Diário de Classe

Teoria da Decisão e a CHD: as três perguntas fundamentais

Autores

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

23 de abril de 2022, 8h00

Retomando o desafio de elaborar uma introdução da Crítica Hermenêutica do Direito (iniciada aqui), propõe-se explicar as três perguntas fundamentais formuladas por Lenio Streck e como elas estruturam uma Teoria da Decisão [1]. Em face disso e tendo em vista a densidade da matriz teórica em comento, vale advertir que este texto não tem a intenção de delimitar o próprio conteúdo da CHD, mas sim apresentar algumas das suas fronteiras. Novamente, o texto desta semana pretende ser um guia para que interessados possam aprofundar seus estudos e reflexões acerca da teoria de Streck.

Para que possamos buscar uma definição adequada da CHD, cumpre assentar que "a Crítica Hermenêutica do Direito é uma cadeira que se estabelece entre dois grandes paradigmas filosóficos: o objetivismo e o subjetivismo. Sua tarefa: estabelecer as condições para uma teoria da decisão" [2]. Como o próprio autor declara, a falta de uma teoria da decisão é a causa de vários problemas para a teoria do Direito [3] (vide ativismo judicial, discricionariedade, decisionismo etc) e sua necessidade não se evidencia somente em razão da sua falta. Isso porque o Direito não é um quiz show e a realidade também não é [4]. E acrescentamos: se formos coerentes, que a decisão judicial também não pode(ria) ser.

Tendo assimilado a importância de uma Teoria da Decisão, a proposta hermenêutica delineada por Streck se traduz na tese da resposta adequada à Constituição enquanto aquela que segue a coerência e a integridade do Direito a partir de uma fundamentação minuciosa, respeitando a autonomia do Direito e por consequência, evitando a discricionariedade. Nesse contexto é que as três perguntas fundamentais conferem as condições de possibilidade da melhor resposta possível para o caso concreto.

Compondo o núcleo teórico-heurístico que conduz a Teoria da Decisão streckiana, vale registrar que esse quadro teórico ainda contém cinco princípios/padrões fundantes da decisão jurídica [5] (explicitados em Verdade e Consenso [6], Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica [7] e Comentários à Constituição do Brasil [8]) e as seis hipóteses em que o Poder Judiciário pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei (disponíveis aqui e também desenvolvidas em Verdade e Consenso [9]). Considerando que sentenças e acórdãos são atos de decisão (e não de escolha) e que não podemos dar respostas antes das perguntas, denota-se que a proposta de Streck se dá no sentido do reconhecimento de elementos capazes de proporcionar fundamentação à própria decisão judicial. Ou seja, critérios pelos quais se possa diferenciar o certo do errado no plano decisional.

Enfim apresentando uma definição, as três perguntas fundamentais são uma criteriologia decisória que visa filtrar e afastar atitudes/decisões de caráter ativista a partir de três indagações que um juiz-tribunal deve fazer: 1º) se está diante de um direito fundamental com exigibilidade, 2º) se o atendimento a esse pedido pode ser, em situações similares, universalizado — quer dizer, concedido às demais pessoas — e 3º) se, para atender aquele Direito, está-se ou não fazendo uma transferência ilegal-inconstitucional de recursos, que fere a igualdade e a isonomia.

Em seu conjunto, são perguntas que visam "verificar se o ato judicial é ativista (e, portanto, prejudicial à democracia) ou está apenas reali­zando, contingencialmente, a judi­cialização da política, o que é aceito e até desejável em todas as demo­cracias contemporâneas. Sendo uma das três perguntas respondida nega­tivamente, estar­-se­-á, com razoável grau de certeza, em face de uma ati­tude ativista" [10].

É imperioso esclarecer neste momento a diferença entre ativismo e judicialização da política. Como bem definido anteriormente neste espaço (aqui), enquanto o primeiro se consubstancia em uma postura do Judiciário que concebe a interpretação do direito como ato de vontade do julgador, a judicialização da política se apresenta como um fenômeno contingencial e fruto de um contexto histórico, social e jurídico no qual, de fato, as circunstâncias advindas do pós-guerra, da transformação dos textos constitucionais que passam a incluir como pressuposto democrático um rol de direitos fundamentais, e, principalmente, a transformação de perfil do Estado Contemporâneo de um estado liberal, cujo principal ator era identificado no indivíduo, para um Estado de Bem-Estar Social (Welfare State, ou Estado Social), provocam profundos impactos na teoria do direito.

Portanto, no que se refere à base teórica das três perguntas fundamentais, convém indicar algumas referências: trata-se de uma proposta alicerçada enquanto cerne da resposta adequada (Dicionário de Hermenêutica [11]) e que não pode ser qualificada como uma tese meramente teórica (vide RE 888.815/RS: exemplo claro e objetivo da aplicação da Resposta Adequada à Constituição e das três perguntas fundamentais — questões registradas/desenvolvidas em Jurisdição Constitucional [12] e 30 Anos da CF em 30 Julgamentos [13]). Dessas imbricações, conclui-se que as três perguntas fundamentais também não podem ser desindexadas da tese da resposta adequada e que seus reflexos ultrapassam a (falsa) dicotomia entre teoria e prática.

Em contraste ao solipsismo, ativismo e discricionariedade, as três perguntas fundamentais se traduzem na antítese desse tipo de comportamento judicial e daí porque, pela Crítica Hermenêutica do Direito, a coerência na fundamentação e a interdição da discricionariedade consubstanciam o lastro teórico que conduz as três perguntas. Nesse sentido é que se segue desenvolvendo cada uma delas.

1) Existe no caso em tela um direito fundamental exigível? [14]
Por meio desta pergunta exsurge o primeiro ponto crucial de diferença entre ativismo judicial e judicialização da política: a normatividade, isso porque, diante da inexistência de um fundamento normativo que justifique e motive a intervenção do Poder Judiciário com propósito de concretizar um direito, resta evidente o ativismo judicial. Assim, se respondida de forma negativa, esta pergunta denuncia a aplicação do direito como mero ato de volitivo do intérprete.

Decorrem deste questionamento pelo menos três outras questões, como bem coloca Isadora em sua tese: a primeira diz respeito à construção de uma normatividade constitucional fundada no rompimento com o dualismo metodológico, a segunda concerne à construção de uma resposta constitucionalmente adequada que supere o paradigma consequencialista e a terceira apresenta o caráter contramajoritário inerente à jurisdição constitucional na consolidação dos direitos fundamentais.

2) É possível a universalização da demanda leva ao Poder Judiciário?
A segunda pergunta está relacionada com a coerência, no sentido em que determina que casos semelhantes devem ter respostas iguais, elemento este, inclusive, que atribui legitimidade decisória ao Poder Judiciário. Neste ponto, entra em questão a atuação do Estado que diante da escassez de recursos e da pluralidade de interesses, delibera acerca das circunstâncias excepcionais para a concessão de benefícios e, ao ignorar a possibilidade de universalização, interfere nos fundamentos de gestão da coisa pública, praticando ativismo.

3) Para atender a um direito fundamental está-se fazendo uma transferência ilegal/inconstitucional de recursos que fira a igualdade e a isonomia?
A pergunta de número três também se alicerça na preocupação com a efetivação de direitos em detrimento dos recursos disponíveis. Isso porque as decisões judiciais geram ônus às finanças públicas e, diante disso, também concerne à legitimidade da atuação do Poder Judiciário a sua cobertura financeira e orçamentária. Portanto, a igualdade deve ser um limite às decisões visto que não se pode utilizar dos recursos públicos para aprofundar desigualdades. Além do mais, despender gastos no sentido de ações afirmativas, ainda que com efeitos transformativos, é atribuição do Poder Legislativo.

Novamente, nos valendo dos excertos de Streck e não pretendendo substituir o autor, pede-se licença para incluir um trecho importante e que ilustra as virtudes da tese neste espaço apresentada:

"as três perguntas fundamentais – aqui especificadas e que fazem parte da CHD — podem ser vistas no voto do ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário 888.815, em que o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o instituto do homeschooling. (…) O recurso teve origem em mandado de segurança impetrado pelos pais de uma menina, então com onze anos, contra ato da secretária de Educação do município de Canela (RS), que negou pedido para que a criança fosse educada em casa e orientou-os a fazer matrícula na rede regular de ensino, onde até então havia estudado. O mandado de segurança foi negado tanto em primeira instância quanto no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Para a corte gaúcha, inexistindo previsão legal de ensino na modalidade domiciliar, não haveria direito líquido e certo a ser amparado no caso. Ora, no caso em questão, nenhuma das três questões recebe resposta afirmativa. E mesmo que se admita o 'sim' à primeira pergunta, a segunda inexoravelmente recebe resposta negativa, pela impossibilidade de universalização, sob pena de discriminação dos pobres. Ou seja: por uma questão óbvia, se os pobres quiserem educar seus filhos em casa, não poderão fazê-lo pela total impossibilidade material, ficando o homeschooling como um inegável privilégio dos ricos, sob a contraditória 'supervisão' da escola pública. Em um país em que a escola é um refúgio para ganhar merenda, e em que os pais, na grande maioria pobres, não têm onde deixar os filhos (a não ser na escola), como é possível institucionalizar o direito de os pais não mandarem seus filhos à escola? Claramente uma medida a favor de quem pode pagar por homeschooling" [15].

Já em sede de conclusão, frisa-se a importância do Dicionário de Hermenêutica para uma compreensão adequada da tese streckiana. E sobre o homeschooling, dois textos do autor são de leitura bastante aconselhada (aqui e aqui). Por fim, mas não menos importante, lembra-se que a Tese de Isadora Ferreira Neves, logo será disponibilizada. Em relação à tônica do texto, enfim, o que cumpre compreender é que as três perguntas fundamentais são uma tese que supera a tese e que seus termos não são uma teorização abstrata. Antes, já são o cerne de uma Teoria da Decisão plenamente aplicável.


[1] O tema dessa coluna foi resultado (e por isso homenageia) dos apontamentos trazidos na banca de Tese defendida no PPG UNISINOS pela nossa colega Isadora Ferreira Neves, que de forma inédita colocou a CHD como objeto de sua pesquisa e não como base teórica para análise de outros marcos teóricos.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 13-14.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 87.

[4] STRECK. Lenio Luiz. Compreender Direito: Hermenêutica. 1. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 12.

[5] São eles: (1) Princípio um: a preservação da autonomia do Direito; (2) Princípio dois: o controle hermenêutico da interpretação constitucional — a superação da discricionariedade; (3) Princípio três: o respeito à integridade e à coerência do Direito; (4) Princípio quatro: o dever fundamental de justificar as decisões; (5) Princípio cinco: o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada. Para uma compreensão adequada, recomenda-se o já citado Dicionário de Hermenêutica e em especial o verbete "Resposta adequada à constituição (resposta correta)".

[6] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 649-650.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 322 e seguintes.

[8] CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Ferreira Gilmar; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 73-89.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 634-635.

[10] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 395.

[11] Idem. p. 385-406.

[12] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 217.

[13] STRECK, Lenio Luiz. 30 anos da CF em 30 julgamentos: uma radiografia do STF. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 6, 71, 275-276 e 293.

[14] Essa sistematização de perguntas foi feita com base nos apontamentos da colega Isadora Ferreira Neves na tese NEVES, Isadora. As três perguntas fundamentais da Crítica Hermenêutica do Direito: a aplicabilidade de uma proposta de limites à atuação do Poder Judiciário no Brasil. 2022. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2022.

[15] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 394-395.

Autores

  • é mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-graduando em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst e membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

  • é doutoranda e mestre em Direito Público pela Unisinos (RS), bolsista Capes/Proex e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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