixa de ser uma forma de inteligência artificial, gerou de forma espontânea, a profissão perfeita, o influencer, assim, em inglês mesmo, que não é apenas mais glamouroso, mas também mais globalizado como requerem os tempos atuais. Além de não produzir nada tangível além de clicks na internet, o influenciador tem o privilégio de não ter patrão, nem clientes, nem fornecedores, com o perdão da licença poética. Segundo pesquisa da consultoria Nielsen, o Brasil é um dos campeões do engajamento no mundo com 500 mil influenciadores com mais de 10 mil seguidores e 13 milhões com mais de um mil seguidores. Segundo reportagem da revista Veja, de julho de 2022, um influencer com mais de 100 mil seguidores pode faturar R$ 200 mil por mês e um mega influencer, com mais de um milhão de seguidores, embolsa R$ 600 mil em uma única campanha publicitária. Ainda segundo a Nielsen, 44% dos usuários de internet no Brasil têm pelo menos um influencer para chamar de seu e seguir, dando-lhe a chance de ser um milionário.

Segundo pesquisa Pnad Contínua/IBGE, divulgada em outubro de 2023, o Brasil já conta com mais de 1,5 milhão de trabalhadores por aplicativo, entre motoristas (52%), entregadores (40%), e prestadores de serviços gerais (13)%. Ainda segundo a pesquisa, a média de renda mensal destes profissionais varia de 1,5 salário-mínimo (o menor ganho de um entregador) a quatro salários-mínimos (o maior ganho de um motorista de Uber), média superior ao de trabalhadores de outras atividades com nível socioeconômico similar. Tanto melhor, já que indústria não há mais. Tanto pior, já que direitos trabalhistas já não há mais também.

O mundo do trabalho moderno foi virado do avesso e de cabeça para baixo, não só pelo avanço tecnológico, mas pela própria redistribuição de tarefas que acompanhou a globalização da economia. Assim é que com a concentração da atividade industrial na China e em alguns poucos países do Extremo Oriente, restou aos trabalhadores dos outros países do mundo a prestação de serviços. Como dito anteriormente, foi a indústria que criou a classe operária e as regras do trabalho formal. Já os serviços sempre estiveram mais propensos à informalidade e à improvisação. Segundo a OIT, Organização Internacional do Trabalho, a taxa de desemprego na América Latina e Caribe era, ao final de 2022, de 7%, enquanto a taxa de trabalhadores informais nos países da região superava os 50%. No Brasil, segundo o IBGE, de 39%. Informalidade significa também zero de direitos trabalhistas.

Além da informalidade, ou talvez dentro do quadro da informalidade, novos tipos de relação de emprego foram surgindo à medida que o emprego formal foi encolhendo. É o caso da pejotização, em que trabalhadores trocam a carteira de trabalho por um registro no CNPJ. Ou do MEI, o microempreendedor individual, previsto em lei desde 2006 (Lei Complementar 123), em que o trabalhador é o patrão de si mesmo, ou vice-versa. A porteira que se abriu para a diversificação e precarização das relações do emprego – ou para a institucionalização do trabalho informal – foi a legalização da terceirização de mão de obra. Instituída inicialmente pelo mercado para livrar os produtores do gerenciamento da mão de obra da atividade meio, a terceirização acabou estendida também à atividade-fim pela reforma trabalhista de 2017 (Leis 13.429 e 13.467).

Originalmente, a terceirização obedecia a um princípio de racionalização da linha de produção das grandes fábricas, muito bem pensado para ser aplicado na indústria automobilística. Em vez de se ter uma fábrica para produzir todas as peças de um automóvel, a ideia era que a montadora montasse o carro com as peças produzidas sob encomenda por fábricas especializadas menores. O passo seguinte foi terceirizar a mão de obra, não apenas a atividade, transferindo para uma outra empresa toda a responsabilidade, encargos e obrigações devidas aos empregados.

A terceirização e todas as novas formas de relação de trabalho que se seguiram, perseguem o sonho da extinção do vínculo empregatício e o estabelecimento de uma relação de trabalho perfeita do ponto de vista liberal, na qual o trabalhador é remunerado estritamente pelas horas de trabalho dedicadas a produzir determinado resultado encomendado. E nada de encargos, décimos-terceiros, férias, adicionais, abonos, gratificações, auxílios e essa gama quase infinita de penduricalhos que foi sendo incorporada ao salário do trabalhador ao longo do tempo.

Um bom exemplo do impacto no mercado de trabalho do uso da tecnologia, das novas formas de produção de bens e serviços e de contratação de trabalhadores é a Volkswagen do Brasil, uma das pioneiras da indústria automobilística no país. Nos anos 1980, a fábrica da empresa em São Bernardo do Campo tinha mais de 32 mil empregados. Atualmente, a empresa tem 13 mil empregados em cinco fábricas diferentes e opera com 300 empresas fornecedoras de peças parceiras com capacidade de produzir um número de veículos dez vezes maior.

Já se fala de uma era pós-trabalho, em que o homem será substituído pelas máquinas até nas funções mais cerebrais. Ainda não chegamos lá, mas já é hora de começar a se preparar. Assim como a crise climática, que mostra suas garras muito antes que se atinjam os níveis de aquecimento global preconizados pelos cientistas, a crise do trabalho já reclama soluções radicais, como ensina o historiador israelense Yuval Harari em seu livro 21 Lições para o Século 21: “Se apesar de todos nossos esforços um percentual significativo do gênero humano for excluído do mercado de trabalho, teremos de explorar novos modelos de sociedade pós-trabalho, de economias pós-trabalho e de política pós-trabalho. O primeiro passo é reconhecer que os modelos sociais, econômicos e políticos que herdamos do passado são inadequados para lidar com tal desafio.”

Em outras palavras, o que se espera é bem mais do que uma reforma trabalhista, como as que têm sido feitas desde sempre. A última delas, consubstanciada na Lei 13.467 de 2017, no governo do presidente Michel Temer, introduziu mais de 100 alterações na CLT, a maioria delas para restringir direitos dos trabalhadores. Por sinal, há quem diga que, apesar de seus 80 anos de idade e em virtude das inúmeras emendas que sofreu, a CLT está vivíssima e poderosa para os fins a que se propõe, não bastasse a própria Constituição Federal que, em seu artigo 7º elenca uma lista de 34 “direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”. O inciso I da lista garante ao trabalhador o direito a uma “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa” e o 27, a “proteção em face da automação, na forma da lei”.

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça do Trabalho 2024, lançado nesta quinta-feira (30/11). A versão online é gratuita e pode ser acessada no site do Anuário da Justiça (clique aqui para ler) e a versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui para comprar).

ANUÁRIO DA JUSTIÇA DO TRABALHO 2024
Lançamento: 30/11/2024, durante o II Congresso Nacional da Magistratura do Trabalho, em Foz do Iguaçu.
4ª edição
Número de Páginas: 260
Editora: ConJur
Pré-venda: Livraria ConJur (clique aqui para saber mais)

Anunciaram nesta edição
BFBM – Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados
Corrêa da Veiga Advogados
Décio Freire Advogados
Didier, Sodré & Rosa Advocacia e Consultoria
Duarte Garcia, Serra Netto e Terra Advogados
Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados
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