Diário de Classe

Teorias da Decisão e o porquê de decidir não ser escolher

Autores

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

2 de julho de 2022, 8h03

Decidir não é o mesmo que escolher [1]. A partir dessa máxima de Streck, o texto que segue busca explicar qual é o lugar da Teoria da Decisão no contexto jurídico e qual é a sua importância. Valendo-nos de outra reflexão do autor [2], deve-se compreender que há uma diferença entre escolher, que está no plano da razão prática, e decisão, que está no plano da responsabilidade política e da intersubjetividade. Ademais, que também existe uma necessidade de separar a pessoa do juiz no seu cotidiano do juiz autoridade, que possui responsabilidade política. O que é essa responsabilidade política, como juízes deve(ria)m decidir, a questão da autonomia do direito e quais são os limites da jurisdição são questões que perpassam o tema desta coluna. Apesar disso e tendo em vista a complexidade de todos esses tópicos, algumas considerações propedêuticas precisam ser assentadas.

Introdutoriamente, cumpre salientar que aquilo que se denomina "Teoria de Decisão" não enseja tão somente reflexões acerca de como os juízes devem decidir. Em vez disso, abrange a preocupação da própria Teoria do Direito acerca de como se justificam as decisões judiciais e o que isso implica na prática. Nessa senda, autores como Lenio Streck [3], Ronald Dworkin [4] e Robert Alexy [5] possuem propostas que singularizam seus escritos e isto não pode ser desconsiderado. A tese da resposta adequada à Constituição (RAC) de Streck [6], as propostas do Romance em Cadeia e do Juiz Hércules de Dworkin e a teoria da ponderação de Alexy exsurgem enquanto concepções diferentes que de alguma forma compartilham uma mesma preocupação: como são decididas as questões jurídicas? (dimensão aplicativa que envolve precipuamente uma teoria das fontes e da decisão judicial) [7].

Nos apoiando em Kaufmann [8], vale reforçar 1) que há uma variedade enorme de teorias e princípios que se apresentam como teorias da decisão, ou que podem se consideradas como tal, 2) que essas teorias e princípios não se baseiam em nenhum conceito unitário de decisão e 3) que, em tese, poderíamos categorizar as Teorias da Decisão como normativas, descritivas e interpretativas-intermediárias [9].

De forma conceitual, enfim, Teoria da Decisão é um modo de controlar o exercício da jurisdição. Nesse sentido, constituem o esforço de representar o âmbito discursivo no interior do qual se busca encontrar anteparos para o exercício da atividade jurisdicional [10].

Já no que concerne à importância das teorias da decisão, torna-se relevante esclarecer que o Constitucionalismo Contemporâneo aposta na autonomia do Direito para delimitar a transformação das relações jurídico-institucionais, protegendo-as do constante perigo das arbitrariedades políticas [11]. No contexto da Crítica Hermenêutica do Direito (CHD), isto quer dizer que moral e economia, por exemplo, não devem interferir no direito e, por consequência, são intoleráveis nos processos de justificação. Em face disso é que uma Teoria da Decisão se torna importante: proteger o Direito dos seus predadores endógenos (subjetivismo, decisionismo, ativismo [12], panprincipiologismo, entre outros) e exógenos (argumentos morais, de política e de economia).

Também desenvolvendo essa questão, Georges Abboud acrescenta que a autonomia do direito é um pressuposto do Estado de Direito e que autonomia não significa isolamento [13]. Segundo o autor, o direito naturalmente é chamado a responder a todo o tempo as mais variadas questões políticas e econômicas. Todavia, a decisão judicial deverá ser pautada em critérios jurídicos para fornecer uma solução democrática para a economia ou para a política, por exemplo [14]. Em suas palavras:

"Negar a autonomia do direito é equivalente a abrir o sistema jurídico para todo tipo de ativismo e discricionariedade. Isso porque, quando permitimos que o juiz se socorra da discricionariedade, a partir de postura ativista, para julgar uma lide, em verdade, estamos conferindo-lhe a possibilidade de utilização de critérios não jurídicos para solucionar o processo" [15].

Em outros termos e nos dizeres de Streck: se a moral corrige o Direito, quem corrige a moral?

Refletir sobre essa questão está diretamente relacionado ao tema desta coluna, afinal é a partir da interpretação do direito que se desvela quem corrige a moral. Mas, para além disso, clareia as possíveis concepções acerca das relações entre direito e moral que sustentam teorias do direito, diferenciando autores positivistas e não positivistas, por exemplo. Dessa forma, falar sobre Teoria da Decisão é perguntar-se sobre o conceito de direito em que sustentamos nossa compreensão acerca do fenômeno jurídico. No nosso caso ele é um conceito interpretativo, onde direito e moral estão intimamente relacionados, mas com a ressalva de que os argumentos políticos não são trunfos que garantem a democracia [16].

Essa é uma leitura que se faz a partir de Ronald Dworkin, para quem o Direito como Integridade fundamenta-se na necessidade de o Estado decidir segundo um conjunto único e coerente de princípios, ainda que seus cidadãos estejam divididos quanto à natureza exata dos princípios de equidade e justiça [17]. Para o autor, somente assim irá se ter um argumento geral e não estratégico acerca dessas controvérsias morais que, muitas vezes, diante da judicialização da política, exsurgem no judiciário. Essa concepção também é endossada pela resposta adequada à Constituição, de Lenio Streck, que tem como topos interpretativo as normas constitucionais.

Percebe-se que a partir da interpretação é que se compreende o direito. E, bem por isso, devemos combater pragmatismos e ativismos judiciais nas fundamentações, porque são entraves à consolidação do Estado de Direito e, por conseguinte, da democracia. O dever de fundamentar as decisões é previsto no artigo 93, IX, da CF/88, tem sua melhor leitura a partir da coerência e da integridade, conforme um conceito interpretativo de direito, e contradiz a concepção de livre convencimento, tendo em vista a necessidade de justificar, não estando relacionada com a boa ou má-vontade do julgador, como muito bem escreveu o professor Lenio ainda em 2016 [18].

Acerca do tema vale mencionar recente publicação de Lenio Streck e Luã Jung em que os autores apontam para o grande déficit epistêmico na doutrina jurídica nacional e internacional acerca do conceito de livre convencimento, e que, ainda que se faça uma análise das exceções, o que é a proposta do texto em referência, constatam-se contradições teóricas insolúveis, por mais pretensamente sofisticadas que as teorias sejam. Isso porque deixam de lado a intersubjetividade linguística e sua ínsita normatividade, temas dificilmente desconsideráveis por uma concepção epistemológica contemporânea [19].

Esse lapso de teorizações é paradoxalmente reforçado pela prática jurídica e fica evidente quando analisado a partir da fundamentação empregada nas decisões judiciais. Eis a importância de uma Teoria da Decisão, elucidar o papel da fundamentação e, de acordo com o paradigma hermenêutico-linguístico, no sentido de assegurar um "jogo limpo" conforme os vetores principiológicos da coerência e a integridade pelos quais todo o sistema jurídico produzido democraticamente sob a égide da Constituição deve ser lido.

Finalizando da mesma forma que começamos, cumpre trazer outro apontamento e concluir que refletir sobre a necessidade de uma teoria da decisão é, antes de tudo, uma preocupação com o próprio Estado Democrático de Direito [20]. Ao fim e ao cabo, uma necessidade que prova seu valor pelo fato de que a democracia se encontra indeclinavelmente imbricada à distribuição do poder e da autoridade. Veja-se: o "como decidir" (Teoria da Decisão) é compreender os limites e os contornos da democracia enquanto tal e onde faltam limites, o poder se expande…

 


[1] STRECK, Lenio. Diálogos com Lenio Streck: Hermenêutica, jurisdição e decisão. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020. p. 233.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito: Hermenêutica. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 47.

[3] Conferir o verbete Resposta adequada à constituição (resposta correta). In: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 385-406.

[4] Cf: DWORKIN, Ronald. O império do Direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[5] Cf: ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017.

[6] Sobre a diferença entre Streck e Dworkin, recomenda-se o texto As semelhanças e as diferenças entre a RAC da CHD e a tese de Dworkin In: STRECK, Lenio Luiz. Compreender Direito: Hermenêutica. 1ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 53-56.

[7] ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução ao Direito: Teoria, Filosofia e Sociologia do Direito. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 377 e seg.

[8] KAUFMANN, Arthur. Introdução à filosofia do Direito e à Teoria do Direito contemporâneas. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2015. p. 530.

[9] Segundo Kaufmann, "Por teorias normativas da decisão devem entender-se, no domínio jurídico, as teorias que prescrevem ao juiz como e segundo que regras ele decide de modo certo ou justo (…) Em contrapartida, esforços teóricos realmente descritivos da decisão são bastante raros no domínio jurídico e apenas conhecidos no âmbito da sociologia jurídica ou da investigação empírica dos factos jurídicos (…) Podemos ainda indicar as teorias interpretativas, como uma espécie de categoria intermediária entre as normativas e as descritivas. Aquelas têm carácter normativo porque pressupõe, um padrão de processamento da decisão justa ou indicam um padrão, segundo o qual possa ser realmente avaliado o processo de decisão. São, em contrapartida, descritivas as que analisam a prática efectiva da decisão". In: Idem.

[10] ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Introdução ao Direito: Teoria, Filosofia e Sociologia do Direito. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 609

[11] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 32.

[12] Sobre este tópico em específico, recomenda-se a obra TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.

[13] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 1590.

[14] Idem.

[15] Idem. p. 1592.

[16] Ver BERNSTS, Luísa; CRESTANI, Maicon. Trunfos políticos não garantem democracia. In: CONJUR, 01 de maio de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-01/diario-classe-trunfos-politicos-nao-garantem-democracia.

[17] MOTTA, Francisco Jose Borges. Levando o direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012

[19] STRECK, Lenio Luiz; JUNG, Luã Nogueira. Livre convencimento judicial e verdade: Crítica Hermenêutica às teorias de Ferrajoli, Taruffo e Guzmá. In: Revista Novos Estudos Jurídicos , vol. 27, nº 1, JAN-ABR/2022. Disponível em <https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/18696.

[20] STRECK, Lenio Luiz. Os Dilemas da Representação Política: O Estado Constitucional entre a Democracia e o Presidencialismo de Coalizão. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, nº 44, p. 83-101, jan./jun. 2014.

Autores

  • é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-graduando em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst e membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

  • é doutoranda e mestra em Direito pela Unisinos (RS), bolsista Capes/Proex e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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