Tribunal do Júri

Reconhecimento a partir da Resolução 484/22 do CNJ no Tribunal do Júri (parte 2)

Autores

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

22 de abril de 2023, 8h00

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Na primeira parte deste artigo pontuamos o forte vínculo que interliga falsos reconhecimentos a decisões injustas. Em decorrência do atual entendimento dos nossos Tribunais Superiores em que as regras do artigo 226 do CPP têm força cogente, poder-se-ia imaginar que o cumprimento de tais formalidades seria uma realidade no curso da persecução penal. Infelizmente, não é o que acontece.

 

Entre o julgamento do emblemático HC nº 598.886/SC, em outubro de 2020, até dezembro de 2021, contabilizou-se 28 julgados das 5ª e 6ª Turmas do STJ (Superior Tribunal de Justiça), bem como 61 decisões monocráticas, todos revogando prisão preventiva ou absolvendo o acusado em virtude de infringência à tipicidade procedimental do reconhecimento de pessoas[1].

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Comumente, a primeira comunicação entre a vítima sobrevivente/testemunha com o aparato punitivo estatal ocorre na delegacia de polícia. Tendo em vista que a memória humana é naturalmente desgastada pelo decurso do tempo[2], o ideal é que o reconhecimento aconteça na fase investigatória, o mais próximo possível da prática delituosa. A questão se torna problemática, todavia, porque dificilmente as regras do artigo 226 do CPP são respeitadas pelas autoridades policiais, e não há, em regra, sequer fiscalização da defesa técnica, porquanto sua presença, segundo uma prática sistêmica, é prescindível nesse momento pré-processual.

Geralmente, despreza-se a prévia descrição do acusado, e o ato de reconhecimento limita-se à apresentação de um único suspeito (modalidade show-up), já apontado na delegacia como o provável autor do delito. Outras vezes, a fase da prévia descrição é (ilegalmente) substituída pela apresentação de uma fotografia do acusado (assim taxado pelas autoridades policiais) e, ato contínuo, a pessoa cuja foto foi apresentada à vítima sobrevivente/testemunha, é submetida ao ato de reconhecimento. O sugestionamento tende a conduzir ao reconhecimento, mormente quando frequentemente ainda vigora a nefasta prática de apresentação do "álbum de suspeitos" às vítimas e testemunhas. Indo além, estudos empíricos demonstram a necessidade de aplicar uma simples técnica de neutralidade denominada "duplo-cego", assim o policial responsável pelo procedimento do reconhecimento não pode ter conhecimento de quem é o suspeito.

O reconhecimento realizado em sede policial é contestável também em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, o professor Brandon Garrett, da Duke University School, ao analisar os casos do Innocence Project, identificou que a maneira como os policiais conduzem o procedimento reverbera consequências em quase 80% dos reconhecimentos equivocados.

Os policiais, ao interferirem no resultado do reconhecimento, não necessariamente o fazem por dolo ou má-fé, mas normalmente por falta de capacitação[3] para realizar o procedimento sem contaminação ou sugestionamento.

Os impactos no julgamento perante o júri são preocupantes.

Isso porque os autos do inquérito policial acompanham o processo principal — ao menos enquanto não entrar em vigor a figura do juiz de garantias — e os jurados serão influenciados pelo reconhecimento, ainda que de forma inconsciente, se a prova não for extirpada do processo. Ou seja, o inquérito policial, ao invés de se limitar à formação da justa causa para a ação penal, acaba se caracterizando como verdadeiro local de resultado no julgamento.[4]

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Infelizmente, o açoitamento das regras do artigo 226 do CPP não é adstrita à fase policial. Também nas fases do judicium accusationis e judicium causae, é frequente a realização de reconhecimentos em desacordo com as formalidades legais.

Durante a audiência de instrução ou até mesmo na sessão plenária, não é incomum que o representante do Ministério Público (e, por vezes, o próprio juiz togado), questione a testemunha/vítima sobrevivente, por ocasião de sua inquirição, se reconhece o acusado — muitas vezes com trajes de penitenciário e sentado no banco dos réus — como autor do fato delituoso. Uma espécie de "reconhecimento informal" sem qualquer valor probatório (até ilegítimo), mas de grande apelo aos jurados leigos.[5]

Destarte, o juiz sumariante não pode pronunciar um acusado com base em um "reconhecimento informal". Se essa prática famigerada ocorrer em sessão plenária, a defesa técnica precisa estar atenta para realizar a impugnação do ato.

Também é comum que o ato de reconhecimento realizado na fase policial sem as formalidades legais seja repetido na fase do judicium accusationis ou judicium causae com o nítido propósito de lhe conferir credibilidade. Os incautos acreditam que a repetição do procedimento, agora sob o crivo do contraditório e ampla defesa, seria apta para sanar irregularidades perpetradas na fase investigatória. Contudo, é preciso fincar: o ato de reconhecimento é irrepetível, e assim já se posicionou a 6ª Turma do STJ (HC 712.781) e também o CNJ (artigo 2º, §1º da Resolução n. 484/2022)[6].

A partir do momento em que se faz um ato de reconhecimento, em sede policial ou judicial, ou até mesmo de maneira informal pela polícia militar, seja ele presencial ou fotográfico, por óbvio, as imagens apresentadas à vítima sobrevivente/testemunha interferem na sua memória original e terão impacto em posterior reconhecimento. Cita-se, como forma de atestar essa premissa, experiência científica realizada por Brown, Deffenbacher e Sturgill, na qual restou constatado que as identificações equivocadas subiram do patamar de 18% para 29% nos casos em que foi realizado um prévio reconhecimento fotográfico[7].

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No primeiro ato de reconhecimento, o cérebro da vítima sobrevivente/testemunha resgata as feições do autor do crime (memória do fato) para parametrizar a identificação do suspeito. A partir desse momento, o rosto da pessoa apontada é vinculado à essa memória fática, razão pela qual sua fisionomia torna-se mais suscetível de ser identificada nos atos de reconhecimentos subsequentes. Destarte, "após múltiplos reconhecimentos, a confiança da testemunha não é resultante da memória original do fato, mas sim da repetição à exposição do rosto do suspeito"[8].

Reconhecimentos equivocados causam prejuízos indeléveis ao acusado, que vão desde uma prisão preventiva desnecessária e de uma pronúncia descabida à uma condenação injusta.

Um dos pressupostos autorizadores da prisão preventiva é a demonstração de indícios suficientes de autoria, que muitas vezes se extraem do ato de reconhecimento. Por conseguinte, justamente com o intuito de impedir que um inocente seja privado de sua liberdade, precedentes do STJ sinalizam que o reconhecimento realizado fora dos parâmetros legais não pode subsidiar a decretação de uma segregação cautelar (nesse sentido, o já referido HC 712.781 e o AgRg no HC 643.429/SP).

Outrossim, na primeira fase do procedimento do júri — até mesmo em coerência ao novo posicionamento de que as formalidades do artigo 226 do CPP são garantia mínima do acusado — o julgador não pode fundamentar uma decisão de pronúncia em um reconhecimento feito ao arrepio da lei. Se o fizer, cabe a defesa impugnar a decisão mediante recurso em sentido estrito.

Na sessão plenária, não é possível a repetibilidade de reconhecimento outrora feito na persecução penal, pelas razões já elencadas e também já discutidas anteriormente nesta coluna. E, em sendo o caso de se realizar o primeiro reconhecimento — desde que o intervalo temporal entre os fatos e a realização da prova não indique corrosão da memória, o que, frente à realidade brasileira, admite-se apenas para efeitos argumentativos – deverão ser respeitadas as formalidades condicionantes à validade da prova. Do contrário, é inequívoco a nulidade do ato.

Diante de um viciado reconhecimento do réu, o jurado não tem condições técnicas — nem dever legal — de analisar a regularidade da prova, que simplesmente integrará seu quadro mental de julgamento do fato, e certamente o seu livre convencimento vai tender a uma condenação, ainda que a defesa técnica se esforce para explicar sobre a invalidade da prova.[9]

Nessas situações, em havendo condenação, a defesa deverá impugnar a decisão do Conselho de Sentença. Para além da presença de nulidade absoluta posterior à pronúncia (artigo 593, III, "a", CPP), se o veredicto for embasado exclusivamente no reconhecimento, ainda pode se alegar que a decisão é manifestamente contrária à prova — legal — produzida dos autos (artigo 593, III, "d", CPP).

Não obstante, a plena obediência às formalidades do artigo 226 do CPP, em que pese necessária, não é suficiente para aniquilar totalmente a possibilidade de decisões injustas fundamentadas em reconhecimentos equivocados, pois as falsas memórias decorrentes da interferência das variáveis de estimativa escapam do controle da justiça penal. Até mesmo por isso, que mesmo o reconhecimento válido não tem força probante, por si só, para lastrear uma condenação.

Os jurados decidem conforme sua liberdade de convencimento, e, portanto, não se sabe se a condenação teve por substrato exclusivo o reconhecimento do réu, diante de um acervo probatório robusto, o que dificulta esporádica pretensão recursal. Por outro lado, se a única prova constante dos autos é o reconhecimento (mesmo válido), pensamos que a defesa deve impugnar eventual sentença condenatória, porquanto as regras do artigo 226 do CPP configuram conjunto de garantia mínima do acusado.

Em reforço às regras do artigo 226 do CP, o CNJ lançou a Resolução nº 484/2022 do CNJ, cujo intuito é justamente erguer o padrão de qualidade do ato de reconhecimento, consolidar os precedentes judiciais acerca da matéria, dotar de segurança jurídica e integridade os provimentos judiciais, bem como (e principalmente) evitar erros judiciários.

Em termos conclusivos, lançamos três premissas fundamentais para a legitimidade do juízo popular diante do reconhecimento de pessoas, no contexto do Estado Democrático de Direito:

  1. Somente um ato de reconhecimento parametrizado pelas regras do art. 226 do CPP e da Resolução nº 484/2022 do CNJ (a partir de sua entrada em vigor) tem valor probatório;
  2. O reconhecimento é irrepetível e, quando realizado fora dos quadrantes legais é inválido. Por conseguinte, jamais pode embasar prisão preventiva ou decisão de pronúncia, tampouco integrar o acervo probatório apresentados aos jurados, devendo ser desentranhado dos autos;
  3. Ainda que o reconhecimento do acusado siga à risca todas as formalidades do artigo 226 do CPP e a Resolução nº 484/2022 do CNJ, não se trata de prova que, por si só, seja suficiente para subsidiar um decreto condenatório do Conselho de Sentença. A memória humana é falha e, mesmo em um reconhecimento feito de boa-fé por parte do identificador, o seu resultado pode não ser absolutamente fidedigno. Seria, no mínimo paradoxal, fundamentar na soberania dos veredictos — garantia constitucional instituída em favor do cidadão — a possibilidade de uma condenação injusta, obstando a defesa o direito de recorrer quando a decisão dos jurados for embasada exclusivamente em reconhecimento do acusado.

 


[1] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/06022022-Reconhecimento-de-pessoas-um-campo-fertil-para-o-erro-judicial.aspx

[2] Sobre a comprovação empírica dos efeitos do transcurso do tempo na memória em situações criminosas, sugerimos o estudo: “PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; JAEGER, Antonio. Memória e Conformidade: a confiabilidade da prova testemunhal e o transcurso de tempo. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 171. 2020.”

[3] Neste ponto, a Resolução 484/2022 do CNJ, no seu artigo 12, cria um importante fomento à capacitação de todas as instituições que atuam no sistema de justiça criminal.

[4] Há algum tempo temos insistido nesta questão, inclusive sendo tema de artigo nesta coluna em 2021: “Tribunal do Júri: a utilização do inquérito policial em plenário

[5] Neste sentido também o magistério de Scarance Fernandes: “O apontamento na audiência de alguém como autor do crime, sem a observância das formalidades exigidas para o ato de reconhecimento, consiste em simples identificação de pessoa já acusada, cujo valor probatório é precário” FERNANDES, Antônio Scarance. Tipicidade e sucedâneo de prova. In: FERNANDES, Antônio Scarance. ALMEIDA, José Raul Gavião de. MORAES, Maurício Zanoide de (coords.). Provas no processo penal. Estudo Comparado. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.20

[6] Recomendamos a leitura do artigo de Daniel Avelar, denominado “A irrepetibilidade do reconhecimento pessoal e os aportes da Psicologia do Testemunho”, no livro “Manual do Tribunal do Júri”, organizado por Denis Sampaio, da Editora Emais.

[7] MANZANERO, Antonio L. Memoria de testigos. Obtención e valoración de la prueba testifical. Madri: Ediciones Pirámide, 2010, p.180

[8] CECCONELLO, William Weber. AVILA, Gustavo Noronha de. STEIN, Lilian Milnisky. A (ir)repetibilidade da prova penal dependente da memória: uma discussão com base na psicologia do testemunho. In Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v.8, nº 2, 2018, p.1063

[9] Também recomendamos a leitura do artigo “Quem avalia a fiabilidade do reconhecimento de pessoas?”, de Marcella Mascarenhas Nardelli.

Autores

  • é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de Mestrado em Psicologia Forense da UTP.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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