Diário de Classe

Teoria da Decisão: os princípios na Crítica Hermenêutica do Direito

Autores

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

15 de abril de 2023, 8h00

Este é o terceiro e penúltimo [1] excerto sobre a Teoria da Decisão proposta a partir da Crítica Hermenêutica do Direito, de Lenio Luiz Streck (aqui inaugurado e aqui contextualizado). Convidamos, com este texto, o leitor a se aprofundar em mais um aspecto importante da CHD, qual seja o papel dos princípios na justificação das decisões judiciais. Em vista disso, estruturamos nossa explanação seguindo a seguinte estrutura: (1) apresentar as principais diferenças entre criterialismo e criteriologia, bem como (2) o que são princípios e porque são importantes. Como consequência e desdobramento, enfim, (3) anunciar os cinco princípios/padrões fundantes da decisão jurídica formulados por Streck.

(1) Criterialismo x criteriologia
Justamente em razão de uma construção sintática similar, criterialismo e criteriologia são palavras que podem ser facilmente confundidas. Contudo, se passarmos ao nível semântico, ainda que permeado por essa facilidade, diante do combate ao senso comum, veremos que criterialismo e criteriologia são essencialmente diferentes e, bem por isso, suas concepções repercutem na própria forma como concebemos o Direito e, portanto, no seu processo de aplicação/interpretação.

Transpondo em outros termos o que Streck desenvolve em seu novo Dicionário Senso Incomum (link para compra: aqui), criterialismo é um modo de se interpretar o Direito que ainda deita raízes no positivismo jurídico e que, fundamentalmente, ainda trata todos os conceitos jurídicos como se fossem criteriais, isto é, como se tivessem seus significados previamente fixados por critérios de convenção semântica. Dito de outro modo, como se o sentido de determinada ideia pudesse ser aprisionado numa dada semântica que sempre seria capaz de (re)produzir esse mesmo significado. Em forma de exemplo, provocamos o leitor a interpretar a palavra "cidadão" tal como usada na Grécia antiga e tentar a inseri-la na realidade contemporânea. Este processo hermenêutico resultará em um conceito inequivocamente discriminatório para os tempos atuais [2].

De forma diversa, a criteriologia é um outro modo de se interpretar o Direito que propõe a singularização a partir do estabelecimento de critérios objetivos para uma dada interpretação. No contexto da tomada de decisão, esses critérios nada mais são do que limites para aquilo que não pode ser aceito como Direito (subjetivismo, ideologia, vontade etc.). Muito mais do que antecipar o significado de determinada interpretação, trata-se de apresentar critérios sem os quais nenhuma interpretação seria passível de verificabilidade (legalidade, constitucionalidade etc.).

A busca pelo reconhecimento desses critérios, que no contexto brasileiro se constituem a partir dos limites interpretativos impostos pela nossa Constituição, determina que a validade de uma decisão jurídica dependem da sua justificação a partir da articulação de princípios que ao mesmo tempo em que promovem um mínimo de sentido, só são compreendidos a partir de uma contextualização que, por óbvio, não se dá aprioristicamente. Em um axioma talvez autoevidente: o Direito só é no seu contexto.

(2) Princípios jurídicos
Essa concepção de criteriologia se fundamenta na construção do argumento jurídico em dois níveis. Primeiro, é necessário que se proceda um ajuste em relação aquilo que é aceito como direito estabelecido (fit) e, segundo, em relação ao sentido das questões de moralidade política que se consubstanciam no esforço do Estado em tratar todos os cidadãos de forma igual (value). Dessa forma, o argumento jurídico, constituído na forma de princípios, está fundamentalmente preocupado com o argumento público, de forma que estes mesmos constroem os limites hermenêuticos que também são chamados por Lenio Streck de "constrangimentos epistemológicos". E somente a partir dessa construção do sentido das justificações é que de fato estaríamos engajados no combate à discricionariedade judicial e na busca de respostas corretas em direito.

É preciso deixar claro que este tipo de argumento (de princípio) é um padrão observado pelas suas exigências de justiça (e até certo ponto de sua dimensão de moralidade), ou seja, em função da sua intencionalidade, enquanto o outro tipo de argumentação possível, a de política, se deve a uma necessidade de atingir um determinado objetivo. Além deste ponto, esses dois tipos de argumento também são diferentes no que diz respeito à sua relação com a institucionalidade do Direito. Argumentos de política operam sem que estejamos vinculados a uma coerência com as decisões passadas e futuras que constituem aquilo que é o todo institucional que sustenta as interpretações em Direito. Eis aqui o importantíssimo papel desempenhado pela coerência na construção das melhores decisões judiciais. O próprio Ronald Dworkin não nega que as diferentes dimensões do trabalho dos juízes são sensíveis às suas concepções políticas, no entanto, elas sempre estarão condicionadas ao todo coerente dos princípios que garantem que novos casos sejam julgados equitativamente com a história institucional.

É justamente por isso que princípios não abrem a interpretação, com tende a reforçar a doutrina jurídica nacional. Princípios, ainda que passem a reinserir a prática jurídica na dimensão dos fatos, fecham a interpretação, pois impõem ao juiz a necessidade de levar em conta toda a produção legislativa e jurisprudencial, combatendo, assim, a formulação de juízos discricionários e seu emprego em suas justificações.

(3) Os cinco princípios/padrões fundantes da decisão jurídica
Conhecidos os pressupostos teóricos que amparam um conceito de Direito baseado em princípios, é possível que sejam apresentados, então, os princípios que norteiam a Teoria da Decisão formulada pela Crítica Hermenêutica do Direito. Importante assentar que Streck define tais princípios como uma proposta de criteriologia, apresentada de forma coerente com uma concepção interpretativa (e não criterial) de Direito. Desse modo, a Crítica Hermenêutica do Direito, sem pretensões de insuperabilidade [3], aponta para os cinco princípios a seguir referenciados com o propósito de apresentar um norte para a construção da fundamentação que determinará (esta sim) qual será a decisão adequada.

Explicitados nas obras Verdade e Consenso [4], Dicionário de Hermenêutica [5], Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica [6] e Comentários à Constituição do Brasil [7] (onde consta o maior detalhamento), os cinco princípios/padrões fundantes da decisão jurídica são parte do núcleo teórico-heurístico da CHD. Com efeito, cada um deles nos aponta uma ou outra imperiosidade do Constitucionalismo Contemporâneo [8]. Se por um lado é inegável a interação do Direito com elementos da moral, da economia, da política e da sociologia, por exemplo, não podemos concebê-lo refém dos argumentos próprios de cada um destes setores e justamente por isso são necessários critérios que garantam sua integridade e autonomia. Tais critérios são apresentados como princípios, sendo eles:

1º) Princípio um: a preservação da autonomia do Direito
"Está sendo respeitada a autonomia do Direito? Essa decisão não está comprometida com argumentos morais, políticos ou econômicos? A decisão está imune aos predadores endógenos e exógenos do Direito?" [9]

2º) Princípio dois: o controle hermenêutico da interpretação constitucional — a superação da discricionariedade
"Esta decisão é discricionária? Para chegar a ela, foi efetuada a reconstrução da história institucional da regra a ser aplicada? Esta decisão é arbitrária? Se eu decidi conforme ‘minha concepção sobre o Direito’, esta concepção é coerente com o que vem sendo decidido e o que consta na doutrina? Foi feito um controle hermenêutico da presente decisão?" [10]

3º) Princípio três: o respeito à integridade e à coerência do Direito (este princípio foi incorporado no artigo 926, do Código de Processo Civil aprovado em 2015)
"Esta decisão possui uma consistência articulada? Os argumentos estão integrados ao conjunto do Direito? Esta decisão pode ser aplicada a outros casos semelhantes? O princípio que se extrai da holding desta decisão possui caráter de universalidade?" [11]

4º) Princípio quatro: o dever fundamental de justificar as decisões (também incorporado no inciso VI do parágrafo primeiro do artigo 489, do Código de Processo Civil)
"Esta decisão está devidamente justificada/fundamentada? Todos os argumentos das partes foram enfrentados?" [12]

5º) Princípio cinco: o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada
"Esta decisão está respeitando o direito fundamental a ter a melhor resposta a partir do Direito, sendo, portanto, uma resposta constitucionalmente adequada? A resposta foi dada com fundamento no Direito, entendido, a partir de um conceito interpretativo, como aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador?" [13]

Sem mais o que acrescentar, espera-se que o leitor tenha compreendido o essencial. O Direito corre perigo quando interpretado aprioristicamente e o que a criteriologia nos direciona é uma solução para isto. Com efeito, os princípios passam a ter um papel fundamental e é justamente a partir deles que Streck formula parte da sua Teoria da Decisão.

De toda forma e sem qualquer pretensão de substituir os dizeres do autor em questão, reforçamos nosso convite para que o leitor use este texto para ir muito além dele. Por conseguinte, talvez nenhuma verdade possa ser daqui extraída além de uma: não existe qualquer substituto à altura dos teóricos definidos pelos próprios, nas próprias palavras [14].

 


[1] Futuramente publicaremos sobre as seis hipóteses em que o Poder Judiciário pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei.

[2] No contexto brasileiro, cumpre registrar que prof. Streck critica esse aspecto da dogmática que busca fixar sentidos de conceitos próprios sem nenhum accountability epistêmico — para usarmos outra expressão do professor — e que não guardam relação com a facticidade do Direito.

[3] "Quem critica a hermenêutica por ter pretensões absolutistas desconhece, profunda e lamentavelmente, aquilo que pretende criticar. O que pretendo, e sempre pretendi, é mostrar que — como paradigma de observação do Direito — a analítica está esgotada. É preciso pensar diferente. A hermenêutica é uma delas. Não é a única. Mas é, dentre todas, aquela que se apresenta melhor". In: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 51.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit. p. 649-650.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 395.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 322 e seg.

[7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Ferreira Gilmar; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 73-89.

[8] STRECK, Lenio Luiz. O QUE É ISTO – O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO. Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional, Florianópolis (SC), v. 1, n. 2, p. 27–41, 2014. DOI: 10.37497/revistacejur.v1i2.64. Disponível em: https://revistadocejur.tjsc.jus.br/cejur/article/view/64. Acesso em: 12 abr. 2023.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. op. cit. p. 649-650.

[10] Idem.

[11] Idem.

[12] Idem.

[13] Idem.

[14] BIX, Brian H. Teoria do Direito: fundamentos e contextos. Tradução de Gilberto Morbach. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020. p. 25.

Autores

  • é bolsista Capes/Proex, doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), pós-graduado em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional), bem como em Direito Constitucional pela mesma instituição. Membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

  • é doutoranda e mestre em Direito Público pela Unisinos, bolsista Capes/Proex, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e professora da Faculdade São Judas Tadeu.

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